Nico Borges posa ao lado do piano

'Cantei a m�sica sozinho e, no terceiro take, eu j� tinha matado', diz Nico Borges, ca�ula dos 11 filhos de Salom�o e Maricota Borges, ao lembrar a grava��o de "Milagre dos peixes", no Rio

Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press
 
Gabriel de S�
Especial para o EM

Em meio aos vocalises e efeitos sonoros do �lbum “Milagre dos peixes”, o recurso que Milton Nascimento utilizou para driblar a censura imposta aos versos de Fernando Brant, M�rcio Borges e Ruy Guerra, uma can��o chama a aten��o por destoar das demais: “Pablo”, a �ltima faixa do disco. Composi��o de Milton com letra de Ronaldo Bastos, ela passou inc�lume pelos censores. Mas a m�sica n�o foi entoada pelo autor, e sim por uma voz ing�nua e at� ent�o desconhecida. “Meu nome � Pablo, Pablo, Pablo/ Como um trator � vermelho/  Inc�ndio nos cabelos (…)  Meu nome � pedra/ E pedra � meu corpo.”

O timbre infantil que se escuta em “Pablo” � de Mauro Nilton Fragoso Borges, ou apenas Nico, o ca�ula dos 11 filhos do casal Maricota e Salom�o Borges, pais de L� e M�rcio Borges.  O garoto Nico tinha 12 anos quando fez sua estreia no est�dio. “Eu me lembro muito bem da grava��o. Foi uma b�n��o de Deus e uma generosidade do Bituca”, conta Nico Borges, hoje, aos 63 anos. 
 
Nico Borges, Milton Nascimento e Telo Borges

Milton Nascimento com Nico e Telo Borges, os meninos que ele p�s para cantar em 'Milagre dos peixes'

Telo Borges/Facebook/reprodu��o
 

Bituca convidou Nico e Telo, os ca�ulas dos Borges, para passar alguns dias de f�rias no Rio de Janeiro. Para isso, teve que pedir a autoriza��o dos pais, que prontamente liberaram o passeio com o amigo ilustre da fam�lia. “O Bituca sempre gozou da confian�a muito grande dos meus pais, como se ele fosse um irm�o mais velho nosso”, conta Telo Borges, de 65 anos.

No Rio, veio a ideia de colocar os “sobrinhos” para participar de “Milagre dos peixes”. “Em uma das tardes, em vez de ir para a praia ou para o zool�gico, Bituca levou a gente para o est�dio”, comenta Telo, � �poca com 14 anos.
 
Nico e Telo emprestaram suas vozes para as melodias de “Os escravos de J�” e “Cad�”. Mas a participa��o de Nico foi al�m, como solista de “Pablo”. “Cantei a m�sica sozinho e, no terceiro take, eu j� tinha matado. Sou muito grato ao Bituca, assim como toda a minha fam�lia �”, diz o irm�o mais novo de L� e M�rcio.

O drible de Ronaldo na censura

Depois das f�rias com ao menos um dia de m�sicos, os meninos voltaram para BH. “Apesar de garoto, eu estava sabendo de tudo o que estava acontecendo naquela ditadura cruel e sanguin�ria”, relata Nico, que lan�ou recentemente seu primeiro disco, “Pura magia”. “Se prestar aten��o na letra (de ‘Pablo’), voc� percebe claramente como o Ronaldo Bastos driblou a censura genialmente”.
 

Telo Borges tamb�m se lembra com carinho das grava��es do disco nos est�dios da Odeon, na Avenida Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro. “Era muito novo, tinha 14 anos, e n�o sabia, naquele momento, a dimens�o de estar gravando aquele disco, que se tornou antol�gico na carreira do Bituca. Pra mim, eu tava de f�rias, passeando no Rio de Janeiro”, conta o instrumentista e compositor mineiro.

“Eu me sinto honrado de ter meu nome na ficha t�cnica e fico surpreso de ver onde esse disco maravilhoso chegou”, conta Telo. Ele e Milton desenvolveram a amizade e tornaram-se tamb�m parceiros musicais: fizeram juntos tr�s can��es.

