Cantor Wesley Safadão

Estrelas como Wesley Safad�o, com cach� de R$ 500 mil, investem em shows com pinta de grife, como a 'Garota white', no qual s� se pode usar branco

GLOBO/DIVULGA��O

Fortaleza (CE) –  Michael Wesley chegou a Fortaleza h� poucos anos com o sonho de se tornar uma grande estrela da m�sica. Acostumado a fazer shows em casas e bares pelo interior do Nordeste, dono de uma levada habilidosa no viol�o e caneta afiada para letras de dor de cotovelo e festan�a, o artista fixou novo endere�o na cidade porque sabia que esta n�o era t�o somente a capital do Cear�.

Nos �ltimos anos, Fortaleza se consolidou como um dos polos da ind�stria da m�sica brasileira, gerando artistas, sucessos e tecnologias de espet�culo a um ritmo fren�tico para um mercado de milh�es de reais, tudo � base de forr�. Michael Wesley, com seus 100 mil seguidores no Instagram, � uma pequena figura dessa ind�stria poderosa.

Na cidade, o g�nero musical antes enraizado nas tradi��es campesinas do semi�rido se transformou em idioma e commodity. A mega-engrenagem forrozeira passa por compositores numa labuta di�ria, produtores especializados nessa m�sica que tamb�m � dan�a, sistemas de som ambulantes – os pared�es – e palcos de estruturas mastod�nticas, al�m de empresas de centenas de funcion�rios, influenciadores digitais e, claro, m�sicos de v�rios n�veis.

De esquinas suburbanas aos bares descolados da Pra�a do Le�o, na Regi�o Central, passando por carros abertos e eventos de ares internacionais com estrelas como Wesley Safad�o e Jo�o Gomes, n�o h� canto da capital cearense que passe inc�lume �s batidas que emulam zabumbas e foles de sanfona, que hoje s�o parte fundamental da linguagem musical brasileira.

Cantores de Os Barões da Pisadinha

Os Bar�es da Pisadinha, com "Recairei", ficaram por dois anos no topo das paradas

F�bio Gallo/Divulga��o

Topo das paradas

Nas listas de m�sicas mais tocadas do Spotify, o forr� � o �nico g�nero nacional que consegue peitar o sertanejo. Apenas Jo�o Gomes, com "Meu peda�o de pecado", e Os Bar�es da Pisadinha, com "Recairei", passaram quase dois anos no topo das paradas.

� a mesma vis�o da Pr�-M�sica, a Associa��o Brasileira dos Produtores de Discos. Eles afirmam que, � exce��o de Lu�sa Sonza e de Xam�, somente os cearenses Matheus Fernandes e Xand Avi�o conseguiram fazer frente ao monop�lio do sertanejo no ano passado com "Balan�o da rede", um xote com toque de pisadinha.

"Todo dia chega um compositor novo a Fortaleza querendo acertar uma m�sica, e acredito que aqui o contato com a galera � muito mais f�cil", diz Michael Wesley. Acertar uma m�sica, no jarg�o, � coloc�-la na boca de um artista da parte de cima das listas, de Anitta a Gusttavo Lima. J� a galera s�o turmas que se encontram quase todo dia para criar. Essa � a primeira etapa da linha de produ��o do forr� – din�micas que re�nem entre um punhado ou dezenas de compositores para fabricar o pr�ximo hit do g�nero.

Oper�rios, esses artistas s�o desconhecidos. O trio Jean Carlos, Elias Costa e Maiky Muniz, por exemplo, n�o � chamariz em cartaz de show, mas suas letras e melodias arrasam quarteir�es nas levadas de nomes como Nathanzinho. "A vida do compositor come�a depois que voc� acerta a primeira m�sica", diz Jean. No celular, ele d� play em uma mensagem de �udio enviada por Mar�lia Mendon�a, em 2017, como um agradecimento pela composi��o de "Transplante", que tem cerca de 180 milh�es de visualiza��es no YouTube e rendeu, segundo Jean, mais de R$ 1 milh�o em direitos autorais.

Pot�ncia

Jean se re�ne com o filho Elias e o amigo Maiky diariamente para compor. O expediente come�a depois do almo�o e termina antes da hora de jantar. Em m�dia, criam quatro m�sicas por semana. Quando o tema est� finalizado, fazem uma grava��o rudimentar pelo celular e a enviam para os guieiros.

