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Estado de Minas LITERATURA

Em 'Baixo Araguaia', Maria Lutterbach traz muta��es do interior brasileiro

Romance da escritora mineira conta a hist�ria de uma adolescente que passa pelo crescimento desenfreado do Centro-Oeste do Brasil


06/05/2022 04:00 - atualizado 06/05/2022 00:44

Escritora mineira Maria Lutterbach
Lutterbach divide o livro em tr�s partes, e cada uma � subdividida em pequenos cap�tulos com nomes de bichos (foto: DIVULGA��O )

Chama a aten��o logo nas primeiras p�ginas de “Baixo Araguaia” a aus�ncia de adjetivos de par com descri��es detalhadas, o que arrasta o leitor para longe de qualquer suposta zona de conforto. “Ainda n�o sabemos qual � o rosto da mo�a que respondeu pela janela quando anunciamos nossa chegada no port�o. (...) Fica dentro desse �nico quarto para que eu possa catalogar bibel�s, muitos paninhos (no fog�o, na mesa, na TV, no botij�o de g�s, na geladeira e nos dois bra�os do pr�prio sof�) e um rel�gio de parede dourado em formato de rel�gio de pulso. Pela fresta da porta do banheiro, vejo tamb�m v�rios potes de cremes e perfumes da Avon arrumados por ordem de tamanho na prateleira em cima da pia: Top�zio, Charisma, Toque de Amor.”

O invent�rio das coisas e cen�rios numa n�o nomeada cidadezinha no Centro-Oeste brasileiro � quase opressivo, porque � de tal subst�ncia silenciosa e visguenta que a novela se comp�e. “O sol do Centro-Oeste deixa a pele sempre bronzeada, mas � t�o forte que �s vezes derrete nossa vontade de viver.” Tamb�m em raz�o da perspectiva do narrador: uma menina de 13 anos que luta pela expansividade num lugarejo in�spito cortado pela BR-158, cujos horizontes aparecem como possibilidade remota de fuga ainda que “com a estrada t�o ali ao lado, n�o parece dif�cil escolher uma das dire��es e ir embora”.

� contra essa conformidade das coisas e pessoas, contra o bafio �mido e sumarento do clima e a imobilidade que aprisiona os habitantes, que a menina vai se deparar na sua tentativa de conquistar algo que se anuncia, para ela, como liberdade. Ainda que “(...) n�o acontece nada com meninas como n�s, que se metem sozinhas em estradas de terra no meio do mato, porque aqui nunca acontece nada, nem coisa ruim.”  (grifo meu).

Da� que o sil�ncio perpassa a trama como bem-sucedida estrat�gia narrativa. Sil�ncio que assenta nas p�ginas como o p� vermelho que cobre tudo na vila, que solda as rela��es com o pai, este descrito como miragem. Sil�ncio que leva a narradora a refletir sobre a natureza do amor ao se deparar com o namoro de dois adolescentes.

“Ela diz que os dois n�o t�m muito o que conversar e passam horas quase em sil�ncio, mas sem vontade de sair um de perto do outro. Ent�o deve ser isto namorar: dar um ou dois beijos no meio de sil�ncios compridos.” (grifos meus) Na rela��o entre m�e e padrasto: “Aqui em casa as brigas s�o em sil�ncio”. O am�lgama afetivo d�-se mais com a empregada Solange e a amiga Cris e de forma corp�rea com dois adolescentes objetos do incipiente, amedrontador e incontrol�vel desejo da narradora.

 “Baixo Araguaia” � dividido em tr�s partes e cada uma delas � subdividida em pequenos cap�tulos com nomes de bichos; nem todos da fauna local, como elefante e cisne, por exemplo. Cada divis�o remete ao crescimento de animal alado: O ovo; A asa; O voo. Outro recurso editorial s�o os raros di�logos, ou antes locu��es, dos personagens, com aumento dos tipos e espa�amento na mancha de texto. Esses procedimentos editoriais, a meu ver, desviam o leitor para a pot�ncia do texto. Ainda que se trate de fragmentos num curto tempo de a��o, a narrativa acentuadamente compactada, de forte expressividade pl�stica, ganharia mais se corresse livre de obst�culos – sem desmerecer a de resto zelosa edi��o. Penso como exemplo do que comento os livros de Mar�lia Garcia, onde a compartimenta��o opera pequenas decalagens, como manifestamente a pr�pria poeta carioca insinua em teste de resistores.

