Ze Celso

Ze Celso

Jennifer Glass/Divulga��o Oficina

Em 1958, o Brasil come�ava a mostrar a sua cara para o planeta com a conquista da primeira Copa do Mundo de Futebol, depois da vit�ria contra a Su�cia. A batida diferente da bossa nova passava a ecoar para al�m dos apartamentos de Copacabana com a grava��o do �lbum Chega de Saudade, do cantor Jo�o Gilberto, e Bras�lia, a moderna capital federal idealizada pelos arquitetos Oscar Niemeyer e L�cio Costa, entrava em ritmo acelerado de constru��o.

O teatro brasileiro se mostrava polarizado entre a inspira��o no modelo europeu pregado pelo TBC (Teatro Brasileiro de Com�dia) e o nacionalismo exacerbado do Teatro de Arena, representado por, entre outros, o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, que despontou naquele ano com a pe�a Eles n�o Usam Black-Tie.

� neste cen�rio, disposto a implantar um modelo inovador, que o jovem Jos� Celso Martinez Corr�a aposenta o terno e a gravata de futuro advogado para adotar o figurino de artista.

Junto a outros colegas da faculdade de direito do Largo S�o Francisco, da Universidade de S�o Paulo (USP), entre eles o carioca Renato Borghi e o mineiro Amir Haddad, ele funda o Teatro Oficina, uma companhia que atravessa diversas vertentes ao longo das seis d�cadas seguintes e conecta as artes c�nicas brasileiras �s vanguardas internacionais em uma proposta cr�tica e provocadora.


Zé Celso se preparando em frente ao espelho no camarim para atuar na peça 'Roda Viva' no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 2019

Z� Celso construiu uma das trajet�rias mais expressivas do meio art�stico brasileiro

CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images

Z� Celso, como ficou conhecido, nasceu em Araraquara, no interior paulista, em 30 de mar�o de 1937, e cresceu em uma fam�lia de sete irm�os comandada por uma m�e rigorosa, de pulso firme, e um pai sens�vel, fascinado por cinema e literatura.

Os primeiros textos montados pelo Oficina, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959), s�o de sua autoria e trazem fortes inspira��es biogr�ficas. A partir do processo de profissionaliza��o, o Oficina passa a encenar grandes expoentes da dramaturgia universal com uma linguagem muito pr�pria, na busca de espelhar os conflitos tratados � realidade brasileira.

Ao longo do tempo, o Oficina passa por diferentes forma��es e caracter�sticas, mas sempre tendo Z� Celso como mentor e figura central.


Ze Celso Martinez

Diretor deixa obra que ajuda a definir o moderno teatro brasileiro

JENNIFER GLASS/DIVULGA��O OFICINA

Nome de resist�ncia � ditadura militar deflagrada em 1960, o ator, diretor e dramaturgo mergulhou nas ideias da contracultura em busca de um teatro combativo e, sempre cercado de pol�micas, construiu uma das trajet�rias mais expressivas do meio art�stico brasileiro.

Z� Celso Martinez Corr�a saiu de cena aos 86 anos, nesta quinta-feira (6/7). Ele sofreu graves queimaduras em um inc�ndio em seu apartamento no bairro paulistano do Para�so, onde morava com o marido, o ator Marcelo Drummond.


Zé Celso atuando na peça 'Roda Viva' no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 2019

Fundador do Teatro Oficina deixa legado para a cultura brasileira por meio de suas obras e atitudes

CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images

O diretor deixa uma obra que ajuda a definir o moderno teatro brasileiro e, a seguir, listamos dez pontos que ajudam a compreender o importante legado de Z� Celso para a cultura brasileira, seja atrav�s de seu teatro ou de suas atitudes.

Pequenos Burgueses (1963)

O primeiro grande sucesso do Teatro Oficina teve origem na pe�a do dramaturgo russo M�ximo Gorki (1868-1936), escrita em 1900. A s�lida dramaturgia possibilitou a Z� Celso trabalhar em uma releitura que travasse um di�logo entre a R�ssia do come�o do s�culo 20, anterior � revolu��o, e o Brasil �s v�speras de um iminente golpe militar.

Os conflitos de uma fam�lia e suas diferentes correntes de pensamentos norteiam a trama. Z� Celso usou as mem�rias emotivas do elenco para que cada um compusesse o personagem com base em suas viv�ncias. Era o m�todo Stanislavski, criado pelo russo Constantin Stanislavski (1863-1938), aplicado nos palcos brasileiros.

A cr�tica da �poca considerou Pequenos Burgueses o mais perfeito espet�culo realista j� feito no pa�s e, em suas diversas temporadas, a pe�a contou com atores como Raul Cortez, Renato Borghi, C�lia Helena, �tala Nandi, Betty Faria, Fernando Peixoto, Cl�udio Marzo e Beatriz Segall, entre outros.

O Rei da Vela (1967)

Escrita por Oswald de Andrade em 1937, a pe�a do escritor modernista permanecia in�dita nos palcos at� o ator Renato Borghi descobri-la em um livro antigo e mostr�-la para Z� Celso.

A hist�ria gira em torno de um agiota (interpretado por Borghi) que enriqueceu emprestando dinheiro a juros alt�ssimos aos endividados que volta e meia batiam a sua porta.

A pertinente cr�tica ao capitalismo foi preenchida de met�foras que criticavam a submiss�o dos brasileiros ao crescente autoritarismo dos militares.

A encena��o vibrante e aleg�rica refor�ava os conceitos da antropofagia de Oswald de Andrade e impulsionou a est�tica tropicalista que despontava no cinema, nas artes pl�sticas e, na sequ�ncia, ganharia o grande p�blico no movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Considerada um marco do teatro nacional, a pe�a foi revisitada por Z� Celso em 2017, em comemora��o dos 50 anos da estreia, tendo o mesmo Borghi � frente do elenco.