Esses m�sicos gravam uma vers�o polida da can��o por R$ 100 cada em seus est�dios caseiros. Em seguida, a faixa-guia � enviada para selos e artistas do Brasil inteiro, tal qual um produto � venda. Leva quem pagar mais, respeitando os acordos de porcentagem nos ganhos.

Naquele fim de tarde, Maiky mostra aos colegas uma can��o intitulada "Assunto delicado". A melodia no viol�o cru guarda a ess�ncia da m�sica que, num arranjo eletroeletr�nico, chegou ao topo das paradas em agosto do ano passado nas vozes de Xand Avi�o e Guilherme & Benuto.

A faixa � exemplar da pot�ncia da ind�stria forrozeira de Fortaleza. Para al�m do Nordeste, n�o s� suas m�sicas como seus compositores hoje avan�am pelo Brasil. O polo goiano, neste caso, opera como o terminal de uma via de m�o dupla no encontro cada vez mais comum de forr� e sertanejo. "Mas da mesma forma que a gente n�o consegue fazer sertanejo no n�vel deles, eles n�o fazem forr� como a gente", diz Jean.

cantor xand avião

Com "Balan�o da rede", um xote com toque de pisadinha, Xand Avi�o foi um dos �nicos artistas que conseguiu desbancar o sertanejo no ano passado

F�bio Rocha/globo

Hub criativo

O encontro que originou "Assunto delicado" teve lugar no Sua M�sica Space. Desde o fim do ano retrasado, o im�vel � a sede local do Sua M�sica – o maior servi�o de streaming brasileiro – e tamb�m um espa�o para encontro de artistas. Produtores, instrumentistas e cantores se revezam nos tr�s est�dios do edif�cio, onde tamb�m trabalham equipes de marketing e neg�cios.

No hub criativo da empresa, o produtor Lucas Emanuel � um dos cabe�as da se��o de est�dios. Todo dia, cerca de 40 novas m�sicas chegam ao seu e-mail e WhatsApp. T�o ou mais que produzir m�sicas, dando forma a esbo�os, sua fun��o � de curador.

"A gente sempre procura algo marcante. Tem que ter algum elemento que fique gravado na mem�ria de quem escuta", diz ele. "Tem momentos que a gente percebe que algo j� est� saturado, a� vamos atr�s de outra coisa. Por exemplo: m�sica com 'sentada' e com 'revoada' j� est� saturado."

O produto s� � finalizado quando encontra uma voz. Emanuel e outros produtores musicais da plataforma trabalham em parceria com artistas e produtores executivos para encontrar o melhor encaixe. Se o compositor pode ser encarado como um vendedor independente, batalhando por um lugar no topo, o Sua M�sica pode ser visto como um shopping onde artistas buscam novidades desses vendedores – um esquema similar a outros selos do forr�.

Hoje, o Sua M�sica une a plataforma on-line a uma distribuidora e uma empresa de agenciamento art�stico. A empresa surgiu como uma comunidade do Orkut, criada em 2009 por seu atual CEO, Roni Maltz. "Atualmente, temos mais de 6 mil artistas na plataforma, 600 na distribuidora e 60 no Sua M�sica Records", diz Darlison Azevedo, coordenador de Conte�do da empresa com quase 100 funcion�rios. "Ter esse espa�o potencializa a cria��o dos artistas."

Transforma��es

A evolu��o da empresa de uma p�gina de f�rum para importante agente do mercado forrozeiro ajuda a explicar a mais recente transforma��o do g�nero. O advento do forr� enquanto identidade local de Fortaleza j� era dado nos anos 2000, quando as bandas apinhavam pela capital. Para fazer frente � concorr�ncia, os conjuntos precisavam de repert�rios vastos que passassem das 12 m�sicas autorais lan�adas por CD.

"O que o Avi�es do Forr� fez? O grupo pegou sucessos nacionais e colocou na pegada deles, e a� gravaram CDs dos shows. Esses CDs eram distribu�dos de gra�a. Era a auto pirataria, que na pr�tica levava mais gente �s casas de shows", afirma Junior Vidal, supervisor de Marketing do Sua M�sica.

