(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas AS ESTRELAS RENASCEM

Com 'O p�caro b�lgaro', Aut�ntica conclui reedi��es de Campos de Carvalho

Dono de humor peculiar, autor mineiro questiona a realidade no seu derradeiro romance, lan�ado originalmente em 1964


06/05/2022 04:00 - atualizado 06/05/2022 13:17

ilustração do Quinho
Rei da iconoclastia, Campos de Carvalho gostava de ser chamado de 'o �ltimo satanista da literatura brasileira' (foto: Quinho)

“Se a Bulg�ria existe, ent�o a cidade de S�fia ter� que fatalmente existir”, escreve Walter Campos de Carvalho na abertura de “O p�caro b�lgaro”, o �ltimo dos romances (ou novelas, ou sabe-se l� que melhor nome se pode dar ao que ele escreve), relan�ado pela editora Aut�ntica.

H� em geral um interesse maior pelos �ltimos quatro textos, o que relega os ensaios humor�sticos de “Banda forra” (1941) e o primeiro t�tulo de fic��o “Tribo” (1954), a uma esp�cie de limbo dentro da trajet�ria de Campos de Carvalho, que � de ter se colocado um tanto � margem do sistema liter�rio e s� lentamente da� estar sendo, aos poucos, retirado. “Mineiro e espor�dico”, decretou M�rio Prata numa cr�nica em "O Estado de S.Paulo", para definir Campos de Carvalho, ali�s, seu primo, nascido em Uberaba, em 1916. 

Em 1995, tr�s anos antes da morte do autor, a Editora Jos� Olympio tentou uma retomada, com o lan�amento de “Obra reunida”. Constam dele os quatro �ltimos livros, com t�tulos geniais: “A lua vem da �sia”, de 1956; “Vaca de nariz sutil”, de 1961; “A chuva im�vel”, de 1963; e justamente “O p�caro b�lgaro”, de 1964. 

A editora Aut�ntica relan�ou os mesmos t�tulos, mas em volumes separados. O projeto chega ao fim com “O p�caro b�lgaro”, a n�o ser que se decida recuperar tamb�m os t�tulos iniciais, o que talvez fosse bem interessante. 

Leia tamb�m: 
Reedi��es de 'A estrela sobe' e 'Oscarina' recuperam Marques Rebelo
O escritor Nelson de Oliveira, na apresenta��o do livro de Juva Batella “Quem tem medo de Campos de Carvalho?” (7Letras), relembra que o escritor gostava de ser chamado de “o �ltimo satanista da literatura brasileira”. Rei da iconoclastia, Campos de Carvalho concedeu entrevistas hil�rias em que d� declara��es estapaf�rdias, reproduzidas pelos jornalistas. Perguntado com qual dos personagens mais se parecia, disse que com nenhum: “Sou louco � minha maneira”. Ou, em outra parte: “S� � doido quem n�o �”. O tom iconoclasta, ali�s, certa vez o fez escrever: “� mais f�cil eu existir do que Deus”. 

Tamb�m colaborou com cartas imagin�rias e com uma coluna chamada “Anais de Campos de Carvalho” para o semanal “O Pasquim”, na d�cada de 1970. Num dos textos das colunas, escreve: “Quando soube que em Copacabana havia apenas meio metro quadrado de �rea verde para cada habitante, tratei logo de mudar-me para Petr�polis: n�o que eu pretendesse ali pastar, evidentemente”. Mas depois sumiu do radar e permaneceu assim, � parte. 

Quando fez 80 anos, em entrevista � "Folha de S.Paulo", ele estava h� 32 anos sem publicar livros e nem de longe parecia arrependido. Segundo a reportagem, com mais enfado do que amargura, declarou: “Meu editor, Jos� Olympio, disse que eu s� seria reconhecido depois de 30 anos. E, agora que todos esses anos se passaram, nenhuma linha na imprensa”. 

