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Estado de Minas ENTREVISTA

Vi�va de Jos� Saramago defende 'um futuro plural, livre e solid�rio'

No Brasil para uma homenagem ao centen�rio de nascimento do Nobel portugu�s, a jornalista e escritora Pilar Del Rio falou sobre pol�tica, literatura e esperan�a


11/05/2022 04:00 - atualizado 10/05/2022 19:52

de calça preta e jaqueta verde, sentada numa poltrona azul, Pilar Del Rio segura um livro com ambas as mãos
Vi�va do Nobel portugu�s de literatura, Pilar Del Rio participou na semana passada de homenagem ao centen�rio do nascimento do escritor, em Bras�lia (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 16.jul.2019)

A escritora e jornalista Pilar del Rio faz um alerta quando reflete sobre o contexto no qual Jos� Saramago (1922-2010) escreveu as cr�nicas de “A bagagem do viajante”, publicadas em livro no in�cio da d�cada 
de 1970. 

Naquela �poca, Portugal vivia uma ditadura que se arrastava por mais de tr�s d�cadas. Os textos de Saramago foram escritos sob o peso do autoritarismo real e declarado. Hoje, Pilar lembra que o Ocidente n�o vive uma ditadura formal e real, embora alguns estados estejam cara a cara com o autoritarismo. 

"Com o convencimento de que vivemos em democracia, estamos adormecidos, procuramos resolver nosso desespero culpando uns e outros, como se n�s, cidad�os, n�o tiv�ssemos responsabilidades. � preciso refletir sobre o sistema em que vivemos, se isto � uma democracia e qual a qualidade dela", afirma a escritora, vi�va do Nobel portugu�s autor de romances pungentes como “Ensaio sobre a cegueira” e “As intermit�ncias da morte”.

Pilar esteve em Bras�lia na �ltima quinta-feira (5/5) para participar de um evento de celebra��o do centen�rio de nascimento de Jos� Saramago, morto em junho de 2010. Organizada pela embaixada de Portugal e pelo Cam�es — Centro Cultural Portugu�s em Bras�lia, a exposi��o “A bagagem do viajante” promove um encontro dos personagens dos livros com personalidades da cultura lus�fona em pain�is distribu�dos por esta��es do metr� da capital federal. 

Com uma sele��o de textos do curador Carlos Reis e ilustra��es de Pedro Amaral, Nathalie Afonso, Carlos Farinha e Mathieu Sodore, a exposi��o � uma esp�cie de apresenta��o da obra de Saramago.

Obra que, para Pilar, tem muito a dizer sobre a contemporaneidade. "Jos� Saramago � um autor contempor�neo e a sua obra, que � deste tempo, expressa as nossas perplexidades, desola��es e tamb�m os sonhos que temos", diz a jornalista. 

"� um humanista do s�culo 21 que nos representa. N�o � que nos d� as respostas, n�o era um guru, o que encontramos na sua obra � a possibilidade do di�logo e do debate necess�rio a partir do qual nascem propostas."

'O que falta na nossa sociedade � isto, debater ideais, projetos, aprofundar nas reflex�es b�sicas e fundamentais: se n�o fazemos isso, se nos deixamos levar pela agonia cotidiana, deixaremos de ter peso como humanidade, seremos um rebanho levado e trazido � merc� dos mercen�rios'



“A bagagem do viajante” traz textos publicados entre 1969 e 1973 e cont�m a preocupa��o do escritor com um per�odo de opress�o e totalitarismo. Coincidentemente, vamos celebrar este livro de cr�nicas em um per�odo em que o mundo enfrenta uma onda de totalitarismo. Como o livro dialoga com os dias de hoje?

S�o tempos diferentes. As cr�nicas de “A bagagem do viajante'' foram escritas em plena ditadura, um per�odo de ditadura formal e real. Agora, no mundo ocidental pelo menos, dizemos que vivemos em democracia e por isso podemos nos expressar livremente, escolher os governos que queremos, sempre que estejam dentro daquilo que por conven��o decidimos ser aceit�vel.

Ou seja, vivemos em democracia e, por esse motivo, o assunto democracia teoricamente n�o nos preocupa, n�o questionamos se as decis�es tomadas s�o do povo e para o povo, se fortalecem a sociedade e ampliam o bem comum ou se, em realidade, o sistema est� criando bolhas cada vez mais impressionantes de pessoas que n�o t�m nada, nem presente nem futuro.

Voc�, Pilar, como tem encarado este novo ciclo pol�tico e social? Tem medo? Enxerga uma sa�da? Consegue elaborar uma explica��o para este momento, que parece prop�cio � instala��o de governos de extrema-direita?

