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Estado de Minas SINERGIA NAS ARTES

''Modernismo � a fonte de cria��o que alimentou o Cinema Novo''

Produ��es cinematogr�ficas, principalmente entre as d�cadas de 1960 e 1970, refor�am afirma��o de Cac� Diegues. Confira filmes inspirados no movimento de 1922


21/02/2022 04:00 - atualizado 21/02/2022 08:11

Patricia Franca e Toni Garrido em 'Orfeu', de Cacá Diegues
Patricia Franca e Toni Garrido em ''Orfeu'', de Cac� Diegues: filme teve como base o Modernismo (foto: Divulga��o)

Cinema e literatura coexistiam, mas n�o se alinhavam � �poca do impacto da Semana de Arte Moderna. Na remo��o do ran�o acad�mico, o cinema estava com o potencial ainda em an�lise. Paradigma eficiente para a velocidade, o dinamismo na associa��o de conte�do e o apelo da s�ntese, o cinema era admirado pela t�cnica. Mas com filmes de curta dura��o e agrupados em ciclos, a s�tima arte ainda n�o compunha massa s�lida. Coube ao cr�tico Jos� Carlos Avellar a observa��o de que "a literatura dos modernistas partiu da ideia do cinema".

M�rio de Andrade, mesmo em 1924, admitiu o impulso por um romance "cinematogr�fico", ao determinar a escrita de “Amar, verbo intransitivo”. Apregoando a originalidade – e distanciando a arte de "fotografia colorida", como destaca Ismail Xavier em “S�tima arte: Um culto moderno” –, foi M�rio quem abordou o cinema como te�rico da arte moderna e, na revista paulistana Klaxon, cunhou: "A cinematografia � a cria��o art�stica mais representativa da nossa �poca".

Foi num cen�rio em que modernistas de diferentes fases j� haviam morrido, casos de M�rio de Andrade (que viveu at� 1954), Graciliano Ramos (vivo at� 1953, mesmo ano da morte de Jorge de Lima), Pag� (a primeira mulher presa na luta revolucion�ria, e morta em 1962), Jos� Lins do Rego (1901-1957) e Oswald de Andrade (1890-1954), que o cinema encampou a polifonia dos modernistas.

Veterano saudado pelo alcance de fitas que criou como “Quando o carnaval chegar” (1972) e “Joanna francesa” (1973), Cac� Diegues assinala � reportagem: "Estive sempre ligado ao Modernismo para fazer filmes como 'Orfeu' e 'O grande circo m�stico', al�m de outros. O Modernismo � a fonte de cria��o que alimentou o Cinema Novo. Fazer filmes originais, �nicos no mundo, e ao mesmo tempo voltados � descoberta e forma��o da civiliza��o brasileira, esse � o projeto do Cinema Novo e seria o do Modernismo se eles se encontrassem historicamente".

Protagonizado por Grande Otelo, filme Macunaíma
Protagonizado por Grande Otelo, ''Macuna�ma'', dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, � inspirado na obra hom�nima de M�rio de Andrade (foto: Reprodu��o)

ANTROPOFAGIA

Cac� elenca a s�rie de filmes modernistas consagrados "que tinham, no audiovisual, o mesmo projeto do Modernismo liter�rio": “Rio 40 graus”, “Deus e o diabo na terra do sol” e “Brasil ano 2000” (Urso de Prata de melhor dire��o no Festival de Berlim para Walter Lima Jr.), al�m de “Macuna�ma”, filme de 1969, que traz a s�mula do descansado anti-her�i, imerso numa indefinida cultura alheia, e que se volta �s pr�prias ra�zes (ind�genas), quando tudo j� parece tarde. M�rio de Andrade – que, diante da s�tima arte, demarcou que era "preciso compreender os norte-americanos e n�o macaque�-los" – reacende paix�es, com o sucesso popular do filme de Joaquim Pedro de Andrade, capaz de acentuar o qu� grotesco e desorganizado compreendido na obra de 1928. Vista, no livro “A odisseia do cinema brasileiro”, como somat�rio de chanchada e tropicalismo, a saga do amaz�nico corporifica um positivo derivado do “Manifesto antropof�gico” (capitaneado por Oswald de Andrade).

