
No ano em que ocorreu a Semana de Arte Moderna, em 1922, as mulheres no Brasil ainda n�o podiam votar - a conquista desse direito viria uma d�cada depois. Na vida privada, elas n�o podiam ter conta banc�ria sem autoriza��o do marido, assim como n�o existia o div�rcio - este seria permitido no pa�s quase 60 anos ap�s o evento modernista.
Isso revela como a Semana de 22, ocorrida em S�o Paulo entre os dias 13 e 17 de fevereiro, foi revolucion�ria para a sociedade da �poca, mas tamb�m ajuda a explicar o porqu� o nome de praticamente apenas uma mulher entrou para a hist�ria do evento - Tarsila do Amaral.
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Por�m, segundo a professora do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Bras�lia (UnB), Vera Pugliese, Tarsila nem no Brasil estava na data do festival.
"� interessante que, principalmente fora do meio universit�rio, Tarsila do Amaral seja indicada como uma das principais participantes da Semana de Arte Moderna. Em fevereiro de 1922, ela estava em Paris", diz Pugliese.
A pintora paulista foi, de fato, umas das principais modernistas do pa�s, "mas n�o participou da Semana de Arte Moderna. Nenhuma de suas obras esteve presente no festival art�stico", conta a professora da UnB.
Corrigindo a hist�ria: Aina, Gomide Graz e Novaes
Segundo os registros, apenas quatro mulheres participaram da Semana de Arte Moderna: as artistas visuais Anita Malfatti, Gomide Graz e Zina Aita; e a pianista Guiomar Novaes."Considerando-se a �poca, � natural que o n�mero de participantes mulheres tenha sido pequeno, afinal, no Brasil do in�cio do s�culo 20 ainda predominava a ideia de arte feminina e arte masculina", explica a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de S�o Paulo (USP) Mayra Laudanna.
A professora Pugliese lembra que fazia parte da cultura burguesa da d�cada de 1920 que as mulheres dessas fam�lias "escrevessem poesia e mesmo desenhassem ou pintassem, preferencialmente aquarelas", e que "tocassem ou pelo menos tivessem aprendido um instrumento musical".
"Escultura, nem pensar; era considerada excessivamente masculina", afirma.
No entanto, n�o era incentivado que as mulheres se profissionalizassem, uma vez que seus conhecimentos art�sticos "deveriam restringir-se ao espa�o privado de suas resid�ncias, dentro dos limites permitidos primeiro pelo pai e depois pelo marido", diz a professora da UnB.
Al�m das diferen�as de g�nero, a pr�pria defini��o de arte da �poca imp�s barreiras � populariza��o das artistas ligadas � decora��o, como a tape�aria e a cer�mica.
"Precisamos com urg�ncia rever as hierarquias da hist�ria da arte para entender melhor o que foi a experi�ncia modernista, que n�o se limitou ao espa�o da tela, da moldura", ressalta a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Ana Paula Cavalcanti Simioni.
Autora do livro "Mulheres modernistas: estrat�gias de consagra��o da arte brasileira", que ser� publicado neste semestre, Simioni explica que um dos objetivos da arte modernista foi o de transformar os objetos do dia a dia. "Promover a ruptura com a separa��o entre arte e vida que se tinha", diz.
"Isso levar� a uma compreens�o mais generosa e contextualizada da relev�ncia de Regina Graz [tapeceira] e Zina Aita [ceramista] para a arte moderna", sugere Simioni.
J� em rela��o ao esquecimento da participa��o da pianista Guiomar Novaes na Semana de Arte Moderna, a professora Laudanna sugere que o motivo pode ser a musicista "ter se indisposto com o evento devido a algumas par�dias ocorridas antes de sua apresenta��o no Teatro Municipal de S�o Paulo", afirma.
Zina Aita