Sim, tenho medo, acho que estamos nos aproximando de um abismo civilizacional maior do que pensamos. "Somos cegos que vendo n�o veem", escreveu Jos� Saramago. As consequ�ncias das mudan�as clim�ticas, das pol�ticas equivocadas, da ambi��o desmedida de grupos econ�micos transcontinentais, a amea�a de uma guerra mundial onde os canh�es s�o substitu�dos por armas nucleares, tudo isso d� medo, mas n�o me paralisa.

Tamb�m tenho uma certa esperan�a, confio na lucidez dos seres humanos e creio que muitos reagir�o. Vislumbro sinais de lucidez na nossa sociedade, nos jovens, em pessoas com forma��o e car�ter, nas pessoas generosas. N�o � s� a nossa vida o que devemos salvaguardar, s�o as vidas presentes e futuras, � a vida em si.

'Com o convencimento de que vivemos em democracia, estamos adormecidos, procuramos resolver nosso desespero culpando uns e outros, como se n�s, cidad�os, n�o tiv�ssemos responsabilidades. � preciso refletir sobre o sistema em que vivemos, se isto � uma democracia e qual a qualidade dela'



S�o 100 anos do nascimento do escritor. Na sua opini�o, como a obra dele envelheceu? Qual a atualidade nela contida? Como ler Saramago hoje?

N�o envelheceu, est� mais clara e n�tida do que nunca. Olhe qualquer um destes t�tulos, “Ensaio sobre a cegueira”, “Ensaio sobre a lucidez” ou “A caverna”. N�o estamos ali dentro, nesses lugares onde o que importam s�o os consumidores e n�o as pessoas?

E n�o � verdade que, embora tudo o que acontece no mundo, nenhum de n�s queira morrer e esperamos que o amor nos salve da morte, como acontece nas “Intermit�ncias da morte”?

O que falta na nossa sociedade � isto, debater ideais, projetos, aprofundar nas reflex�es b�sicas e fundamentais: se n�o fazemos isso, se nos deixamos levar pela agonia cotidiana, deixaremos de ter peso como humanidade, seremos um rebanho levado e trazido � merc� dos mercen�rios.

O s�culo 21 trouxe uma maneira nova de encarar o processo de envelhecer? Como a pandemia trouxe novas perspectivas nesse sentido?

Acho que, se n�o somos rebeldes, insubmissos, ousados, se, como sociedade, nos limitamos a reproduzir gestos e maneira, envelhecemos — e muito. Se a �nica sa�da que vemos � o conformismo, a resigna��o e a droga, envelhecemos mais depressa.

Se nos limitarmos a representar o papel que quem manda no mundo quer nos atribuir, seremos velhos e tristes. Se n�o nos resignarmos, se mantivermos a raz�o e a consci�ncia em ordem (as duas grandes qualidades humanas), podemos fazer anos, sim, mas nunca seremos material descart�vel. E podemos, claro que podemos — ser� quest�o de vontade — organizar-nos em sociedade.

'Se nos limitarmos a representar o papel que quem manda no mundo quer nos atribuir, seremos velhos e tristes. Se n�o nos resignarmos, se mantivermos a raz�o e a consci�ncia em ordem (as duas grandes qualidades humanas), podemos fazer anos, sim, mas nunca seremos material descart�vel'



Como a pandemia vai ou pode mudar a maneira como o homem se relaciona tanto com a natureza quanto em sociedade?

A pandemia n�o nos muda, seremos n�s, se aprendemos algo, quem construiremos algo diferente. Insisto na frase de Saramago, agora com uma interroga��o: Seremos cegos que vendo n�o vemos?. � preciso que os governos e as pessoas aprendam, tirem li��es, se � que j� n�o nos esquecemos o que � aprender. Viver a vida e ser feliz a cada dia � um direito e um dever nosso.

Qual o maior impacto deixado pela pandemia?

Que somos fr�geis, muito fr�geis, e tampouco queremos nos fortalecer. Que existe a Declara��o de Direitos Humanos e n�o a conhecemos, que somos seres de direito e deixamos que nos tratem como pura estat�stica, que sendo seres de direitos somos tamb�m seres de deveres, e como tal temos que dar as nossas opini�es, pensar projetos, exigir que o dinheiro dos nossos impostos seja melhor aplicado, enfim, conviver.

Podemos propor novas formas de conviv�ncia. Que bonita palavra: conviv�ncia. Espero que agora, no Brasil, ela surja com for�a depois de tantos anos de ego�smo e desconfian�a. Por um futuro plural, livre e solid�rio: seria essa a li��o que poder�amos tirar desse horr�vel per�odo de pandemia, acentuado pela pol�tica da desumaniza��o. 



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