A banda Black Pantera lan�a seu terceiro �lbum, "Ascens�o", calcado na cr�tica ao preconceito racial, na pr�xima sexta-feira (foto: F�bio Fernandes / divulga��o)
"A imagem vende, claro, s�o dois caras pretos, com um baterista tamb�m miscigenado, fazendo som pesado. Isso causa um impacto. Mas tem o outro lado. Se fosse uma banda de brancos, fazendo o mesmo tipo de m�sica, imagino que estar�amos num est�gio mais avan�ado da carreira. Sendo pretos, nosso show tem que ser duas vezes melhor, o disco tem que ser melhor"
Chaene da Gama, baixista da banda Black Pantera
Anunciada h� pouco mais de um m�s como uma das atra��es do palco Sunset na edi��o deste ano do Rock in Rio, a banda Black Pantera, de Uberaba (MG), traz a p�blico, na pr�xima sexta-feira (11/3), seu terceiro �lbum, “Ascens�o”, e no domingo faz um primeiro show de lan�amento em sua cidade, em pra�a p�blica.
O bom momento do grupo, formado em 2014 e cujas letras cutucam sem rodeios a chaga do preconceito racial, chama a aten��o para a pouca representatividade dos negros no universo roqueiro no Brasil.
Instado a se lembrar das bandas de rock brasileiras com integrantes negros, o baixista Chaene da Gama – que forma o Black Pantera ao lado de seu irm�o Charles da Gama (guitarra e voz) e de Rodrigo Augusto (bateria) – cita as veteranas representantes do punk Inocentes, de S�o Paulo, e Devotos, de Pernambuco; O Rappa, do Rio de Janeiro; a tamb�m carioca Crexpo; os conterr�neos da Clandestinos; e hesita em seguir com a lista.
Com efeito, a presen�a de pretos no cen�rio do rock brasileiro � historicamente escassa. Os dois momentos em que o g�nero mais esteve em evid�ncia no pa�s – com a Jovem Guarda, nos anos 60, e com a gera��o dos anos 80 – revelaram o quanto ele � desproporcionalmente mais branco do que negro. � poss�vel, naturalmente, pin�ar outros grupos formados por pretos, mas a disparidade seguir� gritante.
Chaene observa que quando o Black Pantera surgiu, chamou mais a aten��o pelo fato de ter dois pretos � frente do que propriamente por seu som.
“A imagem vende, claro, s�o dois caras pretos, com um baterista tamb�m miscigenado, fazendo som pesado. Isso causa um impacto. Mas tem o outro lado. Se fosse uma banda de brancos, fazendo o mesmo tipo de m�sica, imagino que estar�amos num est�gio mais avan�ado da carreira. Sendo pretos, nosso show tem que ser duas vezes melhor, o disco tem que ser melhor”, aponta.
Ele considera que o p�blico do Black Pantera � formado por quem se sente representado pelo que dizem as letras – vale aqui mencionar os t�tulos dos dois singles j� lan�ados que prenunciam o novo �lbum, “Padr�o � o caralho” e “Fogo nos racistas”, que n�o deixam margem de d�vida quanto ao discurso do grupo.
“Certamente, vai ter quem diga, com base num preconceito enraizado, que a banda � muito politizada, que s� fala de racismo, mas � disso mesmo que a gente quer falar”, aponta.
Convidada pela Black Pantera para dividir o palco Sunset no Rock in Rio, a banda pernambucana Devotos milita h� 30 anos na seara do punk rock (foto: Tiago Calazans / divulga��o)
"Tem muito negro comandando banda, tocando guitarra. Por isso � muito importante bandas como Devotos ou Black Pantera, que usam a m�sica como um modo de interven��o social, estarem num festival como o Rock in Rio; � positivo para a sociedade, para ela se ver. � positivo para a periferia, para o sub�rbio, tamb�m para abrir espa�o para essas bandas que est�o a�, espalhadas por todos os cantos"
Canibal, vocalista da banda Devotos
RECONHECIMENTO NO BRASIL
Com dois �lbuns completos j� lan�ados, em 2015 e em 2018, e v�rios singles de grande repercuss�o – como “I can’t breathe”, de 2020, composto ap�s o assassinato do norte-americano George Floyd pela pol�cia em Minneapolis –, o grupo chegou a se apresentar na Fran�a, Estados Unidos e Col�mbia antes de come�ar a efetivamente ter maior reconhecimento no Brasil. Ainda assim, segundo Chaene, os tr�s integrantes seguem trabalhando em of�cios distintos para garantir o sustento.