Empreender "processos comunicativos e desalienantes" era das responsabilidades assumidas por Joaquim Pedro. Quem bem teorizou, no livro “Revolu��o do cinema novo”, a resultante entre a "ascens�o do subdesenvolvimento" e cadeias antropof�gicas, alimentadas por liberdade e tropicalismo, foi Glauber Rocha. O cineasta baiano lembra a compet�ncia do colega Gustavo Dahl, na afirma��o de que "o Cinema Novo se obrigava a superar qualitativamente o subdesenvolvimento cultural", numa tarefa similar aos intelectuais de 1922. Segundo Glauber percebe: "O surrealismo para os povos latino-americanos � o tropicalismo". Coube ao te�rico Jean-Claude Bernardet assinalar que a homenagem rendida pela Bienal de S�o Paulo (em 1961) para o cinema brasileiro "teve para o Cinema Novo a import�ncia da Semana de Arte".

Ruda K. Andrade
Neto de Oswald de Andrade, Ruda K. Andrade diz que ''Modernismo'' deixou como legado uma maneira de se olhar o pa�s, de buscar ra�zes (foto: Reprodu��o)

MANIFESTOS

Com dire��o musical de Rog�rio Duprat, expoente tropicalista, e crivado de elementos aleg�ricos, “Brasil ano 2000” tratava do exterm�nio de �ndios – em manifestos, sempre saudado como o "verdadeiro brasileiro". Na chamada fase "canibal-tropicalista", despontaram produ��es de cunho radical, a exemplo de “Os deuses e os mortos” (1970), de Ruy Guerra, em torno da saga de um homem disposto a interferir no dom�nio de coron�is baianos. A inger�ncia portuguesa nos deserdados brasileiros do per�odo colonial avan�a pelos pain�is de “Pindorama” (1970), cria��o de Arnaldo Jabor, e no mundo de trai��es, falsas identidades, escambo e canibalismo revelado por Nelson Pereira dos Santos em “Como era gostoso o meu franc�s” (1971). Um dos luxos da fita est� na lida do pioneiro do cinema Humberto Mauro, que criou di�logos em tupi-guarani.

Sob os efeitos de intermin�vel produ��o, e em torno do relato da decad�ncia capitalista (mote para pe�a de Oswald de Andrade), “O rei da vela” (1982) eclodiu na tela, comandado por Jos� Celso Martinez Corr�a e artistas de seu Teatro Oficina. Atentando para o enlace de outros diretores do epis�dico longa “Oswaldianas” (1992), entre os quais Rog�rio Sganzerla e J�lio Bressane, com ideais modernistas, o cineasta Roberto Moreira, que assina o epis�dio “A princesa radar”, refor�am a procura, na obra, da atualiza��o � aludida ideia oswaldiana da antropofagia. "Tentei fazer um filme sincr�tico, capaz de abranger as v�rias refer�ncias do ballet original", comenta.

Mulherengo, an�rquico e inquieto, Oswald teve representa��o, no filme de Joaquim Pedro de Andrade, “O homem do pau-brasil” (1981), estrelado por �tala Nandi, Fl�vio Galv�o e Dora Pellegrino, e premiado como o melhor do 15º Festival de Bras�lia do Cinema Brasileiro. Sa�do da pena de Oswald, “Os condenados” (1973), de Zelito Viana, que estampa a queda de Alma (Isabel Ribeiro) na prostitui��o, foi outro t�tulo celebrado pelo cinema de tem�tica modernista.

Estive sempre ligado ao Modernismo para fazer filmes como 'Orfeu' e 'O grande circo m�stico', al�m de outros. O Modernismo � a fonte de cria��o que alimentou o Cinema Novo

Cac� Diegues, cineasta


IDENTIDADE E VANGUARDA

Noutra incurs�o da mesma linha, Zelito Viana trouxe para as telas, com elenco liderado por T�nia Alves e Jos� Dumont, o musical “Morte e vida Severina” (1977), detido nas andan�as de um retirante por regi�es pernambucanas e que brotaram da poesia de Jo�o Cabral de Melo Neto. Tamb�m do Nordeste, o representante da segunda gera��o modernista, Graciliano Ramos, escreveu as obras que motivaram Leon Hirszman (“S. Bernardo”) e Nelson Pereira dos Santos (“Mem�rias do c�rcere”, premiado pela cr�tica do Festival de Cannes, e “Vidas secas”, que, na an�lise de J�lio Bressane, indicou antropofagia entre neorrealismo e a nouvelle vague) a investir em figuras hist�ricas que imprimiam a trajet�ria de classes sociais (oprimidas ou opressoras).

