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Estado de Minas MEM�RIA

Elza Soares deixa legado de resist�ncia e talento para a cultura brasileira

Cantora morreu trabalhando, aos 91 anos. F�nix, superou ostracismo, conquistou os jovens do s�culo 21, renovou a MPB e lutou contra o machismo e o racismo


21/01/2022 04:00 - atualizado 21/01/2022 04:51

Ilustração mostra a cantora Elza Soares
(foto: Quinho)

“Mulher do fim do mundo/ eu sou/ eu vou/ at� o fim cantar”, crava Elza Soares no verso final de “Mulher do fim do mundo”, can��o do disco hom�nimo lan�ado em 2015. E assim foi. A cantora carioca, que morreu de causas naturais, aos 91 anos, nesta quinta-feira (20/1), no Rio de Janeiro, estava em plena atividade at� o fim do ano passado. Havia agendado para 17 e 18 deste m�s o registro audiovisual de seu show no Theatro Municipal de S�o Paulo. A grava��o geraria �lbum ao vivo, al�m de conte�do para o canal de v�deo dela.

“�cone da m�sica brasileira, considerada uma das maiores artistas do mundo, a cantora eleita como a ‘Voz do Mil�nio’ teve uma vida apote�tica, intensa, que emocionou o mundo com sua voz, sua for�a e sua determina��o. A amada e eterna Elza descansou, mas estar� para sempre na hist�ria da m�sica e em nossos cora��es e dos milhares f�s por todo o mundo. Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou at� o fim”, diz o comunicado oficial de familiares e da equipe da artista.

O vel�rio ser� no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (21/1).  � tarde, o corpo ser� sepultado no Jardim da Saudade Sulacap.

GARRINCHA: PAIX�O ETERNA

Elza morreu no mesmo dia de Garrincha. Tiveram rela��o apaixonada e casamento turbulento – ele faleceu em 20 de janeiro, em 1983, j� separado dela. “Viajo para o para�so quando penso nele (Garrincha). Sonho com ele at� hoje. O Brasil (Sele��o) morreu com ele”, contou ela a Pedro Bial, em programa exibido pela Globo.

O t�tulo de “Voz Brasileira do Mil�nio” veio da emissora brit�nica BBC em 1999, mas a trajet�ria de Elza teve in�cio na d�cada de 1950, quando come�ou a fazer sucesso cantando sambas. Nada foi f�cil. Nascida na favela Vila Vint�m, em Padre Miguel, era filha de mineiros: pai oper�rio (Avelino Gomes) e m�e lavadeira (Ros�ria Maria da Concei��o). Avelino a obrigou a se casar aos 12 anos com Alaordes, que abusara dela. Tiveram tr�s filhos, o marido morreu de tuberculose e deixou � jovem Elza o trauma da viol�ncia e da brutalidade sexual e a miss�o de cuidar dos tr�s filhos.

A mo�a trabalhou em hosp�cio, encaixotou sab�o, lavou roupas, subiu favela com lata d'�gua na cabe�a, passou fome. Perdeu um beb� para a fome.

Nos anos 1950, Elza iniciou a carreira art�stica na R�dio Tupi, ao participar do programa do mineiro Ary Barroso. Subiu ao palco do “Calouros em desfile” e cantou “Lama”. O c�lebre compositor perguntou: “De que planeta voc� vem, menina?”. Ela respondeu: “Do mesmo planeta que voc�, seu Ary. Eu venho do planeta fome”. Venceu o concurso. Usou o dinheiro para comprar rem�dio para o filho.

O �lbum de Elza lan�ado em 2019 se chama justamente “Planeta fome”. Quase 60 anos separam esse t�tulo de seu debute fonogr�fico oficial. O primeiro contrato foi assinado em 1960, para o lan�amento de “Se acaso voc� chegasse”. O contrato j� inclu�a a turn� internacional.

Elza lan�ou 34 discos e coleciona v�rios sucessos: “Salve a mocidade” (Luiz Reis, 1974), “Bom dia, Portela” (David Correa e Bebeto Di S�o Jo�o, 1974), “Pranto livre” (Dida e Everaldo da Viola, 1974) e “Malandro” (Jorge Arag�o e Jotab�, 1976).