N�o s� mercadol�gica, a proposta do Avi�es tamb�m trazia uma novidade estil�stica com a adi��o de sopros e metais ao palco em produ��es cada vez mais sofisticadas.

Confiar nas bilheterias como n�cleo dos neg�cios � um esquema que ainda impera no forr�, mas a pandemia deixou a opera��o de bandas mais enxuta e catalisou os ganhos no mundo digital e na publicidade – assim como em outros g�neros brasileiros, como o funk. Os grandes forrozeiros hoje usam o Sua M�sica como tubo de ensaio em que a atualiza��o de repert�rio mensal d� lugar a novidades trimestrais.

Uma vez que o novo �lbum est� dispon�vel na plataforma, artistas e equipes observam quais das novidades t�m maior alcance. A melhor da lista � posta � prova no palco. Se a m�sica que vai bem no Sua M�sica j� est� na boca do povo, � hora de gravar clipes e investir no single.

Outro fator que recentemente entrou nessa din�mica � o TikTok, plataforma em que uma dancinha viralizada pode determinar um novo hit. Servi�os como YouTube e Spotify s�o os �ltimos da cadeia. Se foi bem no palco ou nas redes sociais, a m�sica chega aos servi�os como Spotify e YouTube. Nem sempre, por�m, o que est� no Sua M�sica tamb�m vai para as plataformas internacionais.

Forrozeiro Japãozinho, O Rei dos Paredões

O Rei dos Pared�es, Jap�ozinho � o nome que incorpora a atual fase do forr�; "Carinha de nen�m" tem mais de 85 milh�es de visualiza��es no YouTube

Divulga��o

Ao vivo

A discografia de Wesley Safad�o, por exemplo, � composta quase exclusivamente de �lbuns ao vivo, mas seu cat�logo em servi�os globais de streaming difere do que se v� no Sua M�sica. Nesta plataforma t�m espa�o os chamados CDs promocionais, discos de grava��es ao vivo que aproximam ainda mais palco e ouvintes.

"� a experi�ncia do show, com aquele 'al�' para algu�m, algo muito importante, e o repert�rio atualizado, que o p�blico vai encontrar no show", diz Eduardo Barreto, gerente de Marketing da WS, empresa que administra a carreira do forrozeiro e gerencia artistas como Eric Land e DJ Ivis, denunciado � Justi�a em agosto pelo Minist�rio P�blico do Cear� ap�s ser filmado agredindo sua ent�o esposa.

A import�ncia do ao vivo se mede tamb�m pelo n�mero de projetos criados a partir dessa associa��o entre performance e streaming. Apresenta��es que se tornaram franquias – como “Garota VIP”, “WS experience” e “Avi�es do Forr� sunset” –, festas tem�ticas e os v�rios DVDs e shows em diferentes cidades e loca��es, al�m de cruzeiros. Tudo vira CD ou v�deo que mant�m a roda do forr� de Fortaleza girando.

No caso dos medalh�es do g�nero, o que tamb�m move essa roda s�o os altos contratos de shows. Wesley Safad�o, por exemplo, recebe em torno de R$ 500 mil por apresenta��o.

Elemento tamb�m importante nessa conta � a penetra��o do g�nero entre diferentes grupos e estratos sociais da capital cearense, um atravessamento vertical que tamb�m se v� pelo pa�s. "O forr� antigamente era muito marginalizado, mas hoje � a m�sica de Fortaleza, independentemente de sua classe social", diz Barreto.

A agenda da capital cearense � sempre repleta de forr�. H� eventos com pinta de grife, como a “Garota white” – show comandado por Safad�o em que s� se pode usar branco – e tamb�m o ch�o da f�brica, de botecos a casas que cobram de R$ 5 a R$ 10 por entrada. O forr� se renova mesmo sem a necessidade de bandas, uma vez que carros de som e pared�es, populares por todo o Cear�, espalham as novidades da m�sica pelo estado.

