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Estado de Minas LITERATURA

Escritoras p�em o dedo na ferida da emp�fia da elite brasileira

Romances de Eliana Alves Cruz e Clara Drummond fotografam o comportamento dos muito ricos que praticam desprezo pelos pobres e autoengano sobre si mesmos


26/07/2022 04:00 - atualizado 26/07/2022 09:03

Pendurados em assentos que deslizam por mecanismos de roldana, três trabalhadores lavam estrutura de vidro do Museu do Amanhã
Trabalhadores desinfetam o Museu do Amanh�, no Rio de Janeiro, para sua reabertura, em 4 de setembro de 2020 (foto: MAURO PIMENTEL/ AFP )

Uma das del�cias da fic��o � v�-la concentrar e costurar um punhado de hist�rias, di�logos, cenas e situa��es pescadas do mundo real, mas que, de t�o bem alinhavadas, parecem a mais pura inven��o. � sinal de que a realidade pode superar a fic��o quando se trata do impens�vel, mas � preciso habilidade para transformar isso em narrativa. 

Clara Drummond e Eliana Alves Cruz s�o dessas que conseguem levar para a literatura um Brasil que, infelizmente, n�o � nada ficcional. Em dois romances rec�m-lan�ados, as autoras costuram hist�rias de dois mundos completamente diferentes, mas que se encontram todos os dias na sociedade brasileira.

Mabel � a filha de uma empregada dom�stica que estuda medicina em “Solit�ria”. O t�tulo faz refer�ncia aos quartinhos de empregada t�o normais para a maioria dos brasileiros, mas um s�mbolo de como a arquitetura nacional incorporou sem grandes dramas a trag�dia das senzalas e da escravid�o. 

No pr�dio de classe m�dia alta no qual a m�e da personagem trabalha cabe todo um Brasil acostumado � servid�o e pouco incomodado com as desigualdades que sobem e descem pelos elevadores de servi�o.

"Todo mundo foi para suas solit�rias (no in�cio da pandemia), e esses casos de pessoas que n�o conseguem viver sem empregadas, as primeiras v�timas da COVID-19 no Brasil, as hist�rias de c�rcere privado, tudo isso apressou o projeto. Pensei que o momento de falar disso era agora"

Eliana Alves Cruz, autora de "Solit�ria"



A patroa que deixa o filho da empregada cair pela janela, a vizinha que mant�m uma trabalhadora em condi��es an�logas � da escravid�o, o porteiro que luta para manter os dois filhos na escola, um aborto feito em condi��es perigos�ssimas e a COVID-19 que balan�a e abocanha a vida dos mais vulner�veis est�o no romance de Eliana Alves Cruz. A autora parece ter ansiedade de colocar em “Solit�ria” o notici�rio recente e, com ele, constr�i uma narrativa resultante de uma condi��o hist�rica.

V�timas

A ideia para “Solit�ria” come�ou quando Eliana escrevia “�gua de barrela'', mas foi apressada pela pandemia. "Todo mundo foi para suas solit�rias, e esses casos de pessoas que n�o conseguem viver sem empregadas, as primeiras v�timas da COVID-19 no Brasil, as hist�rias de c�rcere privado, tudo isso apressou o projeto. Pensei que o momento de falar disso era agora", conta. Para escrever o livro, Eliana, que tamb�m � jornalista, mergulhou no tema, pesquisou e ouviu muitas hist�rias de mulheres que foram ou est�o empregadas dom�sticas.

Motivada tamb�m pela revolta e pelo questionamento, ela levou para “Solit�ria” uma tem�tica � qual se dedica desde o primeiro romance, “�gua de barrela'', publicado em 2016. "Sou uma mulher inequivocamente negra e ser uma mulher negra baseia toda minha experi�ncia no mundo", avisa. 

"Ent�o, tudo que escrevo tem alguma coisa disso. Mas tento n�o pegar pelo clich�. Tem uma crueldade na sutileza no dia a dia, ent�o tento sair um pouco do clich� do racismo cl�ssico, de situa��es muito grotescas, que est�o a�, toda hora. Precisamos desarmar algumas bombas rel�gios que a hist�ria armou para n�s e que, de vez em quando, explodem."

Hipocrisia

artes pl�sticas que se volta o olhar cr�tico de Clara Drummond em “Os coadjuvantes”. No romance da autora carioca, a narradora � uma menina rica, curadora que n�o poupa sarcasmo e ironia direcionados � cena das artes pl�sticas nacionais. 


Rodeada de amigos artistas, conhecidos ricos, familiares, pais com fortuna e guiada por um senso autodestrutivo que a faz fuzilar o meio da arte com todo tipo de desconstru��o, a personagem � tamb�m um reflexo de um ambiente que Clara conhece bem. 
 