LITERATURA S� OSSO

 Num momento em que a literatura brasileira, como aponta Flora Sussekind, volta-se para o beletrismo e o neonaturalismo como categorias chanceladas pela academia e absorvidas pelo p�blico – o restrito p�blico leitor de literatura adulta no Brasil –, e de certa tend�ncia ao regionalismo e explos�o identit�ria amarrado a quest�es de cor e g�nero quase para n�o dizer de forma ampla documental – quero frisar que tais quest�es s�o de enorme relev�ncia para a cultura e o amadurecimento social de na��o desigual, mas que em termos est�ticos ou nada acrescentam ou tem efeito regressivo, “Baixo Araguaia” tem qualidades – com o perd�o de superlativizar, mas j� o fazendo – excepcionais.

Listo brevemente as que me chamaram mais a aten��o. O ritmo das ora��es curtas, aus�ncia de autocomplac�ncia, evoca��o de sinestesias (� poss�vel sentir o calor dantesco, a acidez do suor, a do�ura do sangue, a inclem�ncia da luz), controle narrativo, elis�o sem exagero, nenhuma folcloriza��o, zero glamouriza��o.

Estamos nos anos 90, num per�odo imediatamente anterior ao momento de estabiliza��o pol�tico-econ�mica que vir� a partir do Plano Real e dos governos do PSDB e PT, durante o qual o pa�s se fortalece institucionalmente e nova classe m�dia emerge. A personagem e narradora vive numa �rea do Par� ou de Goi�s (n�o se identifica cidade ou estado, mas se presume a partir da BR e do trecho do rio que nomeia o livro) com m�e e padrasto, que para l� se deslocaram, como centenas de milhares de brasileiros, em busca de oportunidades. Momento de transi��o e abertura econ�mica, in�cio do neoglobalismo e neoliberalismo, que convivem com organiza��es mais arcaicas.

H� flashes da nova coloniza��o com fazendeiros e suas caminhonetes – emerg�ncia do agro, do novo agro de comodities que regressivamente minar�o o parque industrial brasileiro. As divers�es s�o poucas, a televis�o parab�lica ainda n�o fincou como matriz de entretenimento: o clube Nacional (institui��o t�o presente nas pequenas cidades argentinas e uruguaias e que se apresentam na literatura daqueles pa�ses como em “Respira��o artificial”, de Ricardo Piglia, ou em “Santa F�”, de Onetti); pequenas festas, deslocamentos em bicicleta, longa viagem em estradas prec�rias num Gol (carro popular da nova classe m�dia e que veio a substituir o Fusca – o russo Niva, citado na novela, foi o primeiro carro da “abertura dos portos” do governo Collor).

Tudo como se v� muito prosaico, nenhuma idealiza��o, profundo t�dio, vidas sonolentas, sestas duradouras, pestanejar de adultos. No meio disso, o despertar desejante da menina cujo nome nunca saberemos e � �timo que assim seja. Essa defasagem de ideal e glamour est� na pr�pria economia da linguagem, que, embora arraste tudo, n�o arrasta muito porque n�o h� grande coisa a abarcar – a imagem do remanso me veio � mente. Contudo, � por dentro, mas sem que se nomeie, que pulsa o cora��o selvagem da adolescente ou, como se autodescreve, a pr�-adolescente. No primeiro beijo e finalmente na primeira experi�ncia sexual (aqui a mancha vermelha entre p�ginas � a exce��o que funciona no projeto editorial).

