
“Di�rio do medo” � o segundo livro do autor a sair no Brasil, ap�s 13 anos da publica��o do volume de contos “Filhos da p�tria” (Record, 2008). Segue a mesma trilha de sua produ��o ficcional e po�tica, que funde lirismo e invent�rio da realidade social, dando sequ�ncia � preocupa��o do autor com os dilemas ancestrais ou contempor�neos, agu�ados nesses tristes tempos. Constitu�do de poemas escritos entre mar�o e dezembro de 2020, o conjunto enfeixa uma poderosa cr�nica do desassossego num universo conflagrado ap�s a eclos�o do v�rus que instaurou n�o apenas uma crise sanit�ria global, mas revelou nossas fragilidade e impot�ncia diante de um inimigo invis�vel, expondo dilemas e contradi��es pol�tico-institucionais dos agentes respons�veis pelo seu combate.
Mergulhando no universo esconso da pandemia, essa escritura transp�e o cen�rio da doen�a, que delimita uma experi�ncia dist�pica, para amplificar seu espanto ao imergir noutros dramas que afetam a humanidade. O autor revisita temas, demandas e quest�es convergentes, tateando o desmoronamento de uma sociedade que h� muito vem sendo desumanizada por v�rios conflitos, como os �xodos provocados pela fome, pela mis�ria, pelo terrorismo, pelas persegui��es pol�ticas e pelo fundamentalismo religioso, esse novo e criminoso apartheid com suas horrorosas faces criando di�sporas e expondo o horror e a humilha��o dos refugiados.
Ao percorrer esses territ�rios, em vi�s intertextual, Jo�o Melo dialoga com outros autores e obras, invocando Hissa Hilal (“Toda a poesia/ aparentemente simples/ e desesperada/ � radical e necess�ria)”, dirige-se particularmente ao Brasil (“Carta-tambor aos meus amigos brasileiros”, “Ainda: poema para esquecer Gullar ou talvez n�o”, “Certas balas” e “Carne negra” – dedicado a Elza Soares) e homenageia �cones universais das lutas sociais, como em “Mural”, “Lamento para Guayaquil’, “Tirem o joelho do nosso pesco�o”, “Betty and Curtis” e “R�quiem para Maradona”, poemas que evocam as tantas v�timas, famosos ou n�o, da pandemia, da desigualdade, da opress�o pol�tica e de outras conting�ncias hist�ricas.
Concluindo seu rol de indaga��es, o poeta questiona o cotidiano colapsado por lit�gios, surtos de viol�ncia, em en�rgica e cat�rtica inquiri��o: “Isso aconteceu mesmo? Ou amanh� acordaremos todos/ com a cabe�a na mesma almofada/ pu�da, ensanguentada e acomodada/ da Hist�ria?”. E seu grito de advert�ncia – “O que diremos amanh� sobre o que nos aconteceu?” – � para tamb�m relembrar os guantes de a�o sobre popula��es vulner�veis, as botas assassinas e os m�sseis de �dio que atingiram George Floyd, Marielle Franco, Bruno Cand�, Khadouj Makhzoum, Lorna Breeen & tantos outros “inc�modos mortos” que ca�ram v�timas da intoler�ncia, da exclus�o e dos preconceitos nesse “Tempo de invis�veis amea�as,/ tempo de susto,/ tempo de medo espalhando-se/ como sangue putrefato/ pelas veias dos homens/ e do mundo.”
Na esteira de sua trajet�ria p�blica como jornalista, deputado por v�rios mandatos e ex-ministro da Comunica��o Social do seu pa�s, “Di�rio do medo” consolida a trajet�ria de um escritor militante, cuja voz acutilante tem se levantado contra as dores, tormentas, contenciosos e lutos da humanidade, destacando-se no mundo da lusofonia.
Para encerrar, um lembrete: "Di�rio do medo" n�o � o livro mais recente de Jo�o Melo. Depois de 22 livros de poesia, contos e ensaios, o angolano lan�ou o primeiro romance na �ltima ter�a-feira, em Lisboa. "Ser� este livro um romance?" (Editorial Caminho) ganhou apresenta��o do compatriota Jos� Eduardo Agualusa.
* Mineiro de Cataguases, o escritor Ronaldo
Cagiano mora em Lisboa e � autor de livros
como “Cartografia do abismo” e “Eles n�o moram mais aqui”