
Rebeca Maia*
Dou mais um gole na terceira cerveja da noite. A cada golada penso que pode ser a �ltima cerveja da minha vida. Quem sabe o que pode acontecer daqui a cinco minutos? Ou no pr�ximo instante? A vida � um v�o, uma lacuna a ser preenchida. H� tr�s anos eu n�o esperava que estaria aqui, neste bar, tomando cerveja sozinha enquanto observo o ambiente, as pessoas e reflito sobre tudo o que aconteceu e o que pode acontecer. H� tr�s anos eu n�o me permitia experimentar sequer esse copo de cerveja amarga, ouvir um pouco de m�sica brega e “desqualificada” ou tentar entender um ponto de vista que n�o fosse an�logo ao meu.
Alguns acham que eu amadureci, outros acham que eu surtei e a qualquer momento vou cair na real. Eu s� sei que hoje eu detesto quem eu era h� tr�s anos. E, claro, pode ser que daqui a outros tr�s anos eu abomine quem eu sou hoje. N�o h� como saber. � bom n�o saber.
Eu n�o preciso ser oito ou oitenta, o fato de eu vestir uma roupa da moda ou um vestido curto n�o me desqualifica e nem quer dizer que sou uma pessoa inculta. Adoro livros e maquiagem, casa e viagem, balada e cinema. Fa�o dieta, vou � academia e discuto pol�tica. Detesto r�tulos, estere�tipos e mente fechada. Tenho ci�me, contudo, valorizo privacidade. Sou simb�lica, importo-me com datas e amo ganhar presentes. Sou rude e gentil, talvez na mesma propor��o. Gosto de elogios e tenho dificuldade com cr�ticas, embora acredite que a verdade sempre vale a pena.
Outro gole na cerveja. Olho para a porta. Espero a chegada de Arthur. Estamos nos divorciando. Foram necess�rias v�rias escolhas erradas e ideias destoantes para que perceb�ssemos que n�o era pra ser. Jamais dar�amos certo. O amor era engano.
Voc� pode amar v�rias pessoas no decorrer da sua exist�ncia, mas o amor da sua vida, ele � um s�, mesmo que n�o seja pra sempre. Pode ser que voc� tenha se enganado no meio do caminho, todavia, um dia, voc� saber�.
Gosto de me imaginar velhinha, deitada em um leito, prestes a morrer… Logo outro velho, t�o enrugado quanto eu, aproxima-se, segura minha m�o e declara seu amor com lindas palavras. Eu sorrio, ele � meu terceiro marido, eu o amo, mas n�o � meu amor maior. Eu sei disso porque meu segundo marido, pai dos meus filhos, deixou-me h� v�rios anos e o amor que sinto por ele ainda permanece vivo. E mesmo que a morte o tenha levado, sou imensamente grata � vida por ter compartilhado com ele minha juventude, vida adulta e parte da velhice.
Alguns dizem que o tempo cura qualquer dor. Ele cura, mas n�o apaga as marcas, as cicatrizes. Cada cicatriz tem uma hist�ria, um evento que remete �s lembran�as do passado, sejam elas alegres ou melanc�licas. Amo minhas cicatrizes da inf�ncia, pois elas lembram qu�o aproveitados foram aqueles anos pueris. Brincadeiras nas ruas, pega-pega, esconde-esconde, rouba-bandeira… Na adolesc�ncia, novas feridas, algumas foram de tombos t�o graves que elas insistem em sangrar at� hoje. O b�lsamo do tempo ainda n�o as curou por completo. Ah, juventude! Promessas vagas, sonhos a longo prazo, viagem e descoberta. Erros e incertezas. Choros e risos. Amores e dissabores.
Bebo as �ltimas gotas de cerveja do copo. Arthur cutuca meu ombro, ele carrega um envelope pardo nas m�os. Eu sorrio e pego a caneta que est� na bolsa. L� fora, uma nova era come�a. � preciso prosseguir.
Sobre a autora
Graduada em letras pela Facisa, Rebeca Maia � coautora de artigo sobre a melancolia na obra “Perdas e ganhos”, de Lya Luft, e da monografia “A encena��o do sujeito em ‘Lorde’, de Jo�o Gilberto Noll”. � revisora e professora de l�ngua portuguesa e literatura na rede municipal de Belo Horizonte.

“Cerveja amarga”
.Rebeca Maia
.Editora Ip�amarelo
.80 p�ginas
.R$ 35
.Lan�amento s�bado (7/5), das 11h �s 18h, na Cervejaria Harpearia – Rua Rubi, 106, Prado, em Belo Horizonte