H� correla��o com a gata que emprenha; imagem que ligeiramente for�a a barra como equival�ncia do rito de passagem da pr�pria narradora. Mas � na chegada do circo e na figura admiravelmente bem descrita da jovem acrobata que o desenlace se faz; ocorr�ncia que do meu ponto de vista encaixa-se na melhor parte de “Baixo Araguaia”, a �ltima.

O invent�rio das coisas parece ceder ao sonho e ocupar a impossibilidade da expans�o e mesmo o pouco de interioriza��o limita-se ao visto, como � o caso do primeiro cap�tulo da terceira parte, quando a narradora desvela a fam�lia de ciganos, ou que ela imagina cigana, hospedada numa casa ao lado da sua.

“Nessa noite, sonho com a partida deles. Mesmo com pouca luz, os ciganos s�o r�pidos em juntar a bacia de alum�nio, os talheres e outros objetos espalhados pelo lugar, armando trouxas grandes e colo-ridas. � o menino quem cuida de desamarrar ao lado das cinzas e ela logo alcan�a o alto do c�u. Sempre alguns metros � frente da fam�lia, a �guia mostra o caminho, soltando uns gritos de festa por voar.” Numa vila de popula��o transit�ria, chegada e partida s�o polos referenciais de atra��o e repuls�o, e a presen�a de novos moradores – a exemplo dos tr�nsfugas do par�grafo anterior – opera deslocamentos decisivos.

A gera��o feminina a que pertence a autora-narradora ainda convive com formas submissas de educa��o com gradual permissividade nos costumes; transforma��o que j� alcan�ava classes m�dias urbanas e h� pelo menos duas d�cadas retinha resqu�cios tradicionais na prov�ncia, sobretudo entre a baixa classe m�dia. As idas � igreja e a primeira comunh�o da personagem s�o flagrantes a respeito disso.

Lido sob a perspectiva de implica��es sociol�gicas, “Baixo Araguaia” � retrato dum pa�s em franca transforma��o, conquanto saibamos que a d�cada de 90 operou inflex�o de liberdades individuais e o retorno de fundamentalismos no campo religioso com o alastramento do neopentecostalismo.

A ESPERADA PASSAGEM

H� o despertar do desejo e da posse dele pela menina rec�m-ingressa na puberdade e que sonha controlar seus passos, se descolando do n�cleo fam�lia meio esfacelado, que quer ganhar o mundo numa cidade grande, e nessa passagem o circo – divers�o arcaica nos grandes centros, mas ainda fulgurante de miragens em localidades remotas – funciona como a esperada passagem, ou a fuga emancipat�ria. � semelhan�a do sonho com a �guia al�ando voo, ao conhecer ou observar a acrobata Sarita, o universo on�rico torna-se novamente rota de fuga e liberdade.

“No meu sonho dessa noite, Sarita surge com uma roupa de gala violeta em um enorme cortejo de elefantes que interrompe a rodovia. Ela tem uma seta luminosa em cada m�o e aponta para a esquerda e para a direita, olhando para mim, enquanto repete:
– Basta escolher uma das duas dire��es, queridinha, n�o � fan-t�s-ti-co?

� a partir da vis�o da menina acrobata e sua promessa de romper a cris�lida asfixiante que “Baixo Araguaia” d� como que pirueta narrativa na parte final, onde o desejo de ir embora se torna antes pot�ncia n�o realizada, mas descrita ou projetada , embara�ando realidade e sonho, e desorientado o leitor, isto �, realizando o que s� a literatura (a arte) � capaz de realizar.
capinha do livro Baixo Araguaia
(foto: Editora Quel�nio/Divulga��o)

BAIXO ARAGUAIA
• Maria Lutterbach
• Editora Quel�nio
• 100 p�ginas
• R$ 56
• Lan�amento amanh� (7/5), das 11h �s 14h, na Quixote Livraria – Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, em Belo Horizonte



* Andr� Nigri � jornalista e escritor, autor dos livros  “Paralisia” e “Com a corda no pesco�o”



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