Boris Fausto, um dos principais historiadores do Brasil, morre aos 92 anos
Autor de "A Revolu��o de 1930", "O brilho do bronze" e "Vida, morte e outros detalhes" , entre outras obras, cientista influenciou gera��es de historiadores
Boris Fausto havia sofrido um AVC em junho de 2021, mas n�o se recuperou plenamente
Simon Plestenjak/UOL/Folhapress
Em 2014, o historiador Boris Fausto lan�ou o livro "O brilho do bronze", um di�rio escrito ao longo dos meses seguintes � morte de Cynira Stocco, com quem ele havia sido casado por quase cinco d�cadas. Em um trecho, Boris comenta uma entrevista de dom Paulo Evaristo Arns. "A certa altura, ele diz: ‘Estou preparado para a morte, mas n�o tenho pressa’. Da minha parte, pressa tamb�m n�o tenho. Algum dia estarei preparado?"
Preparado ou n�o, um dos maiores historiadores do pa�s, autor de livros fundamentais para a compreens�o do Brasil do s�culo 20, morreu nessa ter�a-feira (18/4), aos 92 anos em S�o Paulo. O vel�rio ser� nesta quarta-feira (19/4). Em junho de 2021, havia sofrido um AVC (acidente vascular cerebral), mas teve recupera��o razo�vel nos meses seguintes.
"O brilho do bronze" � o �pice da fase memorialista do autor, que come�ou com "Neg�cios e �cios: Hist�rias da imigra��o" (1997) e se estendeu at� "Vida, morte e outros detalhes" (2021), com produ��es de outros g�neros entre eles. S�o livros em que Boris une as reminisc�ncias da vida familiar, da comunidade judaica e do cotidiano paulistano, al�m de reflex�es sobre temas diversos, da finitude ao futebol.
Embora escritas com precis�o e gra�a, n�o foram as obras desse per�odo que o consagrou. Seu primeiro livro, "A Revolu��o de 1930" (1970), influenciou a sua gera��o de historiadores e as seguintes. N�o tardou para que fosse visto como um cl�ssico, assim como "Crime e cotidiano" (1984), um estudo pioneiro sobre a criminalidade em S�o Paulo.
Ele p�de se aprofundar nas pesquisas para esse livro gra�as, entre outros fatores, � sua experi�ncia como advogado, seu primeiro ganha-p�o. Boris Fausto, hoje quase sin�nimo de historiador voltado �s quest�es brasileiras, n�o dedicou sua juventude a esse campo de estudo diretamente. Foi, como ele costumava dizer, um historiador tardio.
A certa altura, ele (Dom Paulo Evaristo Arns) diz: 'Estou preparado para a morte, mas n�o tenho pressa'. Da minha parte, pressa tamb�m n�o tenho. Algum dia estarei preparado?
Boris Fausto, hist�riador
Trauma na inf�ncia
Nascido em S�o Paulo em 1930 (justamente o ano-tema do seu livro mais festejado), era o primog�nito de uma fam�lia de origem judaica. Seus pais, Simon e Eva, tiveram outros dois filhos, Ruy, que se tornou fil�sofo de prest�gio, e Nelson, m�dico de carreira bem-sucedida nos EUA.
Um epis�dio traum�tico afetou sua inf�ncia – na verdade, toda a vida. Quando ele tinha 7 anos, sua m�e come�ou a passar mal em uma praia de Santos e morreu instantes depois. Negociante de caf�, imigrante da classe m�dia paulistana, Simon entregou os meninos para que fossem criados pela tia Rebeca, irm� da m�e.
O abalo tornou os irm�os ainda mais pr�ximos. Passavam horas jogando futebol no quintal da casa da Avenida Ang�lica, em Higien�polis, com Boris como goleiro. Vem dessa �poca a paix�o pelo Corinthians, um contraponto � racionalidade na vida pessoal e na carreira. Seu grande �dolo foi o meia Jos� Augusto Brand�o, que jogou no time alvinegro nas d�cadas de 1930 e 1940.
