
O t�o aguardado document�rio sobre o Racionais MCs mostra como o quarteto mudou a forma como a juventude das periferias se v� e se expressa. Dirigido por Juliana Vicente, o filme apresenta a caminhada de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay desde o in�cio, quando se conheceram na Esta��o S�o Bento, nos anos 1980, espa�o da capital paulista essencial para a compreens�o do hip-hop nacional. O grupo est� entre os nomes consagrados da m�sica brasileira.
Acompanhar a saga protagonizada pelos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” (como eles mesmo se intitulam, n�o por acaso) � acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa de pessoas pobres, pretas e faveladas sobre si mesmas, sobre a constru��o de todo um universo simb�lico que envolve a supera��o das mazelas provocadas pela escravid�o, viol�ncia racial e exclus�o social num pa�s em que verdadeiro abismo separa pobres daqueles que t�m acesso m�nimo � educa��o e moradia dignas.
Duplas, o come�o de tudo
O filme traz cenas de arquivo raras, como apresenta��es de Brown e Blue, Edi Rock e KL Jay, quando eram duplas separadas, antes do surgimento desse s�mbolo quase mitol�gico que s�o hoje. O document�rio aborda o come�o do processo que levou ao surgimento de cl�ssicos como “P�nico na Zona Sul” e “Tempos dif�ceis”, primeiras grava��es da banda rec�m-formada, na colet�nea “Consci�ncia Black Vol 1”.
Quando ouvi falar de Racionais pela primeira vez, devia ter 13 anos, e me impressionava quando encontrava pessoas que sabiam de cor letras complexas como a de “P�nico na Zona Sul”.
Havia uma postura, uma forma de declamar, que colocava jovens negros como eu num lugar diferente daquele a que est�vamos acostumados, numa posi��o combativa e tamb�m de orgulho, algo raro naqueles tempos para a maioria de n�s.
As discuss�es sobre consci�ncia racial e orgulho negro circulavam basicamente dentro do Movimento Negro, formado por pessoas com acesso ao conhecimento, ainda que esse acesso fosse resultado de muitas lutas. Elas eram exce��es. Muito antes de se dar conta disso, o Racionais fez com que essas quest�es chegassem � juventude muito distante daqueles espa�os de discuss�o.
Quando fala sobre a responsabilidade colocada sobre o Racionais e sobre ele pr�prio, aos 19 anos, Brown comenta: “Eu n�o tinha nem chuveiro quente, como � que eu ia defender o povo?”.
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O filme mostra cada per�odo da trajet�ria do grupo por meio de seus seis discos – “Holocausto urbano” (1990), “Escolha seu caminho” (1992), “Raio X do Brasil” (1993), “Sobrevivendo no inferno” (1997), “Nada como um dia ap�s o outro dia” (2002) e “Cores e valores” (2014). Ao final, a banda comemora 30 anos em imensos shows.
Cada per�odo, demarcado pelos registros fonogr�ficos, � habilmente explorado pela diretora, que apresenta o amadurecimento dos integrantes tanto no �mbito pessoal quanto art�stico e coletivo, bem como os avan�os e retrocessos da sociedade brasileira durante estas tr�s d�cadas.
Hist�ria do rap nacional
� importante frisar que a hist�ria do Racionais se confunde com a pr�pria hist�ria do rap no pa�s. Portanto, acompanhar o processo de crescimento do grupo � acompanhar o nascimento e o amadurecimento desse g�nero musical, dado o grau de influ�ncia que os discos da banda tiveram sobre os MCs. Em maior ou menor grau, todos tinham e t�m o Racionais como refer�ncia.
“Holocausto urbano” e “Escolha seu caminho”, os dois primeiros, s�o apontados por Brown como trabalhos que ficaram restritos a um c�rculo pequeno de ouvintes. A conex�o com a favela e as pessoas de forma geral se deu com o terceiro �lbum, o “Raio X do Brasil”, em 1993.
De fato. A m�sica “Homem na estrada”, que sampleia “Ela partiu”, de Tim Maia, tocava em todas as principais FMs, atingindo tanto manos quanto playboys.
Naquele ano, lembro-me de ouvir mais pessoas do bairro falando sobre rap. Um vizinho do Beco das Antenas, no Jardim Alvorada, aqui em BH, comprou o LP. Nos reunimos na porta de sua casa, eu e mais dois amigos, Adriano e Reginaldo, ouvimos o disco inteiro em sil�ncio.
Era assim. Ouvir uma obra do Racionais pela primeira vez tinha ares de cerim�nia, de ritual, da espiritualidade que KL Jay menciona no filme ao explicar o efeito que suas m�sicas t�m sobre as pessoas.
Do desespero � esperan�a
Em “Sobrevivendo no inferno” (1997), trabalho considerado por muitos como o cl�ssico maior da discografia do grupo, as falas e imagens remetem ao pa�s violento, em convuls�o. “Nada como um dia ap�s outro dia” (2002) apresenta uma periferia esperan�osa, com orgulho de si mesma.
Cada lan�amento � tratado como um cap�tulo que demonstra como as m�sicas traduziram seu tempo e, mais que isso, ajudaram a mold�-lo. Destaco o papel que o Racionais teve ao tecer narrativas que n�o se limitaram a reportar sobre o tempo em que se vivia, mas contribu�ram para mudar seus rumos.
A prova disso s�o os milh�es de jovens que, apoiados naquelas hist�rias e exemplos, literalmente sobreviveram ao inferno e aprenderam sobre as pr�prias cores e os pr�prios valores.

Ter esta hist�ria registrada e compartilhada num espa�o relevante, como a gigante do streaming Netflix, representa uma ruptura ao eternizar frases, faces e vis�es de mundo que, num pa�s como o Brasil, foram silenciadas, violentadas e invisibilizadas desde que o primeiro navio negreiro aportou por aqui. Racionais no ar!
* Roger Deff � rapper em BH, mestre em artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e jornalista pela PUC Minas