Verdade que h� sil�ncios e sil�ncios. Raduan Nassar escreveu uns quantos livros e depois parou de publicar, mas a obra tem enorme repercuss�o. Dalton Trevisan e Rubem Fonseca pararam de falar com o p�blico, mas nunca de lan�ar novos t�tulos. Campos de Carvalho viu crescer em torno de si um sil�ncio que at� hoje n�o foi devidamente superado, e que em alguma medida ele mesmo fomentou, embora exista um interesse que parece voltar a ser ativado de tempos em tempos, por exemplo, com estudos como o de Juva Batella e o de Augusto de Guimaraens Cavalcanti, “Campos de Carvalho contra a l�gica” (7Letras). Pela mesma editora, Cavalcanti tamb�m lan�ou uma biografia imagin�ria do escritor, o romance “Fui � Bulg�ria procurar por Campos de Carvalho”. 

Em torno da obra forma-se, entre os admiradores, uma esp�cie de confraria, argumenta Nelson de Oliveira, que conheceu o escritor e escreveu um livreto em homenagem a ele, “Campos: retratos surrealistas”, distribu�do entre amigos. Mas n�o seria mal se os leitores decidissem tirar o atraso dos c�lculos de Jos� Olympio e colocar o escritor no devido lugar dentro da hist�ria da literatura brasileira, expandindo a confraria para al�m das fronteiras da Bulg�ria. 

O mais recente relan�amento

“O P�CARO B�LGARO” (1964)

O narrador do livro diz ter visitado o Museu Hist�rico e Geogr�fico da Filad�lfia no ver�o de 1958, quando se deparou com um p�caro (um vaso com asa) b�lgaro. De volta ao pa�s natal, escreve ao diretor indagando se o que viu era mesmo p�caro e, sendo, se era mesmo b�lgaro. Come�a a� uma sistem�tica indaga��o a respeito do que se entende por realidade e pelo sistema de cren�as que afinal os humanos estabelecemos para viver. Por que se acredita naquilo em que se acredita, seja o que for. O livro ensina a duvidar, algo que normalmente se faz, mas n�o com tanta propriedade ou m�todo como o texto ensina. Al�m do senso de humor muito peculiar, claro. A Bulg�ria, explica-se, � “sobretudo um estado de esp�rito. Como Deus, por exemplo”. 

Come�a, ent�o, a ser preparada uma expedi��o para que se possa investigar a fundo, de prefer�ncia “in loco”, o problema da pucaricidade ou da bulgaricidade das coisas. Numa nota de rodap�, aventa-se a possibilidade de o autor “escrever um tratado b�lgaro provando a inexist�ncia dos demais pa�ses”. Porque da Bulg�ria, amigos, voc�s duvidar�o todos, se ler o livro. Eis a� algo que se pode afirmar com seguran�a. 

A conclus�o poss�vel — evidente que para ser desmontada — � a de que “o tal mito b�lgaro continua a ser cada vez mais e apenas um mito”, ali�s como muitos que circulam por a�, impunemente. 

A expedi��o, no entanto, � pretexto para se refletir a respeito disso ou daquilo, por exemplo: “O que faz o governo para distribuir t�o mal suas escurid�es � o que ningu�m sabe; e o que Deus tamb�m faz, muito menos”. H� mais de dois anos perseguido por uma ideia, “sou eu agora que a persigo”. 

A procura por volunt�rios rende um bando de pessoas atacadas por “bulgarite aguda”: um professor de Bulgarologia, Radam�s Stepanovicinsky, natural de Quixeramobim, no Cear�; Ivo que viu a uva; Expedito, “que pelo nome foi imediatamente incorporado � expedi��o”; e um marinheiro fen�cio que n�o se identifica. Por fim, um algebrista, mas que deseja fundar na Bulg�ria “uma f�brica de acentos circunflexos”, desde que a l�ngua b�lgara n�o os tenha, � claro. 

A expedi��o n�o chega a ultrapassar as fronteiras, mas n�o faz falta, porque ningu�m mais sabe mesmo onde situ�-las. N�o � toa, o narrador diz: “A continuar assim, ainda acabaremos empreendendo uma expedi��o para descobrir a n�s mesmos”. Mal n�o seria. 