"Existe um pacto silencioso no universo das classes altas, incluindo o da cultura. � um grupo de pessoas que vive uma vida inteira numa autoilus�o de que seria muito caridosa. Essas peruas que fazem caridade acham que est�o fazendo uma coisa muito boa, n�o t�m no��o de que est�o dando migalhas"

Clara Drummond,� autora de "Os coadjuvantes"


 
"Nesses ambientes da esfera da cultura existe menos meritocracia porque voc� demora muito tempo para ganhar dinheiro, precisa passar um per�odo muito longo recebendo sal�rio simb�lico e existe uma certa hipocrisia nesses ambientes em rela��o a isso", explica a autora.

A constru��o da narrativa partiu de uma constata��o: "Percebi que tinha uma quantidade enorme de amigos talentosos e que n�o podiam continuar nesse meio porque precisavam pagar aluguel e, ao mesmo tempo, tinha muitos amigos sem talento que continuavam nesse meio porque podiam pagar aluguel. E eu queria explicitamente que a narradora fosse uma pessoa sem talento". 

Elite intelectural

Com declara��es incisivas — "N�o existe um desejo real de igualdade social na esfera da classe art�stica que estudou em escola construtivista" e "N�o existe rico que seja realmente uma boa pessoa" —, a personagem faz uma radiografia de uma elite intelectual e econ�mica para a qual dinheiro e vida financeira s�o tabus mais temidos que o sexo.

Clara conta que ficou surpresa com as rea��es ao romance. Alguns dos seus amigos dizem terem sentido vergonha ao se verem retratados na narrativa, mas ela enxerga certa ingenuidade nesse espanto. 

"Acho engra�ada essa surpresa. Os grandes patronos dos museus s�o pessoas que provavelmente votaram no Bolsonaro. As cifras do universo das artes pl�sticas s�o muito altas. Quem tem quantidade excessiva de dinheiro est� necessariamente explorando algu�m e s� essa pessoa tem dinheiro para gastar US$  500 mil num quadro. Fico surpresa com a surpresa das pessoas. Quem as pessoas acham que tem US$  500 mil para dar numa pintura?", diz.


Tr�s perguntas para Clara Drummond, autora de “Os coadjuvantes” 


"N�o existe um desejo real de igualdade social na esfera da classe art�stica que estudou em escola construtivista": O que esse romance diz sobre a elite brasileira?

Em toda grande cidade existe essa classe de pessoas ricas que s�o mais conscientes e t�m um discurso mais consciente. Acho que ningu�m que trabalhe com esse meio quer pensar em si mesmo como algu�m sem talento, e sim como algu�m que merecia estar ali, que tem algo a dizer.

E, quanto mais altas as classes, mais acham que o que t�m a dizer � interessante. Ent�o h� um v�nculo entre uma pessoa de classe alta e ter certeza de que a vis�o de mundo dela � uma vis�o �nica. Vem do mesmo lugar de voc� estar acostumado a ser ouvido e poder falar as coisas: voc� n�o est� numa posi��o de engolir sapo e fala as coisas que pensa como se fossem grandes ilumina��es.

Existe um pacto silencioso no universo das classes altas, incluindo o da cultura. � um grupo de pessoas que vive uma vida inteira numa autoilus�o de que seria muito caridosa. Essas peruas que fazem caridade acham que est�o fazendo uma coisa muito boa, n�o t�m no��o de que est�o dando migalhas.

"N�o existe rico que seja realmente uma boa pessoa", diz a narradora do romance. N�o seria uma generaliza��o?

Acho que existe, de fato, uma correla��o entre riqueza e maldade e � uma correla��o relativamente proporcional. Essa maldade pode vir tanto em termos de diferen�a de fazer as coisas sem perceber que est� tornando a vida de muitas pessoas pior e um autoengano de pensar que n�o est� fazendo nada de mal.

Herdeiro de banco n�o vai pensar na quantidade de fam�lias destru�das por d�vida. Existe uma escolha, que � inconsciente, de ter o poder de melhorar as coisas e de escolher n�o melhorar. Uma omiss�o. A falha �tica e moral que vem com a riqueza se d� em muitos aspectos, expl�citos e subjetivos, que variam de pessoa para pessoa.

Em certo momento, a narradora constata que dinheiro atrai contatos, que atraem dinheiro que compra quadros que enfeitam a casa. Seria assim t�o f�til e superficial o mercado da arte contempor�nea?

Acho que depende. Sou 100% a favor dos artistas, eles s�o as v�timas desse sistema. Muitos artistas t�m um reconhecimento amplo, institucional, mas penam para pagar o aluguel. Existe uma diferen�a entre o tipo de arte que d� para pendurar na parede e o que n�o d�. E tem pessoas talentos�ssimas que fazem quadros de pendurar na parede.

O que existe de cruel � o mercado da arte e como ele se infiltra nas institui��es e vitimiza os artistas que t�m um pensamento cr�tico. Porque a porcentagem de artista que fica rica � muito pequena. A maior parte pode at� viver bem e, ainda assim, o mercado � o vil�o.

Capa do livro 'Solitária'

“Solit�ria”
• Eliana Alves Cruz
• Companhia das Letras (168 p�gs.)
• R$ 54,90

Capa do livro 'Os coadjuvantes'

“Os coadjuvantes”
• Clara Drummond
• Companhia das Letras (112 p�gs.)
• R$ 54,90


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