Carros "falantes"

"Meu nome � Tico, meu sobrenome � Som", diz Francisco Carlos Santiago, o Tico Som. Dono de uma das principais oficinas de som automotivo de Fortaleza, Santiago abriu seu primeiro neg�cio na �rea em 1992 e com o passar dos anos se transformou em sin�nimo dos potentes alto-falantes ambulantes que embalam carros n�o s� no Cear�, mas por todo o Brasil. "Mais de 90% do que toca nos pared�es daqui � forr�", diz ele.

Essa associa��o de m�quina e m�sica � resultado de um processo m�tuo de transforma��o de ambos, em curso desde os anos 1990 – o in�cio da d�cada marca a virada dos trios de forr� para as grandes bandas, caso do Mastruz com Leite.

Para Santiago, o forr� mudou por causa do pared�o e vice-versa. "A partir de 1997, entra o som de reboque por aqui, o pared�o, a� come�amos a tirar melhores frequ�ncias da m�sica e a criar caixas que favorecessem o forr�", afirma. "Isso foi feito de maneira emp�rica, erro e acerto."

Um pared�o de som custa em m�dia R$ 30 mil, diz Tico, mas h� um espectro extenso de op��es para clientes que buscam desde pequenos sistemas para o porta-malas ou dispositivos acoplados a lanchas. Os clientes variam de aficionados a artistas do forr�, como Z� Vaqueiro, que tamb�m buscam conselhos do especialista sobre o que faz sucesso nos carros.

Engrenando um mercado de profissionais de toda sorte, o forr� de Fortaleza tamb�m criou novas atividades nos �ltimos anos. � o caso dos divulgadores. Esp�cie de curadores, esses profissionais mant�m atualizados donos de pared�o, bares e casas de festa de Fortaleza e pa�s afora com as principais novidades do forr�.

Mixagem

Um dos nomes mais conhecidos a fazer essa ponte � o cearense Francisco da Silva Maraj�, que atende pela alcunha Black CDs. O seu esquema de trabalho � simples. O divulgador recebe o material bruto de shows de bandas de forr� e cabe a ele selecionar o que entre no seu repert�rio, adicionando vinhetas ou mesmo modificando o som para que tenha mais intensidade ao ser reproduzido nos pared�es e caixas de som.

Mensalmente, Maraj� adiciona novas can��es a seu cat�logo, que pode ser adquirido por uma m�dia de R$ 30 em pen-drives ou links para download com pastas que chegam a ter at� 15 gigas de m�sica. Antes, isso era feito com CDs. "H� 15 anos, eu mesmo gravava quatro, cinco shows de bandas por final de semana, e muitas vezes me chamavam para gravar eventos particulares, porque queriam aquilo tudo registrado", conta. "Hoje, a gente faz dinheiro com mixagens, divulga��o de CDs e venda de pen-drive."

Entre criadores, gestores e artistas, alguns nomes chamam aten��o por representarem o presente do forr� e apontarem seu futuro pr�ximo – seria erro tecer previs�es a longo prazo em um g�nero t�o vivo.

Nascido em S�o Paulo e criado em Campina Grande, na Para�ba, f� de rap e quase MC de funk, autointitulado O Rei dos Pared�es, o forrozeiro Jap�ozinho � um dos nomes que incorporam a atual fase do forr�. O jovem est� sempre em busca de atualiza��o, � nativo do mundo digital, navega pelas casas de show de capitais do Brasil e mant�m um p� nos shows pelos interiores do pa�s.

Sem preconceito

"Sempre tive o sonho de ver minha m�sica tocando nos pared�es", diz o cantor, que fez sucesso no ano passado com "Carinha de nen�m", hoje com mais de 85 milh�es de visualiza��es no YouTube. Ciente da import�ncia do streaming, o artista n�o diminui o peso das novidades trazidas pelas ruas e pequenas cidades do Cear� – caso do fen�meno da pisadinha ou do forr� de favela, um subg�nero ultra rom�ntico que ganha for�a nas periferias de Fortaleza.

"Se n�o ligam o som do pared�o, meu som n�o toca. Ao mesmo tempo, fa�o 250 shows por ano", diz Jap�ozinho. "Vivemos numa mistura de ritmos, o que faz com que pessoas do Sul, mais acostumadas a samba e pop, escutem forr�. Hoje, o forr� � mesti�o e quebrou preconceitos." 

* O rep�rter viajou a convite do Sua M�sica