'O Brasil perdeu a soberania da Amaz�nia', afirma Jo�o Moreira Salles
Ap�s morar no Par� para conhecer o 'patrim�nio mais importante' do pa�s, cineasta lan�a 'Arrabalde' e alerta: a regi�o 'virou territ�rio de anarquia criminal'
O cineasta e escritor Jo�o Moreira Salles diz que Amaz�nia "est� entregue ao crime" (foto: Reprodu��o
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“Arrabalde”, livro que o documentarista Jo�o Moreira Salles acaba de lan�ar pela Companhia das Letras, nasceu de duas constata��es do autor. Uma, de que estava de costas para a Amaz�nia, como a maior parte do pa�s. A outra, do estado de abandono, desprezo e criminalidade a que a regi�o foi relegada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) e pelos militares de seu entorno.
“Os militares sempre tiveram a obsess�o da soberania. A grande ironia � que nesses quatro anos o Estado brasileiro perdeu a soberania da Amaz�nia”, diz Salles.
Para ele, “a gente ia virar uma autocracia din�stica” em caso de reelei��o de Bolsonaro, derrotado por Luiz In�cio Lula da Silva (PT) em 30 de outubro.
O livro � resultado do per�odo de seis meses em que o documentarista morou no Par�. Salles constatou que as cidades amaz�nicas tamb�m est�o de costas para a floresta, e que solu��es de renda para os moradores da regi�o devem passar por essas cidades.
O diretor dos document�rios “Entreatos”, “Santiago” e “No intenso agora” pertence a uma das fam�lias mais ricas do Brasil. � fundador da revista piau�, em que publicou os artigos que deram origem ao livro. Ele e o irm�o Walter Salles, tamb�m cineasta (diretor de “Central do Brasil”), deixaram o quadro de acionistas do Ita� Unibanco em fevereiro deste ano. A participa��o foi transferida a outros irm�os acionistas. “Quis ter mais liberdade de poder atuar politicamente”, afirma.
Jo�o Moreira Salles diz que Amaz�nia "est� entregue ao crime". Na foto, �rea desmatada ilegalmente no Par� em 2021 (foto: Evaristo S�/AFP/8/11/21
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No livro, o senhor diz que, antes dessa incurs�o pelo Par�, n�o havia estado na Amaz�nia nem por quatro dias. J� fez reflex�o sobre o porqu�?
O livro foi escrito para responder a essa pergunta. O patrim�nio mais importante que o Brasil tem era desconhecido para mim. O Brasil est� de costas para a Amaz�nia. A Amaz�nia � um arrabalde do Brasil. A gente a trata como periferia do pa�s. Como diz o Luiz Braga, um baita fot�grafo de Bel�m, a Amaz�nia � resto para o Brasil. A ironia dessa hist�ria � que o resto se tornou o centro. Para o concerto geral das na��es, o Brasil � um pa�s quase irrelevante, salvo pela Amaz�nia hoje em dia. Isso ficou claro para mim ao longo dos anos e particularmente depois da elei��o de Bolsonaro. Ao cabo dos seis primeiros meses do governo, ficou claro que a Amaz�nia estava abandonada, entregue ao crime. O Estado simplesmente abdicou da sua responsabilidade em rela��o � Amaz�nia. Eu tive muita vontade de ir pra l� para saber o que estava acontecendo.
O senhor descreve como as pessoas de fora n�o se adaptam � floresta, mas tentam fazer com que a floresta se adapte a elas...
A floresta n�o se adapta. A complexidade de vida, a desordem e a anarquia de uma floresta acabam substitu�das pela ordem da lavoura, do pasto.
O livro se dedica � hist�ria de forma��o de cidades do Par� e seus personagens. Por qu�?
A Amaz�nia � essencialmente urbana. As pessoas est�o nas cidades, que t�m muito pouca conex�o com a floresta. Os empregos precisam ser gerados nas cidades, e n�o se pensa nas cidades amaz�nicas como uma solu��o para a floresta. A gente conhece as mazelas das cidades brasileiras, e na Amaz�nia � ainda pior.
“Arrabalde” foi conclu�do em setembro, momento em que Bolsonaro tinha chances de ser reeleito. O senhor diz que “o ciclo de destrui��o em curso pode ser revertido”. Como isso seria poss�vel se o presidente ganhasse novo mandato?
Talvez eu n�o quisesse ali pensar na alternativa tr�gica de uma reelei��o. Se ele se reelegesse, a gente teria duas agendas. A primeira seria o fortalecimento da sociedade civil brasileira, que na Amaz�nia � robusta. E haveria uma agenda fora, que seria uma conversa com a Europa, os americanos, para que come�assem a punir o Brasil pelo que faz na Amaz�nia. � um lobby desagrad�vel, mas essencial. Gra�as a Deus, n�o ser� mais necess�rio. A gente tem finalmente um desafio � altura de uma grande na��o. Se a gente reelegesse Bolsonaro, seria julgado por isso, por entrar para o lado errado da hist�ria, iria se perfilar aos pa�ses que em determinados momentos fizeram escolhas tr�gicas. A elei��o do Lula � a nossa chance de estar � altura dessa responsabilidade que nos foi dada.
Da agenda de Bolsonaro, o que foi pior para a Amaz�nia? E por que ele chegou t�o forte na disputa, com apoio maci�o do meio empresarial?