*Paulo Paniago � professor de  jornalismo da Universidade de Bras�lia

Trecho de “O p�caro b�lgaro”

“— A primeira condi��o para se ir � Bulg�ria, e j� n�o falo ‘para chegar at� l�’ — continuou o professor acariciando o gato — � acreditar piamente que ela esteja ao alcance da nossa m�o, como este belo gato est� sempre ao alcance da minha m�o, t�o ao alcance que �s vezes chega a confundir-se com ela. 

— De inteiro acordo — falei por falar. 

— O fato de se ir procur�-la n�o quer dizer que j� n�o a tenhamos achado, ou mesmo que nela n�o moremos desde o in�cio dos s�culos, como � exatamente o meu caso. Ou o senhor pensa que sou o maior bulgar�logo vivo apenas por haver estudado profundamente os costumes dos b�lgaros, a sua pr�-hist�ria e sobretudo a sua n�o hist�ria?

Fiz-lhe com a cabe�a que n�o tinha a menor ideia a respeito. 

— Os b�lgaros, veja o senhor, mesmo que n�o existissem passariam a existir desde o momento em que eu vim ao mundo. Pois, assim como minha m�e me concebeu, eu concebi todas as Bulg�rias presentes, passadas ou futuras, e sem a ajuda de nenhum pai, o que � mais importante.”

Outros livros do autor

“A LUA VEM DA �SIA” (1956)

“Aos dezesseis anos matei meu professor de l�gica”, come�a o narrador dessa prosa. Mas foi leg�tima defesa, acrescenta. Deixa crescer a barba em pensamento, muda-se para uma ponte sob o Rio Sena, embora nunca tenha estado em Paris e da� a pouco o leitor entende que se trata de um alienado, metido talvez num hosp�cio: “Me jogaram neste hotel de luxo onde os gar�ons, o gerente e o subgerente andam todos de branco”. N�o fica dif�cil perceber que Astrogildo (ou que nome tenha) fala em nome de Campos de Carvalho quando escreve: “A palavra foi dada ao homem para blasfemar contra o seu destino, e a palavra escrita � a verdadeira palavra, como o defunto � o �nico homem verdadeiro, em sua mudez total. (Mudez ou nudez, leiam como quiserem)”. A gente l�. (Paulo Paniago)

“VACA DE NARIZ SUTIL” (1961)

� parte as brincadeiras textuais muito evidenciadas, como “pago a pens�o com a pens�o que o Estado me paga pelo meu estado”, o livro tem como tema de fundo a situa��o aflitiva desencadeada pelas guerras. Embora, na apar�ncia, tenha algo de superf�cie pict�rica, a partir da brincadeira de que a sutileza do t�tulo n�o corresponde com a brutalidade animal... da vaca, por exemplo. A recorr�ncia do tema da morte ao longo do texto d� um tom tamb�m algo sombrio e mostra a capacidade de Campos de Carvalho de operar em registros distintos dentro de uma paleta de largo espectro, mas sempre oscilante entre o nonsense, o absurdo e as indaga��es mais penetrantes que se possa conseguir. (PP)

“A CHUVA IM�VEL” (1963)

Se chuva �, para o comum dos mortais, movimento de �gua, aqui neste livro a hist�ria � outra. Texto �spero, escrito depois que Campos de Carvalho perdeu um irm�o, o livro reflete de modo mais denso as inflex�es existenciais que sempre foram uma marca importante para o escritor. Um del�rio, entre l�rico e filos�fico, molda o/a narrador/a Andr�/Andr�a. O humor desenfreado dos outros livros est� muito mais contido neste texto, ou pelo menos se apresenta de outra forma. H� uma sensa��o sufocante mesmo de imobilidade em tudo que deveria estar em movimento, o que refor�a a ideia de paradoxo. Sonhar, dormir, morrer, tudo parece fazer parte do mesmo andamento. (PP)

capa do livro 'O PÚCARO BÚLGARO'

 “O P�CARO B�LGARO”
Campos de Carvalho
Aut�ntica
112 p�ginas
R$ 59,80 
R$ 41,90 (e-book)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)