Ruy Guerra, cineasta e composito, fuma charuto e olha para a câmera

Ruy Guerra falou de viol�ncia e desesperan�a em 'Cad�'

Karime Xavier/Folhapress

'Os censores liam as propostas e can��es j� com preconceito, censuravam tudo o que n�o compreendiam, at� palavras inocentes ou met�foras suspeitas'

Ruy Guerra, cineasta e compositor


Gabriel de S�
Especial para o EM
  
“N�o me chame de senhor, por favor”, pede Ruy Guerra, ao telefone, do alto de seus 91 anos. O cineasta mo�ambicano � um personagem importante n�o apenas do disco “Milagre dos peixes”, mas da trajet�ria de Milton Nascimento. Ele � o autor da letra de “Cad�”, can��o censurada pela ditadura militar e gravada em vers�o instrumental no �lbum de 1973.


“Vetada. Ironia pol�tica. Contesta��o”, escreveu ela, � m�o, em abril de 1973, ao lado da letra criada por Ruy Guerra para a melodia de Milton Nascimento.

O �lbum “Milagre dos peixes” teve outras duas composi��es proibidas pela censura: “Hoje � dia de El-Rey”, de Milton e M�rcio Borges, e “Os escravos de J�”, parceria de Milton com Fernando Brant. O artista n�o se intimidou com as proibi��es e resolveu gravar as can��es sem as letras, fazendo do disco de 1973 um trabalho essencialmente instrumental.

A composi��o de Milton Nascimento e Ruy Guerra evoca personagens do universo infantil, como Peter Pan, Branca de Neve, Alice e Bela Adormecida, em atmosfera de flagrante desesperan�a.

No documento, localizado no acervo digital do Arquivo Nacional, est�o sublinhados pela oficial trechos como “E a tua esperan�a, Branca de Neve/ Cad�, quem levou?” e “Meu pr�ncipe assustado/ Meu pr�ncipe queimado/ Corta a noite escura dessa floresta/ Mata o fogo do drag�o”. Estas passagens justificam o veto, na vis�o de Brum Duarte, por conterem “ironia pol�tica” e “contesta��o”.
 
Documento da censura em que trechos da letra da canção Cadê são vetados pela censora Marina Duarte

'Vetada. Ironia pol�tica. Contesta��o', escreve a censora Marina de Almeida Brum Duarte, em abril de 1973, ao lado da letra de Cad�

Arquivo Nacional
 

Mas os versos de “Cad�” se esva�ram da mem�ria de Ruy Guerra. “Nunca fui muito organizado, h� coisas de que eu realmente n�o me lembro. Estive doente e minha mem�ria foi bastante afetada”, detalha o cineasta.

O compositor recebe a letra para analisar o conte�do e responde, por mensagem de texto: “Pode ser minha, acho mesmo que �, mas n�o posso jurar”.

“Cad�” foi gravada com a letra original apenas em 1978, por Gal Costa, no disco “�gua viva”. “Meu pr�ncipe encantado/ Meu pr�ncipe cansado/ Cad� tuas botas de sete l�guas/ E a Tilin de Peter Pan?”. Antes disso, Bituca registrou a can��o com letra em ingl�s criada por Matthew Moore no LP “Milton”, lan�ado em 1976, com o nome de “Fairy tale song” (“Can��o de conto de fadas”, em tradu��o literal).
 
• Ou�a a letra original de 'Cad�', gravada por Gal Costa:
 
 

A primeira parceria com Ruy Guerra, “Canto latino”, Milton registrou no �lbum de 1970. Da colabora��o musical dos dois se destacam tamb�m “E da�? (A queda)”, faixa no LP “Clube da Esquina 2” (1978), e “Bodas”, da trilha sonora de “Os deuses e os mortos”, gravada ao vivo no �lbum “Milagres dos peixes” de 1974. Desta, Ruy Guerra lembra-se bem, e a cantarola ao telefone: “Chegou no porto um canh�o/ Dentro de uma canhoneira, neira, neira…”.

Meu pr�ncipe cansado

Radicado no Brasil desde os anos 1950, Ruy Guerra rodou alguns dos cl�ssicos do cinema brasileiro, como “Os cafajestes”, “Os fuzis” e “Os deuses e os mortos”. Milton comp�s a trilha sonora deste �ltimo, lan�ado em 1970, mas ele e Guerra j� se conheciam desde o Festival Internacional da Can��o de 1967.

“Milton apareceu com aquela voz brilhante, e um talento de compositor igualmente extraordin�rio. Foi uma distribui��o de talentos desigual para ele”, brinca o cineasta e compositor.

Ruy Guerra consagrou-se tamb�m na m�sica popular, para a qual gerou composi��es com Edu Lobo, Marcos Valle, Francis Hime, Carlos Lyra e, sobretudo, Chico Buarque. 

S�o da lavra dele e de Chico p�rolas como “B�rbara”, “Tatuagem” e “N�o existe pecado ao sul do Equador”, feitas para a pe�a de teatro “Calabar: O elogio da trai��o”, de autoria dos dois e proibida pela ditadura militar em 1974.
 
Documento da censura em que trechos da letra da canção Cadê são proibidos pela censora Marina Duarte

Olhar, dan�ar, pular, rodar e sorrir: verbos da letra de 'Cad�', subversivos na vis�o da censura do governo militar

Arquivo Nacional
 

“A gente tinha que fazer um grande esfor�o”, diz Ruy Guerra. “Os censores liam as propostas e can��es j� com preconceito, censuravam tudo o que n�o compreendiam, at� palavras inocentes ou met�foras suspeitas”. Chico Buarque estava na lista de artistas perseguidos pelo regime militar, e Ruy acredita que a fama subversiva do amigo acabou respingando nele.

Mas e Milton, cujas can��es tinham teor pol�tico radicalmente mais sutil que as dos outros compositores? “Milton nunca foi de falar muito, nem de dar declara��es pol�ticas. � um cara de frases curtas, n�o verborr�gico como eu. Mesmo assim, foi censurado”, opina Guerra.
 

'Milagre dos peixes': erros grosseiros no Spotify

O �lbum “Milagre dos peixes” est� dispon�vel no servi�o de streaming Spotify, por�m h� can��es creditadas de maneira incorreta, causando confus�o nos ouvintes desavisados. A faixa citada como “Cad�”, por exemplo, � “Pablo nº2”; enquanto a verdadeira “Cad�” aparece como “A �ltima sess�o de m�sica”. Esta inconsist�ncia nas informa��es ocorre em cinco das 11 faixas do disco.

S�RIE DE REPORTAGENS

O Estado de Minas publica desde domingo a s�rie de reportagens O milagre de Milton”, sobre os 50 anos de lan�amento do LP “Milagre dos peixes”. Lan�ado em 1973, o �lbum tornou-se o grito de Milton Nascimento contra a censura vigente na ditadura militar. O sucessor do aclamado “Clube da Esquina” foi mutilado pelos censores, que vetaram os versos de tr�s parcerias do cantor: “Os escravos de J�” (com Fernando Brant), “Hoje � dia de El-Rey” (com M�rcio Borges) e “Cad�” (com o cineasta Ruy Guerra). Milton, ent�o, preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que expressavam o que havia sido proibido. As reportagens j� publicadas podem ser lidas no em.com.br
 

LEIA NESTA QUINTA (8/6)

Em 1974, Milton Nascimento enfrentou mais uma vez os militares e gravou “Milagre dos peixes” ao vivo no Theatro Municipal de S�o Paulo.