“� uma luta di�ria nossa, a gente ainda n�o consegue viver de m�sica. Tenho amigos que s�o modelos, pretos, lindos, e tamb�m n�o conseguem viver disso. O racismo estrutural elimina as chances de os pretos conquistarem seu lugar”, diz. “Mas n�s somos muito teimosos”, completa.
Ele considera que a escassez de negros no cen�rio do rock brasileiro reflete de modo amplificado uma realidade que se observa no ber�o do g�nero, os Estados Unidos, e que passa muito pela quest�o da apropria��o cultural.
“Essa coisa da representatividade realmente � complicada, e n�o deveria ser, porque o rock tem origem no blues, come�a com os escravos nos Estados Unidos. Ningu�m fala muito de Sister Rosetta, uma pioneira, grande rainha do rock, uma inspira��o para n�s, mas todo mundo sabe quem � Elvis Presley, que basicamente bebeu da m�sica negra. O branco vem, faz a mesma coisa que os negros j� vinham fazendo, e � a partir da� que essa coisa passa a existir. Sempre houve esse processo de apropria��o e o racismo que ele revela”, afirma.
APROPRIA��O CULTURAL
Vocalista da banda Pelos, de Belo Horizonte, que est� h� mais de 20 anos na estrada, Robert Frank tamb�m identifica no hist�rico de apropria��o cultural uma das causas da pouca representatividade dos pretos no cen�rio do rock.
“Sempre considerei o rock como o melhor exemplo do que � apropria��o cultural, isso de voc� tomar uma coisa para si e tentar apagar o que havia antes. Por mais que se tenha a idolatria aos grandes bluesmen ou a Jimi Hendrix, o padr�o contempor�neo do rock � basicamente de gente branca. A jovem guarda trazia essa ess�ncia da apropria��o norte-americana”, diz.
Tamb�m ator e artista visual, Robert acredita que o rock, no Brasil, n�o chega a ser propriamente um ambiente racista – ele apenas reflete o racismo estrutural do pa�s –, mas guarda algo de reacion�rio.
“Se voc� pega hoje em dia o p�blico roqueiro, tem uma grande parcela que � ligada aos movimentos de extrema-direita. A quest�o do racismo estrutural s� veio a ser discutida de forma mais ampla e incisiva recentemente, e a� � que a gente v� com mais nitidez o que acontece nessas esferas”, aponta.
A Pelos est� em fase de mixagem de um novo disco, ainda sem nome, com previs�o de lan�amento para agosto. Robert destaca, a prop�sito, que � “o trabalho mais preto” da banda, no que diz respeito �s tem�ticas e tamb�m � sonoridade, j� que incorpora elementos do soul e da black music, de forma geral.
“A gente discutiu muito esse disco antes de come�ar a criar. Todas as m�sicas vieram dentro desse processo de constru��o, que vem desde o ano passado. Com mais de 20 anos de atividade, come�amos a pensar o lugar em que a gente est�, o que a gente, enquanto uma banda majoritariamente preta, de rock, quer dizer para a geral.”
O grupo obteve aprova��o de um projeto na Lei Municipal de Incentivo � Cultura para a celebra��o de suas duas d�cadas de carreira. Est�o previstos para ocorrer ao longo deste ano quatro shows com formatos distintos: um compilando m�sicas de todas as fases do grupo; outro s� com vers�es de artistas que influenciaram a banda; um terceiro de lan�amento do novo disco; e um quarto com um formato mais reduzido, voltado para plateias e espa�os menores.
“Nossos planos passam por pegar a estrada mesmo, tocar muito, espalhar a proposta do novo disco e o que ele levanta em termos de discuss�o”, afirma Robert.
�s voltas com as comemora��es de seus 20 anos de trajet�ria, a banda Pelos prev� o lan�amento de um novo �lbum para agosto
(foto: Aurora Fotografia / divulga��o)
"Sempre considerei o rock como o melhor exemplo do que � apropria��o cultural, isso de voc� tomar uma coisa para si e tentar apagar o que havia antes. Por mais que se tenha a idolatria aos grandes bluesmen ou a Jimi Hendrix, o padr�o contempor�neo do rock � basicamente de gente branca. A jovem guarda trazia essa ess�ncia da apropria��o norte-americana"
Robert Frank, vocalista da banda Pelos
SONHO DE INF�NCIA
O an�ncio da participa��o da Black Pantera no Rock in Rio veio somente no in�cio de fevereiro, mas Chaene diz que o convite foi feito em 2020, e que o grupo n�o divulgou antes em raz�o de um contrato de confidencialidade.
