De camisa cinza de manga longa, em fundo escuro, o escritor Mia Couto cruza os braços e encara a câmera

Mia Couto diz que "os verdadeiros donos (do planeta) s�o organismos invis�veis que desprezamos como 'inferiores"'

Joel Saget/ AFP

A pandemia da COVID-19 devia ser um momento para repensarmos n�o apenas o nosso lugar, mas tamb�m uma economia e pol�ticas que s�o profundamente injustas, predadoras e criadoras de mis�ria e desequil�brios. N�o se trata de apenas corrigir e recompensar. � urgente questionar a ideia de que a tecnologia pode ser, por si mesma, a salva��o da nossa esp�cie e do planeta.

Mia Couto, que nunca chegou a participar de um clube de livro como leitor, veio ao Brasil na semana passada para participar, no Rio de Janeiro, do Clube de Leitura CCBB 2023, que tem curadoria de Suzana Vargas. Durante o encontro com os leitores, ele falou sobre “Antes de nascer o mundo”, originalmente publicado em 2009. 

Em Mo�ambique, o livro ganhou o t�tulo de “Jesusal�m” e em franc�s e ingl�s, “O afinador de sil�ncios”, todos muito queridos e apropriados, segundo o autor. Al�m de Mia, a escritora Stella Maris Rezende participou a dist�ncia, com perguntas dirigidas ao autor. A conversa estar� dispon�vel no canal do Banco do Brasil no YouTube a partir desta semana.

No romance “Antes de nascer o mundo”, Silvestre � um pai terr�vel que declara aos filhos que o mundo j� n�o existe e, consequentemente, n�o h� mais mulheres no planeta. � uma inven��o problem�tica, dif�cil de sustentar e cujo impacto na vida das crian�as pode ser desastroso. 

"A narrativa fala dessa 'na��o' inventada por um homem magoado pelos seus pr�prios fantasmas. A sua inten��o � afastar a ordem mundana e a ordem divina para al�m das fronteiras que ele toscamente desenhou. Uma dessas fronteiras � uma cruz onde 'Deus vir� pedir perd�o � humanidade'. A simples visita de uma mulher desmorona aquela constru��o quixotesca de um pai tirano", explica Mia.

Silvestre � um personagem mis�gino e autorit�rio que, involuntariamente, acaba por deixar uma li��o em meio ao exerc�cio de tirania ao ser obrigado a olhar para sua pr�pria constru��o e v�-la desmoronar. De certa forma, o livro tamb�m fala da arrog�ncia humana, a mesma que Mia lamenta quando pensa em epis�dios recentes da hist�ria das sociedades, como a pandemia e o aquecimento global. 

Formado em biologia e diretor da Impacto Ltda., empresa que faz estudos e pesquisas na �rea de impactos ambientais, o escritor � tamb�m um diligente observador do sucesso humano em agir de forma a descarrilar o meio ambiente. 
 

A pandemia faz parte da longa lista de consequ�ncias da arrog�ncia de uma esp�cie decidida a ser a dona do planeta.
 
"Existe uma arrog�ncia da maior parte das sociedades humanas em nos acreditarmos os administradores do planeta. Somos o topo e o centro daquilo que n�s mesmos chamamos de 'evolu��o'. A verdade � outra: os verdadeiros donos s�o organismos invis�veis que desprezamos como 'inferiores'", diz Mia, que fala sobre literatura, leitura, Mo�ambique e pandemia na entrevista a seguir.

Pode contar um pouco como chegou � hist�ria narrada neste livro, � hist�ria de Silvestre, Mwanito e Ntunzi?

Eu queria h� muito tempo falar da minha pr�pria inf�ncia, de como fui uma crian�a que morava no sil�ncio e como, por via desse sil�ncio, eu conversava com o meu pai e os dois viaj�vamos por mundos desconhecidos. A figura deste Silvestre � o ant�poda daquilo que foi o meu pai. Este Silvestre � mis�gino, tem na sua hist�ria um trauma que o leva a declarar que o mundo deixou de existir e, desse modo, as mulheres se extinguiram n�o apenas como presen�a, mas como mem�ria coletiva.

Como a pandemia afetou voc� enquanto autor, mas tamb�m enquanto cidad�o?

Eu acho que a principal li��o deveria ser a da humildade. Existe uma arrog�ncia da maior parte das sociedades humanas em nos acreditarmos os administradores do planeta. Somos o topo e o centro daquilo que n�s mesmos chamamos de "evolu��o". A verdade � outra: os verdadeiros donos s�o organismos invis�veis que desprezamos como "inferiores". S�o, contudo, essas bact�rias e os v�rus que tecem e voltam a tecer a vida em cada instante. Estamos ocupados a descobrir quando se iniciou a epopeia da vida na Terra. A vida nasce todos os dias e nasce n�o por causa da nossa esp�cie. Nasce por obra dessa teia de microrganismos que inventaram os mais espantosos mecanismos de converter luz em mat�ria, o ar em energia e organizaram os grandes ciclos com o cuidado de reciclar os res�duos e transformar em nova vida aquilo que parece ser sobra, excre��o ou detrito. A COVID-19 devia ser um momento para repensarmos n�o apenas o nosso lugar, mas tamb�m uma economia e pol�ticas que s�o profundamente injustas, predadoras e criadoras de mis�ria e desequil�brios. N�o se trata de apenas corrigir e recompensar. � urgente questionar a ideia de que a tecnologia pode ser, por si mesma, a salva��o da nossa esp�cie e do planeta.
 