Sobre o pior, depende para quem voc� pergunta. Se perguntar aos ind�genas, foi a invas�o das suas terras, a morte de seus defensores, a desvaloriza��o de tudo o que eles s�o. Passei o m�s de outubro em Rond�nia. Estava com uma l�der ind�gena no dia do primeiro turno, e o resultado foi muito assustador. Em determinado momento, ela come�ou a falar para o companheiro dela: “As pessoas n�o entendem o que significa voc� viver num lugar em que ningu�m te quer”. � mais que o desprezo, � a nega��o antol�gica deles. O garimpo ilegal e a ocupa��o das terras p�blicas brasileiras configuram uma coisa curiosa, se levarmos em conta que este governo � muito ligado ao pensamento militar. Os militares sempre tiveram a obsess�o da soberania. A grande ironia � que nesses quatro anos o Estado brasileiro perdeu a soberania da Amaz�nia. � na Amaz�nia que fac��es disputam poder. As armas e ferramentas do garimpo n�o s�o mais dragas que roem as margens do rio. � isso, mais (fuzil) AR-15. Voc� n�o entra mais.
Isso fica claro em cidades amaz�nicas, inclusive com a coopta��o de ind�genas por fac��es.
� isso que eu chamo de perda de soberania. Uma pessoa me perguntou: “Voc� se p�s em alguma situa��o de risco?”. Eu disse que n�o, que quem se arrisca s�o ativistas, religiosos em Anapu (no Par�). Voc� chega em cidades como Itaituba e Novo Progresso e sente claramente que n�o deve ficar ali mais do que 48 horas.
S�o muito frequentes amea�as de morte a lideran�as ind�genas nas pr�prias comunidades...
� perda de soberania, insisto muito nisso. � uma palavra que os militares usam o tempo todo para justificar os descalabros na Amaz�nia. Pois bem, amigos, voc�s queriam preservar a soberania da Amaz�nia. Perderam. Hoje a soberania � do crime. Lula vai ter muito mais dificuldade de fazer hoje o que a equipe da Marina (Silva) fez (nos anos 2000). A Amaz�nia virou um territ�rio de anarquia criminal.
O senhor passou um m�s em Rond�nia para um document�rio?
Sim, estou fazendo um document�rio sobre a Txai Suru� (coordenadora da Juventude Ind�gena de Rond�nia).
Como enxerga a possibilidade de document�rios na Amaz�nia, em raz�o das dificuldades extras para, por exemplo, conviver com os personagens?
N�o s� document�rios, as pessoas precisam fazer m�sica sobre a Amaz�nia, pintar a Amaz�nia, fazer poema, pe�as de teatro, livros. Claro que muito disso j� existe. Mas a floresta n�o impregnou a nossa imagina��o, n�o faz parte do nosso patrim�nio simb�lico. E falo de n�s brasileiros que n�o moramos l�. Parte do poder econ�mico brasileiro se comporta como oligarquia. Fomos salvos por quem ganha menos de dois sal�rios m�nimos. Essas pessoas s�o aquelas que precisavam desesperadamente do Aux�lio Brasil. Receberam o dinheiro e n�o se deixaram corromper, ao contr�rio do andar de cima, da oligarquia, que em troca de seus pr�prios privil�gios se deixou vender e votou no Bolsonaro.
O senhor dirigiu “Entreatos”, sobre os bastidores da campanha de Lula em 2002. Que paralelos faz entre as campanhas de 2002 e 2022?
A campanha de 2002 consolidava a democracia brasileira. V�nhamos de um per�odo de democracia plena, com Fernando Henrique Cardoso, um democrata. Ele, um soci�logo, passava a faixa para o l�der oper�rio, mostrando que a transi��o de poder era poss�vel. Ali tive a sensa��o de que a nossa democracia estava garantida. Estava enganado. A elei��o de 2022 salvou a democracia. Vamos ver, por enquanto parece que salvou. Ent�o � muito diferente. Uma consolidava, a outra salvava. N�o tenho a menor d�vida de que se Bolsonaro se reelegesse, a gente estaria no rumo de uma Turquia ou at� de uma R�ssia. Ele ia mexer no Supremo, centralizar o poder, ele e a grei dele, os filhos e tal. A gente ia virar uma autocracia din�stica. Bolsonaro � pior que o regime militar. Ele � uma volta � Idade M�dia. � por isso que quis fazer esse filme. De novo, um processo eleitoral, o mesmo candidato, numa situa��o muito diferente, num Brasil muito degradado.
A decis�o de deixar o quadro de acionistas do Ita� tem rela��o com esses projetos na Amaz�nia? E o que diz sobre a fixa��o de Bolsonaro pelo ni�bio na Amaz�nia, explorado pela CBMM (da fam�lia Moreira Salles) em Minas Gerais?
Sobre ni�bio, � mais uma obsess�o do pensamento m�gico de Bolsonaro. Cloroquina, ni�bio, grafeno, tudo � muito superficial, atravessado por ideias m�gicas, como se um �nico metal pudesse solucionar os problemas de um pa�s. Eu n�o levaria muito a s�rio isso, � mais um sintoma da pobreza intelectual desse sujeito. Em rela��o ao banco, nunca tive nenhuma rela��o formal, profissional. � estranho a mim. N�o fazia muito sentido eu permanecer l�. A Amaz�nia � um dos campos onde quero atuar. N�o est� no meu horizonte entrar na vida pol�tico-partid�ria, mas apoiar gente que est�, como (deputado Alessandro) Molon, (deputado Marcelo) Freixo e tantos outros. Fico amarrado sendo acionista do banco. Quis ter mais liberdade de poder atuar politicamente sem precisar prestar contas. Meus irm�os e os outros acionistas do banco entenderam isso.
(foto: Companhia das Letras/reprodu��o)
“ARRABALDE – EM BUSCA DA AMAZ�NIA”
.De Jo�o Moreira Salles
.Companhia das Letras
.424 p�ginas
.R$ 99,90
.R$ 39,90 (e-book)
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