A artista pl�stica Tereza Aita, conhecida como Zina, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1900, e estudou desenho, pintura e cer�mica na It�lia dos 14 aos 18 anos.
Quando retornou ao Brasil, em 1918, teve contato com o modernismo por meio, principalmente, dos amigos Anita Malfatti e M�rio de Andrade.
Apesar de ser considerada precursora do modernismo em Minas Gerais por causa de uma exposi��o individual feita na capital mineira em 1920, Laudanna aponta que a lacuna sobre a obra de Aita no Brasil � enorme.
"Ainda hoje, pouco se sabe e quase nada se conhece dos trabalhos de Zina Aina", diz Laudanna. "Ela basicamente foi esquecida por falta de pesquisas [no Brasil] e por se localizar pouqu�ssimas obras suas".
A professora Pugliese tamb�m destaca o retorno de Zina � It�lia logo ap�s a Semana de Arte Moderna, em 1924, tendo permanecido no pa�s at� a sua morte, em 1967, e a sua prefer�ncia pela cer�mica.
"A desvaloriza��o da cer�mica, taxada como arte decorativa (inclusive entre os artistas homens) n�o favoreceu seu reconhecimento como artista maior no meio das artes pl�sticas [modernistas]", acrescenta Pugliese.
"Sua produ��o permanece pouco conhecida, e grande parte de suas obras n�o � datada", afirma trecho de sua biografia na enciclop�dia do Ita� Cultural.
Regina Gomide Graz

A pintora, decoradora e tapeceira Regina Gomide Graz nasceu em Itapetininga (SP) em 1897. Ap�s estudar em Genebra, na Su��a, Graz retornou ao Brasil em 1920, se aproximou dos modernistas e exp�s sua obra em tape�aria na Semana de Arte Moderna. Foi pioneira no interesse pela tradi��o ind�gena brasileira, tendo estudado a tecelagem ind�gena do Alto Amazonas para compor parte de sua obra.
"Regina Gomide Graz foi a introdutora das artes decorativas modernas no Brasil, em especial nos suportes t�xteis. Participou de um projeto de moderniza��o da decora��o em lares de S�o Paulo, ao lado de seu esposo, o artista su��o John Graz e seu irm�o, o artista Antonio Gomide", conta Simioni.
A artista � considerada uma das mais produtivas do Modernismo brasileiro entre 1920 e 1940, mas sua obra foi reduzida pela hist�ria como "colaboradora" do marido John Graz e do irm�o Ant�nio Gomide. Em livros, Regina � descrita como "esposa" e "irm�" de artistas, quase nunca como "autora".

Al�m disso, "em virtude de sua escolha por materialidades menos valorizadas pela hist�ria da arte (decora��o, arte t�xtil), Regina acabou ocupando um lugar menor, mas que vem sido revisto", diz Simioni.
Guiomar Novaes

A pianista se apresentou na terceira noite do evento em um recital com obras de Debussy e Villa-Lobos. Teria sido a �nica artista daquela noite no Teatro Municipal a ter uma plateia em sil�ncio durante a sua apresenta��o e, em seguida, receber aplausos calorosos do p�blico.
Apesar do sucesso entre o p�blico, Novaes deu uma entrevista na �poca afirmando estar triste com "pe�as sat�ricas � m�sica de Chopin" que marcaram a segunda noite de apresenta��es. A pianista teria se sentido ofendida, uma vez que Chopin era a sua especialidade.
Novaes nasceu em S�o Jo�o da Boa Vista, interior paulista, em 1894. Come�ou a tocar piano aos 4 anos e, aos 15, se mudou para a Europa para estudar m�sica.
A musicista teve uma s�lida carreira internacional, tendo se apresentado para personalidades como a Rainha Elizabeth 2ª e o presidente americano Franklin Roosevelt. Ela j� era uma das pianistas mais prestigiadas do Brasil quando se apresentou na Semana de Arte Moderna.
Malfatti, a primeira modernista
A discreta e t�mida Anita Malfatti produziu "uma arte distante dos padr�es vigentes [os padr�es europeus] antes mesmo de 1922", diz Laudanna. Por isso, segundo a professora, Malfatti � considerada a primeira pintora modernista do Brasil.

