Esquina das ruas Divin�polis e Parais�polis, em Santa Tereza: ponto de encontro de L� Borges com os amigos batizou o disco e se tornou refer�ncia na m�sica brasileira (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Os anos que o casal Salom�o e Maricota passou no Edif�cio Levy foram definitivos para a hist�ria da fam�lia Borges. Os encontros, amizades e aventuras vividos pelos filhos Marilton, M�rcio e o pequeno L� mudariam para sempre os rumos de suas vidas. Depois de muito semear no Centro de Belo Horizonte, em 1967 os Borges retornaram para a casa que tinham na Rua Divin�polis, no bairro de Santa Tereza. Naquele endere�o, o Clube da Esquina daria os passos fundamentais rumo � eternidade.
Ali perto da casa dos Borges, o agora adolescente L� se encontrava com os amigos para fazer um som na esquina da Rua Divin�polis com Rua Parais�polis. Anos antes, entusiasmados com a sonoridade incandescente dos Beatles, Milton e M�rcio levaram os irm�os do �ltimo, L� e Y�, ent�o com 12 e 11 anos, para assistir ao filme “Os reis do i�, i�, i�” (“A hard day’s night”, em ingl�s) no Cine Brasil.
Os garotos gostaram tanto da pel�cula com o Fab Four que convidaram o amigo Beto Guedes para formar uma banda cover batizada The Beavers. Bituca delirou com a sagacidade dos moleques. “O grupo era muito bonito, muito forte, eu ficava espiando as coisas que eles faziam, como f�”, lembra Milton.
Beto Guedes, filho do compositor Godofredo Guedes, era de Montes Claros e morava em um edif�cio na Rua Tupis, ali perto do Levy. L� e Beto se cruzaram pelo Centro de BH e se tornaram amigos insepar�veis. Acabaram tendo aulas de harmonia com um certo Toninho Horta. “Lembro-me de dar uma aula de teoria para eles debaixo de um abacateiro”, revela Toninho, que residiu por um per�odo no mesmo pr�dio dos Guedes e sempre via Beto e L�, os “jovens roqueiros”, pelas ruas da cidade com seus viol�es.
Em 2002, dona Maricota e Salom�o Borges com a fam�lia, na sala de sua casa musical em Santa Tereza (foto: Eduardo Rocha/RR/22/10/02)
Quando a fam�lia Borges retornou a Santa Tereza, Toninho passou a frequentar os encontros musicais na casa da Rua Divin�polis. Toninho era irm�o de Paulinho Horta, m�sico da noite e amigo de Marilton. Foi por essas conex�es que Toninho conheceu Bituca em Belo Horizonte. No primeiro encontro, os dois trocaram figurinhas musicais. “Tivemos certa simpatia um pelo outro de cara”, diz o instrumentista.
Bituca tamb�m come�ou a frequentar a casa da musical fam�lia Horta no alto do Col�gio Batista. Em 1966, eles se tornaram parceiros em “Segue em paz”, melodia de Toninho com letra de Milton. O instrumentista recorda que Bituca sempre foi admirado por seu canto, enquanto ele era “compositor t�mido que cantava baixinho”.
(foto: Arte: Soraia Piva)
No Festival Internacional da Can��o (FIC) em que Bituca classificou tr�s m�sicas, em 1967, Toninho Horta foi selecionado com duas: “Nem � carnaval” (com letra de M�rcio Borges) e “Maria Madrugada”. “Todo mundo tinha classificado uma m�sica, apenas eu, Bituca e Vinicius de Moraes t�nhamos mais de uma. Fomos muito requisitados”, lembra o compositor.
Embalado pelo sucesso do festival, Milton havia se mudado para o Rio de Janeiro e lan�ou seu primeiro disco, “Travessia”, trazendo as parcerias com M�rcio, Fernando Brant e um certo Ronaldo Bastos. Em meados de 1967, em troca de carta com M�rcio, Bituca escreveu que conhecera um “grande cara” e “inspirado poeta”. Era Ronaldo, nascido em Niter�i (RJ) e � �poca com 20 anos.
