Por pouco, muito pouco mesmo, o Z� Carioca n�o seria um… tatu. Em agosto de 1941, os desenhistas Franklin Thomas (1912-2004) e Norman Ferguson (1902-1957), que acompanharam Walt Disney (1901-1966) em sua viagem ao Brasil, chegaram a fazer esbo�os de um simp�tico tatu-bola tamborilando um pandeiro.
No entanto, de tanto ouvir piada de papagaio, algumas delas contadas pelo jornalista Gilberto Souto (1906-1972), correspondente da revista Cinearte em Hollywood, Walt Disney mudou de ideia e optou por outro animal da fauna brasileira para representar o pa�s em um de seus pr�ximos filmes: o papagaio.
O motivo oficial da visita de Walt Disney ao Brasil foi a divulga��o de Fantasia (1940), o terceiro longa de anima��o dos est�dios Disney. A estreia no dia 23 de agosto, no Path� Pal�cio, na Cinel�ndia, Centro do Rio, foi t�o badalada que contou at� com a presen�a do ent�o presidente da Rep�blica Get�lio Vargas (1882-1954) e da primeira-dama Darcy Vargas (1895-1968).

No dia seguinte, Walt Disney tirou o dia de folga para visitar o Gr�mio Recreativo Escola de Samba Portela. Saiu de Copacabana �s cinco da tarde e seguiu para Madureira. Na Azul e Branco, assistiu a um ensaio da escola fundada em 1923 e conheceu o sambista Paulo Benjamin de Oliveira (1901-1949), o Paulo da Portela.
O sambista de Oswaldo Cruz, reza a lenda, teria sido uma das fontes de inspira��o para o Z� Carioca. Mas, n�o foi a �nica. O figurino do papagaio, por exemplo, foi baseado no r�bula alagoano Manuel Vicente Alves, o Dr. Jacarand� (1869-1948), um tipo para l� de folcl�rico das ruas do Rio. Ele gostava de usar, entre outros adere�os, palet�, chap�u-palheta, gravata-borboleta e guarda-chuva. "Pode confiar em mim", gostava de dizer aos seus clientes. "Sou igual a jacarand�: pau para toda obra".
Em sua passagem pelo Rio, Walt Disney conheceu alguns brasileiros ilustres. O compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi um deles. O cartunista Jos� Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), o J. Carlos, foi outro. Durante um jantar no Copacabana Palace, J. Carlos deu de presente ao visitante a ilustra��o de um papagaio abra�ando o Pato Donald. At� hoje, n�o se sabe ao certo que fim levou o desenho de J. Carlos. Ou, ainda, se Walt Disney aproveitou algo dele na cria��o do personagem.
"Ao longo desses 80 anos, o Z� Carioca sofreu muitas altera��es no visual. Trocou o tradicional palet� e a gravata-borboleta, por pul�ver ou camiseta branca. Numa fase, usou bon�. Noutra, t�nis", exemplifica o pesquisador Marcus Ramone, autor de Entre Patos e Ratos: a Epopeia dos Quadrinhos Disney (Editora Noir). "� o meu personagem Disney favorito. Ao contr�rio de outras aventuras em quadrinhos da Disney, que se passavam em Pat�polis, as do Z� se desenrolavam no Rio de Janeiro. Havia muitos elementos familiares ao p�blico brasileiro, a come�ar pela condi��o social do personagem".
Mas, o Z� Carioca n�o estaria completo se n�o fosse o m�sico paulista Jos� do Patroc�nio Oliveira (1904-1987), o Zezinho. Um dos integrantes do conjunto musical Bando da Lua, que acompanhava a cantora Carmen Miranda (1909-1955), foi ele quem emprestou a voz ao Z� Carioca no filme Al�, Amigos (1942), que marcou a estreia do mais brasileiro dos personagens da Disney no cinema.
Ao todo, Walt Disney e sua trupe passaram 23 dias no Rio, de 17 de agosto a 8 de setembro de 1941, quando partiram para Buenos Aires. Entre outros compromissos, Disney visitou o Jardim Bot�nico, conheceu o P�o de A��car e concedeu entrevista � imprensa.