Nesse percurso, cantou samba – com o qual era muito identificada nos primeiros anos de sua carreira –, mas tamb�m brilhou nas searas do jazz, da m�sica eletr�nica, do hip-hop, do funk. Avessa a r�tulos, dizia que a mistura � proposital.

“Sempre quis fazer coisa diferente, n�o suporto r�tulo, n�o sou refrigerante”, comparava. “Acompanho o tempo, n�o estou quadrada, n�o tem essa de ficar paradinha aqui n�o. O neg�cio � caminhar. Caminho sempre junto com o tempo”, declarou.

Desde que lan�ou o �lbum “A mulher do fim do mundo”, em 2015, Elza experimentou o renascimento art�stico. Na verdade, outro renascimento, pois teve momentos de certo ostracismo alternados com outros de sucesso retumbante.

'Sempre quis fazer coisa diferente, n�o suporto r�tulo, n�o sou refrigerante (...) Acompanho o tempo, n�o estou quadrada, n�o tem essa de ficar paradinha aqui n�o. O neg�cio � caminhar. Caminho sempre junto com o tempo'

Elza Soares, cantora


RAINHA DO SAMBALAN�O 

Nos anos 1960, conquistou seu espa�o cantando o chamado “sambalan�o”, com discos gravados com Miltinho (1928-2014) e com o baterista Wilson das Neves (1936-2017). Na sequ�ncia de “Se acaso voc� chegasse”, vieram “O samba � Elza Soares” (1961), “Sambossa” (1963), “Na roda do samba” (1964) e “Um show de Elza” (1965).

Outras fases se seguiram. Nos anos 1970, escolheu interpretar o samba mais casti�o, lan�ado nos discos “Elza pede passagem” (1972), “Nos bra�os do samba” (1975) e “Senhora da terra” (1979).

Os anos 1980 foram cru�is. Shows escassearam, Garrincha morrera, a ind�stria fonogr�fica mudou. Pensou at� em desistir da carreira, pediu ajuda a Caetano Veloso. O aux�lio veio por samba-rap. “L�ngua”, faixa do �lbum “Vel�” (1984), � obra-prima do baiano.

“L�ngua” mostrou a bossa negra de Elza Soares a uma nova gera��o e abriu caminho para que a ela lan�asse, em 1985, trabalho menos voltado para o samba. “Somos todos iguais” tinha can��o de Cazuza (1958-1990). Caminho sem volta. Sem abandonar completamente o samba, Elza se permitiu aventurar por outras sonoridades.

Em 2002, com dire��o art�stica de Jos� Miguel Wisnik, fez um dos �lbuns mais modernos de sua discografia, “Do c�ccix at� o pesco�o”, com can��es de Arnaldo Antunes, Jorge Ben Jor, Carlinhos Brown e d'O Rappa, al�m do pr�prio Wisnik. “Dura na queda” � a faixa que Chico Buarque comp�s especialmente para o musical dedicado � vida de Elza. “Dor de cotovelo”, de Caetano Veloso, tamb�m era dedicada a ela.

“Do c�ccix at� o pesco�o” (Maianga Discos) rompeu com outra fase de relativa morosidade que a cantora atravessou durante a d�cada de 1990. Dois anos depois, “Vivo feliz”, lan�ado pelo selo independente Reco-Head, n�o repercutiu tanto quanto o antecessor. Mas traz ali o passo, possivelmente, mais ousado de sua carreira, pois Elza flerta abertamente com a eletr�nica e o rap, em meio a composi��es de Mundo Livre S/A e Nando Reis.

Outro marco: “A mulher do fim do mundo”. Concebido e dirigido por Guilherme Kastrup, o disco se ancora no n�cleo paulistano que re�ne os grupos Passo Torto e Met� Met� – R�mulo Fr�es, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral e Douglas Germano, autor do single “Maria da Vila Matilde”. Com letra que denuncia a viol�ncia contra a mulher e poderoso refr�o (“C� vai se arrepender de levantar a m�o pra mim”), a can��o fez de Elza, aos olhos das novas gera��es, s�mbolo da luta contra todo tipo de opress�o e preconceito.

Cr�ticos apontaram o “renascimento” de quem j� era f�nix h� tempos. Com esse disco, Elza se apresentou pela primeira vez no Rock in Rio, bateu nove milh�es de execu��es no aplicativo Spotify e conquistou o Grammy Latino 2016 na categoria melhor �lbum de MPB.