Milton foi convidado pelo arranjador Eumir Deodato a gravar nos Estados Unidos. Em 1969, lan�ou o �lbum “Courage”. De volta a Beag� vindo do Rio, como fazia tantas vezes, foi visitar os Borges. Na casa de Santa Tereza, encontrou o jovem L� sozinho. O rapaz tinha 16 anos. Os dois foram a um bar e Bituca se assustou ao perceber que o menino havia crescido. “Eu pedi uma batida de lim�o e ele: ‘Outra pra mim’. Olhei pra ele com aquela cara de ‘n�o, senhor’, mas n�o teve jeito”, revela Milton. “Ele me contou que gostava muito das coisas que eu fazia e, na �poca do Levy, ficava sentado na escadaria, escondido, me ouvindo cantar”.
Algumas batidas de lim�o depois, L� surpreendeu Bituca com uma reclama��o. “Voc�s n�o gostam de mim. Voc�s v�o para v�rios lugares e n�o me chamam, n�o me levam a s�rio”, bradou o adolescente. Milton arregalou os olhos e retrucou: “L�, sabe quando eu descobri que voc� n�o era mais aquela crian�a? Agora, quando voc� pediu uma batida de lim�o”. Com os ponteiros acertados, L� revelou ao amigo dos irm�os mais velhos que estava criando algumas harmonias no viol�o. Os dois retornaram � casa dos Borges.
“Ele me mostrou uma harmonia, eu peguei meu viol�o e comecei a improvisar. Quando a coisa me pega muito fundo, fecho os olhos e n�o vejo mais nada que t� acontecendo no mundo”, descreve Bituca. Quando ele voltou a si, j� n�o estavam mais sozinhos em casa. Dona Maricota chorava ao ver a cena e segurava uma vela acesa, enquanto M�rcio Borges rabiscava uma letra em um caderno. A luz havia acabado. Nasceu ali “Clube da Esquina”, primeira can��o de L� Borges, parceria com Milton e M�rcio. “A partir desse dia, L� come�ou a compor sem parar”, diz Milton.
M�rcio conta que se intrometeu na cria��o dos dois e tratou logo de colocar os versos que se tornariam c�lebres: “Noite chegou outra vez/ De novo na esquina os homens est�o…”. O poeta se inspirou no ponto entre as ruas Parais�polis e Divin�polis onde o irm�o de n�mero 6 se encontrava com os amigos para tocar viol�o. De l� se via a Serra do Curral cercando Belo Horizonte.
A can��o acabou batizando tamb�m o encontro musical daqueles amigos e de outros que viriam. “O nome ‘clube’ designava uma pobre esquina, um peda�o de cal�ada e um simples meio-fio, onde os adolescentes da rua costumavam vadiar, tocar viol�o, ficar de bobeira”, detalha M�rcio no livro de mem�rias “Os sonhos n�o envelhecem”. O letrista relata tamb�m que os versos ficaram um pouco “lun�ticos e tristes” porque ele se sentia assim naqueles tempos.
(foto: Cadu Dias/divulga��o)
"'Clube da Esquina' foi um disco muito esperado, pois o estouro de Milton Nascimento foi muito forte. Desde que o conheci no Festival Internacional da Can��o, ficamos todos n�s de olho em tudo o que ele trazia de novo, e esse disco nos mostrou a que ele veio. Foi uma luz forte na m�sica brasileira. Me apaixonei de cara por 'Nada ser� como antes'"
Roberto Menescal, compositor, produtor e instrumentista
Todo dia � dia de viver
O disco “Milton Nascimento”, terceiro do artista, foi lan�ado em 1969 e dialogava muito com os primeiros trabalhos de Bituca. A grande virada est�tica veio em “Milton” (1970), �lbum gravado com a banda de apoio Som Imagin�rio e uma sonoridade de acento roqueiro. Nesse trabalho, Milton lan�ou L� Borges ao p�blico ao registrar a faixa “Clube da Esquina” e outras duas composi��es do novato, “Para Lennon e McCartney” (com M�rcio Borges e Fernando Brant) e “Alunar” (com M�rcio). “Tinha muita gente compondo em Belo Horizonte, mas as coisas que o L� fazia me tocavam mais fundo”, observa Milton.