Existe uma pressa enorme em fazer crer que a salva��o da humanidade e do planeta nascer� de tecnologias de ponta cujos programas de investiga��o s�o controlados pelo mercado. Por muito que nos custe, � preciso aceitar que a pandemia da COVID-19 se desvaneceu n�o apenas por aquilo que fizemos n�s, a humanidade. Mas o v�rus ajudou a vencer a crise. N�o fossem muta��es que conduziram � variante da omicron estar�amos ainda hoje em situa��o de crise

Mia Couto, escritor

 

Lembran�as e esquecimentos s�o temas comuns na sua fala e na sua literatura. � poss�vel esquecimento diante do que o mundo viveu com a pandemia?

Acredito que existe uma fabrica��o do esquecimento tanto como existe uma fabrica��o do sil�ncio. N�o s�o lapsos. Existe uma pressa enorme em fazer crer que a salva��o da humanidade e do planeta nascer� de tecnologias de ponta cujos programas de investiga��o s�o controlados pelo mercado. Por muito que nos custe, � preciso aceitar que a pandemia da COVID-19 se desvaneceu n�o apenas por aquilo que fizemos n�s, a humanidade. Mas o v�rus ajudou a vencer a crise. N�o fossem muta��es que conduziram � variante da omicron estar�amos ainda hoje em situa��o de crise.

Como, na sua opini�o, construiremos a lembran�a desse per�odo?

� importante pensar que outras pandemias nos atingiram recentemente e j� nos esquecemos delas. Apenas para referir a mais recente: a chamada "gripe espanhola". Na maior parte dos crit�rios, esta gripe que foi vivida pelos nossos av�s em todos os pa�ses do mundo foi bem mais grave do que a COVID-19. No entanto, n�s vivemos esta �ltima pandemia como se fosse a primeira. O meu receio � que se esque�am as raz�es e as li��es desta crise. A COVID-19 sugeriu, por exemplo, a necessidade de termos uma institui��o central forte como a OMS (que tende a ser cada vez marginalizada). A COVID-19 sugeriu que se investisse no refor�o dos Servi�os Nacionais de Sa�de e n�o tanto na medicina privatizada. Ser� que aprendemos essas li��es?

Voc� sempre diz que a oralidade faz com que seja imposs�vel n�o ser escritor em Mo�ambique. Qual o papel da oralidade na literatura mo�ambicana?

A oralidade � muitas vezes entendida como um est�gio evolutivo que todos devem chegar para chegar ao patamar superior que � da escrita. A oralidade seria uma esp�cie de patrim�nio ainda presente nos povos ind�genas e nas sociedades primitivas. Mas a oralidade est� presente em todos n�s, em todas as na��es do mundo. Nascemos nela e foi ela o nosso ch�o at� lan�armos as ra�zes como pessoas. O papel da oralidade n�o difere muito no Brasil e em Mo�ambique. O que a escrita faz � reconstituir a ponte entre a letra e a voz, entre a palavra grafada e a palavra falada.
 

A COVID-19 sugeriu que se investisse no refor�o dos Servi�os Nacionais de Sa�de e n�o tanto na medicina privatizada. Ser� que aprendemos essas li��es?

Mia Couto, escritor

 

Voc� e seus irm�os t�m uma funda��o dedicada a promover a literatura e a arte entre os jovens mo�ambicanos e tamb�m criaram um pr�mio anual para primeiros livros. O que tem interessado os jovens autores mo�ambicanos? H� temas comuns entre eles?

Os jovens de Mo�ambique querem o que todos os jovens deste mundo ambicionam: serem sujeitos, ter voz, ter acesso, sentarem � mesa onde se faz a cultura e a gest�o das sociedades e dos recursos. Esse � o tema comum. Falando em termos da literatura, a poesia continua sendo o g�nero mais expressivo e mais procurado no meu pa�s. Talvez a poesia pode traduzir melhor esse sonho de um outro mundo mais humano e mais humanizante. Mas a poesia tamb�m � mais veloz e mais pl�stica e ajusta-se �s can��es de interven��o que podem ser usadas como arma de mudan�a.

Enquanto bi�logo que �, como tem observado as �ltimas decis�es das reuni�es do clima? Tem esperan�a de que ser� poss�vel conter a destrui��o?

� preciso ter no��o do limite que essas confer�ncias mundiais podem fazer. O que ali se decide � importante, sim, mas n�o basta. � preciso ir mais longe. Os pol�ticos que sentam nas confer�ncias est�o a falar de um cavalo enfurecido que tomou o freio nos dentes. Eles podem ajustar, ou seja, apertar as r�deas. Mas esse cavalo n�o lhes pertence. Os donos do cavalo s�o o mercado, os chefes das grandes corpora��es e dos grandes bancos. Eles � quem deviam ser respons�veis e, sobretudo, responsabilizados.