Na sede da Associa��o Brasileira de Imprensa (ABI), um dos rep�rteres quis saber se a viagem tinha motiva��o pol�tica. "N�o me preocupo com esses assuntos. Bastam-me os meus pr�prios problemas para me preocupar bastante…", respondeu o entrevistado, segundo o jornal O Globo, de 19 de agosto de 1941.
Pol�micas � parte, Walt Disney n�o veio ao Brasil s� para lan�ar Fantasia. A viagem fazia parte da Pol�tica de Boa Vizinhan�a, estrat�gia pol�tica adotada pelo presidente Franklin Roosevelt (1882-1945) para angariar a simpatia de aliados latino-americanos na Segunda Guerra Mundial.
"O Z� Carioca surgiu com uma perspic�cia que beira a malandragem. Al�m disso, � um f� que adora e adula o Pato Donald. Isso demonstra o que �, no entendimento dos artistas da Disney, ser um 'bom amigo'", analisa o historiador Alexandre Maccari Ferreira, doutorando em Comunica��o pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). "Por um lado, o Z� Carioca tem caracter�sticas meton�micas do 'brasileiro padr�o', como a alegria. Por outro, as penas do seu rabo s�o das cores da bandeira norte-americana". O tema de sua disserta��o de mestrado de Alexandre foi O Cinema Disney Agente da Hist�ria: A Cultura nas Rela��es Internacionais Entre Estados Unidos, Brasil e Argentina (1942-1945).
Poucos dias antes de desembarcar no Rio, Walt Disney teve a oportunidade de ouvir, pela primeira vez, o samba-exalta��o Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964). Foi em Bel�m (PA), onde o avi�o em que ele e sua equipe viajavam pousou para abastecer. Estava hospedado no Grande Hotel, na capital paraense, quando notou que o conjunto musical s� tocava can��es estrangeiras. Intrigado, pediu ao maestro que executasse alguma m�sica t�pica do Brasil. O pianista, ent�o, arriscou alguns acordes de Aquarela do Brasil, composta dois anos antes. Walt Disney s� veio a conhecer o compositor no �ltimo dia de sua visita ao Rio, em um coquetel oferecido pelo Consulado dos Estados Unidos no Hotel Gl�ria.
Na biografia No Tempo de Ari Barroso (1993), o jornalista S�rgio Cabral conta que Ary Barroso comp�s Aquarela do Brasil na noite de 28 de fevereiro de 1939. Chovia muito e, sem poder sair de casa, come�ou a tocar uma nova can��o ao piano. Minutos depois, j� havia terminado letra e m�sica. "O objetivo do vov� era fugir das trag�dias da vida e exaltar as belezas de nosso pa�s", explica M�rcio Barroso, neto de Ary. "Naquela mesma noite, pouco depois de concluir Aquarela do Brasil, comp�s As Tr�s L�grimas. Uma n�o tem nada a ver com a outra".
O primeiro coment�rio que ouviu a respeito de Aquarela do Brasil n�o foi l� muito encorajador. "O coqueiro que d� coco? Voc� queria que ele desse o qu�?", desdenhou o cunhado. Ary deu de ombros. De l� para c�, Aquarela do Brasil j� ganhou 322 regrava��es: de Carmen Miranda a Elis Regina (1945-1982), de Bing Crosby (1903-1977) a Jo�o Gilberto (1931-2019), de Frank Sinatra (1915-1998) a Pl�cido Domingo.
Z� Carioca e Aquarela do Brasil estrearam juntos no cinema. Foi no dia 24 de agosto de 1942, quando os cinemas brasileiros exibiram Al� Amigos (Saludos Amigos, no original). Nos EUA, a estreia s� aconteceu seis meses depois, em 6 de fevereiro de 1943. Z� Carioca fez tanto sucesso que voltou a dar o ar de sua gra�a em dois outros longas-metragens: Voc� J� Foi � Bahia? (The Three Caballeros, 1944) e Tempo de Melodia (Melody Time, 1948).