Uma delas, “Tristesse”, do �lbum “Piet�”, de 2002, ganhou o Grammy Latino de melhor can��o brasileira. Telo integrou ainda a banda de apoio de Bituca por meia d�cada. “Sou muito grato ao Bituca. Amo ele de paix�o, assim como amo meus irm�os”, arremata ele.
 
Telo Borges segura a estatueta do prêmio Grammy Latino

Telo Borges em 2003 e o Grammy Latino ganhou com 'Tristesse', sua parceria com Milton Nascimento

Sylvio Coutinho/divulga��o

P� de nuvem nos sapatos

A can��o gravada por Nico Borges foi feita para Pablo, filho de K�ritas, companheira de Milton entre os anos 1960 e 1970. "Milton � pai simb�lico de Pablo, n�o � o pai leg�timo, mas ele faz quest�o que se diga que Pablo � seu filho", disse K�ritas � Folha de S. Paulo em 1997.

Na biografia “Travessia – A vida de Milton Nascimento”, a autora Maria Dolores narra que, ao saber da gravidez de K�ritas, Milton assumiu a postura de um pai dedicado, preocupado, sentimental e coruja. “O menino chamou-se Pablo e ganhou de presente uma m�sica com seu nome”, diz o livro.
 
 

A autora narra a passagem em que Milton quis levar o menino Pablo para uma apresenta��o de “Milagre dos peixes” para os estudantes da Faculdade de Arquitetura da USP, em um domingo de 1974. Mas K�ritas, receosa pela seguran�a do filho, j� que Milton e seu disco estavam na mira dos militares, n�o deixou. No show, para cerca de 10 mil pessoas, quando Milton cantou “Pablo”, v�rias pessoas da plateia ergueram seus filhos.

K�ritas e Pablo moravam em S�o Paulo. O sucesso da grava��o ao vivo de “Milagre dos peixes” na cidade fez com que o cerco se fechasse a Milton. Maria Dolores detalha que o ent�o secret�rio de Seguran�a P�blica de S�o Paulo, coronel Erasmo Dias, havia avisado que n�o queria Milton circulando por l�, at� que fora proibido de pisar na cidade.

A autora da biografia de Milton  narra que o m�sico foi amea�ado pelos militares e  Pablo poderia sofrer consequ�ncias se ele continuasse a se apresentar na terra da garoa. “As autoridades sabiam da exist�ncia de Pablo, sua idade, o endere�o, o telefone e tudo mais”, diz Maria Dolores.

Temendo o pior para sua fam�lia, Milton acatou a amea�a. “Que ningu�m ficasse sabendo desse ‘pequeno acordo’. Bituca sofreu calado. Amea�aram sequestrar o menino. Ele n�o podia dividir aquela dor com ningu�m, pois qualquer um que soubesse da hist�ria correria risco tamb�m”, descreve a bi�grafa.

Segundo o livro, Bituca arrumou as malas, voltou para o Rio e desapareceu da vida de K�ritas e Pablo, perdendo contato com a companheira e com o menino. “Nunca mais se relacionou com o filho”, finaliza Maria Dolores.

S�RIE DE REPORTAGENS

O Estado de Minas iniciou no domingo (4/6) a publica��o da s�rie de reportagens “O milagre de Milton”, sobre os 50 anos de lan�amento do LP “Milagre dos peixes”. Lan�ado em 1973, o �lbum tornou-se o grito de Milton Nascimento contra a censura vigente na ditadura militar. O sucessor do aclamado “Clube da Esquina” foi mutilado pelos censores, que vetaram os versos de tr�s parcerias do cantor: “Os escravos de J�” (com Fernando Brant), “Hoje � dia de El-Rey” (com M�rcio Borges) e “Cad�” (com o cineasta Ruy Guerra). Milton Nascimento, ent�o, preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que expressavam o que havia sido proibido.