Ele destaca que a banda sempre trabalhou muito para chegar aonde est� hoje, mas admite que o contato feito pela produ��o do festival os pegou de surpresa. “A gente ficou meio pasmo. No come�o, foi um choque, eu ficava me perguntando todo dia se era isso mesmo, porque � um sonho de inf�ncia”, ressalta.
O grupo vai abrir a programa��o, no primeiro dia do Rock in Rio, em 2 de setembro, recebendo como convidada a banda Devotos – j� que a proposta do palco Sunset � promover encontros. “A gente tinha um monte de op��es para escolher, mas chegamos a um consenso, porque o Devotos � uma refer�ncia, e tamb�m porque pensamos que vai ser muito interessante ter duas bandas pretas dividindo o palco na abertura do festival”, comenta.
Vocalista do Devotos, Canibal n�o hesita em apontar o racismo estrutural e os processos de apropria��o cultural como causas da pouca representatividade dos negros n�o s� no rock, mas em diversas outras esferas da vida social.
“Dentro do rock e da cultura negra, de forma geral, sempre houve apropria��o cultural e, ao mesmo tempo, a exclus�o de quem criou. � como no caso de Jesus Cristo, que era negro, mas a m�dia o traz para a sociedade como um branco de olhos azuis. No rock, voc� tem um criador, que � o Chuck Berry, mas o Rei do Rock � o Elvis Presley. No Brasil n�o muda nada. A apropria��o � grande demais e n�o oferece nada em troca”, diz.
ESTRUTURA RACISTA
Ele observa que h� muitas bandas de rock com integrantes pretos espalhadas Brasil afora, mas que elas est�o alijadas por uma estrutura racista da sociedade.
“O pa�s est� lotado de bandas de rock com pessoas negras, inclusive como frontmen; n�o s� na bateria, na percuss�o. Tem muito negro comandando banda, tocando guitarra. Por isso � muito importante bandas como Devotos ou Black Pantera, que usam a m�sica como um modo de interven��o social, estarem num festival como o Rock in Rio; � positivo para a sociedade, para ela se ver. � positivo para a periferia, para o sub�rbio, tamb�m para abrir espa�o para essas bandas que est�o a�, espalhadas por todos os cantos”, ressalta.
Tocar no Rock in Rio �, conforme aponta, um sonho de inf�ncia e uma grande oportunidade. “Criamos a banda para isso, para falar com todo mundo, n�o com a inten��o de mudar ningu�m, mas para abrir as mentes. As rea��es podem ser as mais diversas, mas acho que ningu�m vai ficar indiferente. Chico Science falava de divers�o com responsabilidade; � isso que vamos fazer no Rock in Rio, n�s e o Black Pantera”, afirma.
Canibal diz que ficou muito entusiasmado com o convite dos mineiros para dividir o palco Sunset. Ele considera que, por se tratar de duas bandas com integrantes pretos que transitam por g�neros afins – o punk, o hardcore, o metal –, a identifica��o j� existe naturalmente.
“Eles t�m um talento muito grande, ainda v�o ser muito falados, v�o rodar o mundo cada vez mais. Conseguiram fazer muita coisa em pouco tempo. O Black Pantera � uma banda necess�ria, precisamos de quem fale o que eles falam, porque a aliena��o est� muito grande nas periferias, dentro da sociedade como um todo. Se a gente n�o conversa sobre racismo, vamos ser engolidos”, salienta.
Em sua opini�o, a nega��o do racismo que veio se avolumando ao longo dos �ltimos anos, com a onda conservadora, � um tipo de desespero.
“N�s, negros, estamos nos articulando bastante, gra�as �s m�dias de que dispomos hoje. Temos Djamila Ribeiro, S�lvio Almeida, Emicida, Criolo, Clemente. Na pol�tica, Dani Portela foi a vereadora mais votada do Recife. E na elei��o anterior, foi uma branca, pastora. Essas mudan�as assustam aqueles que querem manter o status quo da branquitude”, diz.