Por coincid�ncia, Walt Disney convidou J. Carlos e Ary Barroso para trabalharem com ele, em Los Angeles, na Calif�rnia. Ambos recusaram a proposta. "Because don't have Flamengo here" foi a desculpa que Ary Barroso, um flamenguista doente, deu para declinar do convite.
Se, nas telas de cinema, Z� Carioca estreou primeiro no Brasil e depois nos EUA; nas tirinhas de jornal, se deu o contr�rio: estreou primeiro l� e depois aqui. Com roteiro de Hubie Karp (1915-1953) e desenhos de Bob Grant (1914-1968) e Paul Murry (1911-1989), Z� Carioca (Joe Carioca, no original) estreou nas p�ginas dos jornais americanos em 11 de outubro de 1942. Ele s� chegou ao Brasil em 2 de fevereiro de 1943 quando O Globo Juvenil passou a publicar algumas dessas hist�rias. Logo, o Z� Carioca passou a ser publicado tamb�m em revistas em quadrinhos. A estreia no formato gibi aconteceu em dezembro de 1942, na Walt Disney 's Comics and Stories. A hist�ria O Rei do Carnaval teve roteiro e desenho de Carl Buettner (1903-1965).
"Em suas primeiras tiras de quadrinhos, ainda produzidas nos EUA, pouca coisa realmente diferenciava o Z� dos demais personagens Disney. As tramas eram ambientadas em uma cidade que poderia ser qualquer outra. Isso come�ou a mudar quando os quadrinhos do Z� come�aram a ser produzidos no Brasil por artistas locais. De repente, o Z� Carioca estava vivendo no Rio de Janeiro, na fict�cia Vila Xurupita, comendo feijoada e jogando futebol", analisa Paulo Maffia, editor-chefe da Culturama.
No Brasil, as hist�rias do Z� Carioca j� foram publicadas por duas editoras: a Abril, entre 1961 e 2018, e a Culturama, desde 2020. A primeira revista em quadrinhos brasileira foi a do Pato Donald n�mero 1, publicada em julho de 1950. O Z� Carioca aparece na capa, desenhada pelo artista argentino Luis Destuet. Aos poucos, o papagaio come�a a conquistar seu pr�prio espa�o. Em mar�o de 1960, ele protagoniza sua primeira aventura totalmente brasileira, A Volta do Z� Carioca, de autoria de Jorge Kato (1936-2011). E, em janeiro de 1961, ganha sua pr�pria revista.
"Houve um tempo em que a revista do Z� Carioca vendeu muito bem e atingiu o patamar de 180 mil exemplares. A t�tulo de compara��o, O Pato Donald estava na faixa dos 200 mil", explica Manoel de Souza, autor de O Imp�rio dos Gibis — A Incr�vel Hist�ria dos Quadrinhos da Editora Abril (Editora Heroica).
Com o passar dos anos, o Z� Carioca ganhou um grande amor (Rosinha); um melhor amigo (Nestor); um rival (Z� Galo); um time de futebol (Vila Xurupita F.C.), uma vers�o her�ica (Morcego Verde); e at� uma s�rie de primos, um de cada estado (Z� Paulista, Z� Jandaia, Z� Pampeiro, Z� Queijinho, Z� Baiano e Z� Pantaneiro).
"O Z� Carioca dos filmes � expansivo e acolhedor. Seu bom humor � contagiante. Quer bancar o esperto, mas com eleg�ncia e naturalidade, sem ser desleal. J� o Z� Carioca das revistinhas n�o � t�o �tico, mas � bem divertido. Era o t�pico malandro que gostava de levar vantagem em tudo. Vivia numa pinda�ba de fazer gosto e n�o media esfor�os para alcan�ar uma alta condi��o social, sem ter que trabalhar duro. Hoje em dia, seria considerado 'politicamente correto'", compara o pesquisador Jorge Carvalho de Mello, autor de Muito Prazer, Z� Carioca — A Extraordin�ria Vida do M�sico que Inspirou Walt Disney a Criar o Famoso Papagaio (Editora Noir), com previs�o de lan�amento para novembro.