Filha de um imigrante italiano, Malfatti nasceu em 1889 em S�o Paulo. Em 1910, se mudou para a Alemanha para estudar artes. Em seguida, foi para os Estados Unidos, onde produziu uma s�rie de nus art�sticos - um esc�ndalo para os conservadores da �poca.
Em 1917, j� de volta ao Brasil, a pintora realizou uma exposi��o individual em S�o Paulo intitulada "Exposi��o de Pintura Moderna", que serviu de estopim para a Semana de Arte Moderna, cinco anos depois.
Isso porque, assim como o evento de 1922, que n�o foi bem recebido por parte do p�blico, a exposi��o individual de Malfatti de 1917 foi ferozmente criticada por Monteiro Lobato em um texto intitulado "Paran�ia ou Mistifica��o?".
"Ap�s a cr�tica negativa de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e outros sa�ram em defesa de Anita nos jornais. Foi a� que estes artistas tomaram consci�ncia do que os unia: um desejo de inova��o e de se contraporem aos par�metros da cr�tica e de gosto ent�o em vigor", comenta Simioni.
A exposi��o de 1917 foi lembrada pelos cr�ticos e pelos jornais nos anos em que se seguiram. Ora lembravam da coragem e originalidade de Malfatti, ora retomavam as cr�ticas de Lobato.
"Ainda que Malfatti n�o tenha se concretizado como a cabe�a do movimento modernista, posi��o inicialmente assumida por Victor Brecheret, a artista continuou sendo, na Semana de Arte Moderna, a personifica��o do esc�ndalo da arte modernista", explica Pugliese.
O projeto "Ver Anitta", da professora Laudanna, hospedado no site da USP, recuperou entrevistas de Malfatti sobre a repercuss�o de sua exposi��o anterior � Semana de Arte Moderna.
Em 1955, a pintora afirmou ao jornal A Gazeta que n�o tinha ideia de que suas obras de 1917 seriam encaradas como uma "revolu��o".
"Achei que era natural aquilo", disse Anita � Gazeta sobre a cr�tica de Lobato.
"Apenas n�o tomei aquilo tudo como uma revolu��o nem imaginei o que iria causar mais tarde. Apenas quando o movimento tomou conta da literatura, da m�sica e das outras artes, em geral, foi que avaliei o que estava acontecendo", continuou a artista modernista.
Malfatti exp�s cerca de dez obras durante a Semana de Arte Moderna
"Est�vamos completamente felizes apesar dos protestos e vaias. O Villa executou um tremendo concerto sinf�nico de abalar as paredes do velho Municipal, na noitada de sexta-feira. Assim terminava a Semana. T�nhamos feito algo que s� vinte ou trinta anos depois poder�amos registrar assim: deixamos um ponto luminoso na hist�ria da cultura da Cidade de S�o Paulo", afirmou Malfatti em 1954 ao jornal O Carioca.
Reescrevendo Tarsila na Semana
Tarsila, por sua vez, al�m de n�o ter participado do evento, foi apresentada aos modernistas fomentadores da Semana, Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Menotti del Picchia, meses depois do evento, por interm�dio de Anita Malfatti, sua conhecida desde 1919.
"Tarsila passou a conviver com eles ap�s a Semana. Juntos, formaram o 'Grupo dos Cinco', que se manteve unido em torno da ideia de produzir uma arte 'brasileira'", resgata Laudanna.
O "Grupo dos Cinco" durou apenas alguns meses, contudo.
"O grupo se desfaz com o retorno de Tarsila para a Europa ainda no mesmo ano de 1922", diz a professora da USP.
"A Semana foi se construindo como um "mito fundador" posteriormente, assim como se foi construindo Tarsila como a musa do modernismo, e em algum momento se atrelou uma coisa a outra, mas isso n�o tem nenhuma veracidade", conclui a professora Simioni.
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