Literatura e pol�tica
Interessava-se por literatura desde menino, e os estudos em col�gios tradicionais de S�o Paulo tamb�m agu�aram nele a curiosidade pela pol�tica. Essa combina��o o conduziu ao curso de direito —acreditava que receberia uma forma��o ampla no campo das humanidades; al�m disso, eram poucas as op��es de carreira no fim dos anos 1940, quando ele entrou na faculdade no Largo de S�o Francisco.
Sem entusiasmo pelo curso, dedicou-se mais �s quest�es pol�ticas do que �s jur�dicas. Ao lado do irm�o Ruy, aderiu enfaticamente ao trotskismo, "uma doen�a infantil contra�da na idade adulta, que durou 10 anos", como disse em uma longa entrevista no livro "Leituras Cr�ticas sobre Boris Fausto", organizado pela tamb�m historiadora �ngela de Castro Gomes.
Alguns fatos decisivos para a trajet�ria de Boris se concentram na primeira metade da d�cada de 1960. Casou-se em 1961 com a educadora Cynira Stocco Fausto (1931-2010), com quem teve dois filhos, S�rgio, que se tornaria cientista pol�tico e superintendente da Funda��o Fernando Henrique Cardoso; e Carlos, antrop�logo dedicado � pesquisa de povos ind�genas.
No ano seguinte, Boris foi aprovado em um concurso para procurador de Estado e logo recebeu um convite para trabalhar como consultor jur�dico da USP. At� ent�o, dividia um escrit�rio de advocacia com colegas da S�o Francisco.
Pris�o na ditadura
Com interesses intelectuais que as atividades jur�dicas n�o satisfaziam e estimulado por Cynira, ele come�ou a estudar hist�ria na mesma universidade, em 1963. Antes de se dedicar integralmente �s pesquisas e �s aulas de hist�ria do Brasil, manteve por mais de duas d�cadas ambas as carreiras.
Foi, por outro lado, um per�odo de apreens�o crescente. Algumas semanas depois do golpe militar, Boris soube que estava sendo procurado por policiais devido ao seu passado de militante trotskista, embora, a essa altura, j� se distanciasse dos dogmas da esquerda. Decidiu se apresentar no Dops e ficou preso por tr�s dias.
Seis anos depois, quando o pa�s estava sob a forte repress�o do AI-5 (Ato Institucional nº 5), o susto foi maior. Uma vizinha de Boris e Cynira, que havia abrigado militantes da luta armada, temia estar sendo vigiada por homens da Oban (Opera��o Bandeirante), unidade de investiga��o criada pelo Ex�rcito – sim, ela estava.
A vizinha foi pedir ajuda ao casal e acabou presa, assim como Boris. "Me deram coronhadas, pontap�s e me jogaram no fundo de uma C-14 (caminhonete muito usada pelos agentes da repress�o)", ele contou na entrevista para o livro "Leituras cr�ticas sobre Boris Fausto".
S� n�o foi torturado, acredita, gra�as ao arquiteto Rodrigo Lef�vre. Depois de apanhar muito, o integrante da ALN (Alian�a Libertadora Nacional) estava a tal ponto debilitado que era incapaz de oferecer resist�ncia. Ao ver Boris, Lef�vre disse aos funcion�rios da Oban que ele n�o estava envolvido com a resist�ncia armada, afirma��o que o salvou depois de horas de afli��o.
Revolu��o de 19030
Foi um epis�dio menor diante de tantas situa��es com pessoas mortas ou torturadas nessa �poca, mas o suficiente para Boris sentir a amea�a da "revolu��o", como as For�as Armadas se referem ao golpe de 1964. Naquele mesmo ano, 1970, ele publicou em livro as suas conclus�es sobre outra revolu��o, essa sem aspas, a Revolu��o de 1930.
At� ent�o, prevalecia uma vis�o que Boris chama no seu livro de "teoria do dualismo das sociedades dependentes latino-americanas", uma simplifica��o, segundo ele, defendida pelos te�ricos do Partido Comunista. Autores desse grupo viam a movimenta��o de 1930, que levou Get�lio Vargas ao poder, como uma revolu��o da burguesia ou das classes m�dias.