Quando Bituca resolveu prestar ainda mais aten��o na m�sica de L� Borges, teve um insight: “Vou gravar um disco com esse menino”, pensou. Ele ainda tinha um �ltimo �lbum para cumprir com a gravadora Odeon e deu uma cartada audaciosa: queria lan�ar o primeiro disco duplo do Brasil e ainda dividir os cr�ditos com o prod�gio de 18 anos, desconhecido nacionalmente. Ronaldo Bastos sugeriu um disco conceitual, com in�cio, meio e fim, tal qual um certo “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, lan�ado em 1967 pelos Beatles.
“Sempre tive certeza da genialidade do L�, sempre. As coisas que ele faz, n�o existe artista em lugar nenhum do mundo que consegue algo parecido”, afirmou Milton, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas. “E ele continua criando m�sicas maravilhosas at� hoje. N�o teria ‘Clube da Esquina’ sem L� Borges.”
A gravadora quis barrar a ideia por ach�-la pouco vend�vel, mas Milton bateu o p�. Com o apoio do diretor de elenco da Odeon, Adail Lessa, conseguiu prosseguir com o projeto. “Falei que se eles n�o topassem, eu arrumava outra gravadora”, conta Milton. “Eu era desconhecido e superinexperiente, eles n�o conheciam minhas m�sicas, mas acabaram dando oportunidade a este estreante”, relembra L�.
(foto: UBC/reprodu��o)
"� um som moderno, s�o can��es atemporais e tenho pelas minhas can��es o mesmo amor que tenho pelas dos meus outros companheiros de viagem. Essas m�sicas e esse som que n�s criamos l� atr�s continuam a surpreender antigas e novas gera��es. N�o tem nada mais gratificante. Para mim, 'Clube da Esquina' � uma lenda"
Ronaldo Bastos, cantor e compositor
Com composi��es de Milton e L� Borges e letras inspirad�ssimas de M�rcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, “Clube da Esquina” acabou n�o sendo o primeiro disco duplo do Brasil. “Fa-Tal Gal a todo vapor”, de Gal Costa, chegou antes �s lojas. Mas se tornou um divisor de �guas na discografia brasileira ao lan�ar m�o de ousadias art�sticas e tecnol�gicas que dariam ao �lbum o status de obra-prima.
“‘Clube da Esquina’ foi algo definitivo que aconteceu na minha vida. E, por sorte, o meu cora��o se deixou levar. Tudo continua com o mesmo frescor para mim”, diz Ronaldo Bastos, em entrevista ao EM. “� um som moderno, s�o can��es atemporais e tenho pelas minhas can��es o mesmo amor que tenho pelas dos meus outros companheiros de viagem. Essas m�sicas e esse som que n�s criamos l� atr�s continuam a surpreender antigas e novas gera��es. N�o tem nada mais gratificante. Para mim, ‘Clube da Esquina’ � uma lenda.”
L� Borges tinha 20 anos quando “Clube da Esquina” chegou �s lojas. Milton, 29. “A amizade e o amor entre essas pessoas regeram o disco. A amizade e a confian�a s�o a base de tudo”, analisa L� Borges. “Sou muito grato ao Milton pela confian�a que ele teve em mim, um cara desconhecido e inexperiente, peitando a gravadora e tudo. Ele me assumiu do in�cio ao fim.”
Leia na segunda-feira (7/3): Como uma temporada de Milton e L� em Niter�i foi decisiva para a cria��o das m�sicas do disco “Clube da Esquina”
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