No texto de apresenta��o de “A mulher do fim do mundo”, Kastrup escreve: “A mulher do fim do mundo � que permanece. A hero�na com a for�a de um furac�o. Deusa profana, que dialoga com o tempo e a morte. Elza Soares � uma artista corajosa acima de tudo, n�o tem medo de nada! Nada � moderno demais pra ela. Nenhuma disson�ncia a assusta, nenhuma distor��o a intimida. Com sua fome do novo, se transforma sempre. Nasce e renasce e de novo mais uma vez, como a F�nix que tem tatuada no tornozelo.”

DEUS FEMININO E MULHER

O disco seguinte, “Deus � mulher” (2028), seguiu o mesmo caminho – o t�tulo veio do verso da can��o do carioca Pedro Lu�s. A produ��o de Guilherme Kastrup, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e R�mulo Fr�es reuniu faixas de Tulipa Ruiz, Pedro Lu�s e Mari� Portugal, entre outros.

Nos �ltimos tempos, Elza fez parcerias com o rapper mineiro Fl�vio Renegado. Lan�aram “Negr�o negra” e o samba “Black power”, temperado com pitadas de rap. Regravaram “Divino maravilhoso”, de Caetano e Gil.

“Estamos atravessando um momento chato, mas lutamos contra esse horror do preconceito racial. Para isso canto uma m�sica que fala lindo de nossa M�e �frica, uma mam�e preta. O Fl�vio Renegado � bom demais e pedimos aten��o � letra da m�sica: uma letra que deixo ‘modernona’ ao meu jeito”, disse Elza � �poca do lan�amento de “Negr�o negra”.

Ontem, a reportagem tentou falar com Fl�vio. N�o foi poss�vel. Ele s� conseguiu mandar emojis com carinhas �s l�grimas, desconsoladas.


TR�S �LBUNS FUNDAMENTAIS

Sob fundo vermelho, Elza Soares surge de cabelos curtos, camisa e jeans na capa do disco 'Se acaso você chegasse' (1960)
(foto: Reprodu��o)

“Se acaso voc� chegasse” (1960)
Lan�ado pela Odeon, traz no t�tulo o nome do presente que Lupic�nio Rodrigues deu � cantora. “Foi a m�sica que me deu chance de abrir fronteiras, de abrir caminhos”, disse Elza Soares. O sucesso explosivo da jovem negra incomodou tanto que, no fim dos anos 1960, a casa onde morava com seu marido, o jogador Man� Garrincha, sofreu um atentado que motivou a fuga deles para a It�lia, onde ficaram amigos do Chico Buarque e sua esposa na �poca, Marieta Severo.
Jovens negros olham para a câmera na foto de capa do disco 'Do cóccix até o pescoço' , de Elza Soares
(foto: Reprodu��o)

“Do c�ccix at� o pesco�o” (2002)
Marco da produ��o fonogr�fica brasileira. Conecta samba e rap, couros e beats, lirismo e protesto, tradi��o e modernidade. Mostra que a arte de Elza Soares reflete o presente em qualquer �poca. O repert�rio destaca in�ditas de Chico Buarque (o samba “Dura na queda”), Jorge Ben Jor (o funk “Hoje � dia de festa”), Caetano Veloso (“Dor de cotovelo”), Carlinhos Brown (“Etnocopop”) e Arnaldo Antunes (“Eu vou ficar aqui”, de suingue pr�ximo do samba).
Imagens gráficas formam a palavra Elza, em preto, sobre fundo amarelo na capa do disco 'A mulher do fim do mundo', de Elza Soares
(foto: Reprodu��o)

“A mulher do fim do mundo” (2015)
Primeiro registro de in�ditas em mais de cinco d�cadas de carreira. Com dire��o art�stica de Romulo Fr�es e produ��o do experiente Guilherme Kastrup, transporta para o samba torto paulistano parte da ess�ncia da artista carioca apresentada por Ary Barroso no in�cio dos anos 1950. Ambienta��es ruidosas, batidas e melodias sujas se completam pela presen�a de Rodrigo Campos (cavaco, guitarra), Kiko Dinucci (guitarra, viol�o), Marcelo Cabral (baixo, sintetizador). Um “punk-samba”, como definiu Celso Sim, colaborador da can��o “Benedita”.


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