Ao se dedicar a esse per�odo para seu doutorado, Boris se deu conta que a realidade era bem mais complexa. O fim da Rep�blica Velha era resultado, sobretudo, de conflitos no interior das oligarquias regionais, uma tens�o que vinha se acumulando nos anos 1920.
O trecho final da introdu��o de "A Revolu��o de 1930" deveria servir de alerta para a historiografia como um todo. "Como as duras li��es da hist�ria rompem mais lentamente do que se imagina uma carapa�a ideol�gica formada ao longo do tempo, talvez este trabalho possa contribuir, indiretamente, para o processo de ruptura."
Obras abrangentes
Diante da repercuss�o do livro, provavelmente o mais conhecido de Boris, ao menos essa carapa�a foi rompida. Nos anos seguintes, al�ado � posi��o de professor do Departamento de Ci�ncia Pol�tica da USP, ampliou o leque de assuntos abordados em seus estudos. Sua pesquisa dos movimentos oper�rios no per�odo que vai de 1890 a 1920 resultou no livro "Trabalho urbano e conflito social", obra tamb�m tomada como refer�ncia, mas que n�o resistiu t�o bem ao tempo quanto "A Revolu��o de 1930".
Vieram livros de larga abrang�ncia, como "Hist�ria do Brasil" (1994), um tijolo de quase 700 p�ginas escolhido pelo Pr�mio Jabuti como um dos melhores do ano na categoria did�ticos, e "Fazer a Am�rica – A imigra��o em massa Para a Am�rica Latina", do qual foi o organizador.
IMIGRA��OEm outros, no entanto, Boris adotou os m�todos da micro-hist�ria – em vez de narrativas abrangentes, o pesquisador diminui expressivamente a escala de observa��o do seu objeto. Est�o nesse campo obras como "Neg�cios e �cios" (1997), vencedora do Jabuti em ci�ncias humanas.
Tamb�m sob essa lente mais fechada, Boris lan�ou "O crime do Restaurante Chin�s – Carnaval, futebol e justi�a na S�o Paulo dos anos 30" (2009) e "O crime da Galeria de Cristal" (2019), livros que reafirmam seu interesse por crimes complexos, em contextos (onda de imigra��o, por exemplo) que ajudam a explicar um per�odo da capital paulista.
Nos textos mais curtos para a imprensa, Boris optava por comentar a pol�tica e a hist�ria recente do pa�s. Na Folha de S.Paulo, onde foi colunista de 1998 a 2003, escreveu um artigo memor�vel sobre os 30 anos do AI-5. Ali�s, sempre foi um atento leitor de jornais. Seu av� materno, que era cego, pedia a ele que lesse as reportagens do jornal O Estado de S. Paulo. Boris tinha apenas 5 anos.
Desencanto partid�rio
Assim como perdeu as ilus�es com o trotskismo, Boris demonstrou nas �ltimas d�cadas desapontamento com o PSDB, do qual havia sido entusiasta na funda��o, em 1988. "O PSDB se transformou num conglomerado que tem muito pouco a ver com o que foi", disse ao UOL, em 2018. Curiosamente, o irm�o do meio, Ruy, grande estudioso do marxismo, tamb�m viveu um desencanto partid�rio. Havia sido eleitor do PT, mas se decepcionou com a sigla.
O livro "Vida, morte e outros detalhes", lan�ado por Boris em 2021, foi, em grande parte, impulsionado pela morte de Ruy, no ano anterior. O ca�ula Nelson havia morrido em 2012. A obra � farta de mem�rias da inf�ncia, especialmente da conviv�ncia dos irm�os.
No final do texto "A tribo", Boris escreveu: "O trio do futebol da Avenida Ang�lica desapareceu h� muitos anos. Restou apenas o goleiro solit�rio que espera pela partida, sem nenhuma pressa".
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