Afirma��o de identidade e vanguarda renderam obras liter�rias dos colegas de Vinicius de Moraes – tamb�m representante da segunda gera��o (a de 1930) – que justo teve a carreira iniciada como cr�tico de cinema. Do car�ter revolucion�rio e da postura cr�tica, que marcaram “Barravento” (1962), Glauber Rocha apostou na produ��o de “Menino de engenho” (1966), no qual o estreante Walter Lima Jr. trouxe para as telas a adapta��o de obra do modernista Jos� Lins do Rego. Tudo em torno da moderniza��o de uma era, a exemplo da trama de “Soledade – A bagaceira” (1976), de Paulo Thiago, que foi apoiado na prosa regionalista de Jos� Am�rico de Almeida. Motes de liberta��o vieram com outras obras de cinema: “Hist�rias para se ouvir � noite”, escrito por Guilherme Figueiredo, deu g�s para “Fome de amor” (1967), enquanto Eduardo Escorel respondeu por “Li��o de amor” (1975) e “A hora e a vez de Augusto Matraga” (1965) alinhou o conto do p�s-modernista Jo�o Guimar�es Rosa � m�sica de Geraldo Vandr�.

ENTREVISTA

Rud� K. Andrade
Historiador

Revolu��o do olhar nas letras e imagens

Que rela��o entre cinema e literatura se confirma na perspectiva modernista?
A literatura � muito mais antiga, claro. Mas o cinema, no final do s�culo 19, vem numa esteira de novidades tecnol�gicas. Podemos citar transforma��es como a fotografia, que vai libertar os artistas da necessidade de um registro fidedigno e natural, e impulso para novas linguagens como o impressionismo e expressionismo. Houve a inven��o do microsc�pio que vai abrir a vis�o para mundo invis�vel. Ainda teve a reforma urban�stica, com amplia��o de avenidas e o olhar da vigil�ncia dos cidad�os. Em Paris, tamb�m se encontrar�o uma s�rie de lojas, com vitrines e os caf�s repletos de espelhos. Tudo forma a revolu��o do olhar que vai orientar para uma primazia da imagem, e o cinema vem colaborar com essa revolu��o.

Como se deu o di�logo entre letras e imagens?
Uma linguagem (a do cinema e a da literatura) vai aprendendo, ampliando e trocando com a outra. O cinema vai alimentar muito a quest�o da imagem, da imagem no texto, com correntes liter�rias modernas, tipo o futurismo. Haver� a levada do texto para um sentido sinest�sico, tentando dar conta de todas as sensa��es humanas, n�o s� do olhar. O texto tentar� trazer odores, sensa��es, texturas, cores e sentimentos outros. A ideia do cubismo estar� ligada aos fragmentos, aos peda�os, e isso vai ser muito absorvido pela literatura modernista. A literatura ser� afetada, no sentido de buscar registro mais �gil. A poesia passar� a esta fragmenta��o. Romances como “Serafim Ponte Grande” e “Mem�rias sentimentais de Jo�o Miramar”, do meu av� (Oswald de Andrade), mostram essa din�mica. N�o se permite mais ao homem moderno ficar preso na biblioteca. H� a aposta em textos fluidos; os modernistas v�o publicar edi��es de livros menores, � la pocket books. As pessoas precisar�o ler no bonde, na fila do mercado. A vida est� nas ruas, e a literatura vai para esse lado. No recorta e cola, que aproxima muito a express�o do cinema com a da literatura, o corte e a sequ�ncia s�o apontados, por liga��o, pelo Antonio Candido, quando fala do Oswald. O Haroldo de Campos tamb�m pontua isso: da t�cnica de montagem dos fragmentos. O Modernismo deixou como legado uma maneira de se olhar o pa�s, de buscar suas ra�zes, de encontrar a realidade dos brasis. Do olhar sobre o sert�o, o olhar sobre o sub�rbio e, nesse sentido, se vai a um lugar, no cinema, que joga luz no realismo italiano. Se passa a trazer as quest�es para rua, para fora, com luz externa.

Qual a proposta essencial ao se rever a linguagem modernista?
Na celebra��o, penso no quesito experimental da pesquisa de linguagem dos modernistas: isso � fundamental para a gente continuar criando e dialogando, buscando novas formas de entendimento do mundo. O Cinema Novo foi uma continua��o desses experimentos, dessas reflex�es cr�ticas. Pensando, antropofagicamente, temos que deglutir esse passado, essa hist�ria, mastig�-la, e saber retirar aprendizados e as for�as, as pot�ncias, que nos ajudam a lidar com o nosso hoje. Acho que essa subst�ncia que podemos retirar da experi�ncia modernista � a busca de linguagem, de reflex�es sobre o Brasil. O mais importante, que retumba at� hoje e que retumbou no Cinema Novo, s�o as grandes perguntas: Quem somos? Que pa�s � esse? Que brasis s�o esses? 


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