Para comemorar seu anivers�rio de 80 anos do Z� Carioca, a Culturama acaba de lan�ar O Essencial do Z� Carioca — Celebrando 80 Anos, que re�ne 14 hist�rias cl�ssicas do papagaio, de Z� Carioca Contra o Goleiro Gast�o, de janeiro de 1961, a Volta, Z�... Volta!, de setembro de 2020. Em edi��o de capa dura, est�o reunidos alguns dos melhores roteiristas e desenhistas do Z� Carioca, como Waldyr Igayara de Souza (1934-2002), Renato Canini (1936-2013) e Ivan Saidenberg (1940-2009), entre outros.
Das 14 hist�rias de O Essencial do Z� Carioca, Que Galo � Esse, Z�?, publicada em mar�o de 1983, � de autoria de Gerson Borlotti Teixeira. Das 518 hist�rias que escreveu s� com personagens Disney, 187 s�o do Z� Carioca. "O Z� personifica a alegria, a esperan�a e at� uma pitada de malandragem do brasileiro. Em tempos de politicamente correto, essa malandragem teve que ser praticamente esquecida", explica Gerson, que estreou na Editora Abril em 1977. "A Disney tem um manual de �tica e conduta muito rigoroso que deve ser seguido por qualquer empresa que tem os direitos de usar seus personagens. Antigamente, o Z� era conhecido por seus calotes e malandragens. Hoje, essas pr�ticas s�o vetadas. Isso obriga os roteiristas a explorar outras caracter�sticas do personagem, como o alto-astral, o otimismo e a cara de pau de filar a feijoada na casa do Pedr�o".
Em outubro, a Culturama lan�a Z� Carioca Conta a Hist�ria do Brasil. Com argumento do jornalista e escritor Eduardo Bueno e roteiro de Paulo Maffia, o livro revisita cinco epis�dios da Hist�ria do Brasil, desde o Descobrimento at� a Independ�ncia. Personagens Disney como Donald, Peninha e Gast�o, entre outros, interpretam figuras hist�ricas, como Pedro �lvares Cabral (1467-1520), Pero Vaz de Caminha (1450-1500) e Am�rico Vesp�cio (1454-1512). "Minha inspira��o foi o Don Rosa, autor de algumas das hist�rias mais �picas do Tio Patinhas", conta Eduardo Bueno. "As hist�rias contadas pelo Z� Carioca n�o s�o 100% verdadeiras. H� muita fic��o ali. O que eu procurei fazer foi brigar o menos poss�vel a fic��o com a realidade".
Outro lan�amento, previsto para novembro, � Muito Prazer, Z� Carioca, de Jorge Carvalho de Mello. Curiosamente, o violonista que inspirou, entre outros, a cria��o do Z� Carioca era paulista de Jundia�. No livro, o autor conta que, depois que decidiu incluir o papagaio em seus desenhos animados, Walt Disney precisava de algu�m para dubl�-lo. O nome escolhido foi o do ator Grande Otelo (1915-1993), mas eles n�o chegaram a um acordo. "Zezinho estava em est�dio dublando O Drag�o Relutante (1941) quando um funcion�rio da Disney procurou seu chefe para dizer que tinha encontrado a voz ideal para o papagaio. Al�m da voz, Zezinho emprestou sua ginga e malemol�ncia ao Z� Carioca", revela o autor.
Mas, a festa preparada para o Z� Carioca n�o se limita ao lan�amento de livros e gibis. Um sem-n�mero de produtos tem�ticos, de esmalte a chinelo, de pel�cia a quebra-cabe�a, de capa de celular a instrumento musical, ser�o lan�ados ao longo dos pr�ximos 12 meses. E, como toda festa que se preza, a do Z� Carioca ganhou at� m�sica: Os Z�s do Brasil, composta por Leandro Lehart e cantada por Xande de Pilares. "O Z� Carioca mostra um lado lindo que o brasileiro tem e, muitas vezes, esquece que tem", analisa Tokie Esaka, diretora criativa da Disney Brasil. "O brasileiro � um povo otimista por natureza, que n�o desiste nunca. Isso tem tudo a ver com a Disney. Acreditamos em nossos sonhos e procuramos olhar o lado belo das coisas".
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62660115
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