Roda Viva (1968)

Zé Celso durante apresentação de 'Roda Viva' no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 2019

Z� Celso durante apresenta��o de 'Roda Viva' no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 2019

CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images

O jovem cantor e compositor Chico Buarque era uma unanimidade nacional at� Z� Celso cruzar o seu caminho. Al�ado ao posto de astro com o sucesso da can��o A Banda, Chico decidiu escreveu uma pe�a de teatro para criticar o mundo do showbiz atrav�s de um cantor (interpretado pelo ator Heleno Prestes) que conhece a fama e cai em desgra�a ao ser devorado pela m�dia.

O diretor aboliu as met�foras e sutilezas e criou o que foi chamado de “teatro agressivo”. O elenco avan�ava sobre a plateia caminhando entre os bra�os das poltronas, em uma das cenas os atores despeda�avam um f�gado de boi cru e imagens religiosas, como a da Nossa Senhora, surgiam idealizadas, rebolando de biqu�ni.

O p�blico ficou chocado, os militares arregalaram os olhos e Chico Buarque virou um dos alvos favoritos da censura. Em 18 de julho de 1968, durante a temporada paulistana de Roda Viva, o Comando de Ca�a aos Comunistas (CCC), organiza��o paramilitar de direita radical, invadiu o Teatro Ruth Escobar e agrediu parte do elenco, que contava com nomes como o da atriz Mar�lia P�ra.

Tr�s meses depois, em apresenta��es em Porto Alegre, alguns atores, al�m de espancados e presos, foram v�timas de sequestros, sepultando a carreira do espet�culo.


Atores durante apresentação da peça 'Roda Viva' no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 2019

Cena da pe�a 'Roda Viva' durante apresenta��o no Rio de Janeiro em 2019

CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images

Gracias, Se�or (1972)

A estreita conviv�ncia com o The Living Theatre, companhia americana liderada pelo diretor Julian Beck e pela atriz Judith Malina, que visitou o Brasil entre 1970 e 1971, ampliou profundamente os horizontes de Z� Celso.

A nova ordem no teatro de vanguarda internacional era a nega��o da dramaturgia convencional, a dispensa do texto formal em nome de uma encena��o improvisada e ritual�stica influenciada pelo ambiente.

Esta mentalidade foi a base de Gracias, Se�or, uma colagem de textos estruturados em um jogo dram�tico que causava surpresa ao p�blico.

Em uma das cenas, a atriz Maria Alice Vergueiro carregava um porquinho em seus bra�os e, em outros, o p�blico era estimulado a gritar, dan�ar e at� podia ser arrastado por uma corda. Tamanha experimenta��o criou uma crise dentro do pr�prio grupo e, nesta cis�o, Renato Borghi deixou o Oficina.

Dois anos depois, Z� Celso seria preso e torturado, partindo para o ex�lio em Portugal e Mo�ambique, de onde voltaria em 1978.

Ham-Let (1993)

Depois de atravessar a d�cada de 1980 quase em sil�ncio, dedicado a cursos de forma��o de atores, Z� Celso voltou aos palcos com a pe�a As Boas, em 1991, contracenando com Raul Cortez e Marcelo Drummond, todos em personagens femininas.

A explos�o da conhecida pot�ncia criativa, por�m, se deu em Ham-Let, adapta��o da trag�dia de William Shakespeare, que inaugurou o Teatro Oficina depois de uma extensa reforma comandada pela arquiteta Lina Bo Bardi por uma d�cada.

A encena��o durava mais de cinco horas e fundia a poesia de Shakespeare a uma trilha sonora repleta de samba, bossa nova e rock’n’roll para contar a hist�ria do atormentado pr�ncipe (representado por Drummond) em conex�o com o Brasil da fome e das chacinas.

As Bacantes (1995)

Sonhada por Z� Celso h� mais de uma d�cada, a encena��o As Bacantes, pe�a do grego Eur�pedes, estreou no Teatro de Arena de Ribeir�o Preto para mais de 2500 pessoas. Em uma das cenas, a jovem atriz Leona Cavalli, sentou-se no colo do pol�tico Ant�nio Palocci, que, na �poca, era prefeito da cidade paulista.

A grande ousadia do elenco, no entanto, se deu durante uma apresenta��o no Rio de Janeiro, em 1996. Como de praxe, um espectador desavisado era arrastado para os holofotes e despido pelo elenco como em um ritual antropof�gico aos olhos dos demais espectadores.

Diante da presen�a de Caetano Veloso na plateia, n�o deu outra. O cantor e compositor teve sua roupa arrancada por um grupo de atrizes, a pol�mica tomou conta da m�dia e at� inspirou Adriana Calcanhotto a compor a can��o Vamos Comer Caetano.

O embate com Silvio Santos

Em 1980, o empres�rio e apresentador de televis�o comprou v�rios terrenos nas ruas Jaceguai, Aboli��o, Santo Amaro e Japur�, em um grande quarteir�o do bairro paulistano da Bela Vista.

O projeto inicial era construir um shopping center na esquina entre as ruas Jaceguai e Aboli��o, exatamente ao lado do Teatro Oficina, o que, segundo Z� Celso, tiraria a vis�o e a ilumina��o natural da enorme janela de vidro que ladeia o espa�o cultural. O diretor, por sua vez, reivindicava a �rea para a instala��o de um parque p�blico.

Silvio Santos, na metade da d�cada de 2010, desistiu do shopping e comunicou inten��o de levantar duas torres residenciais na �rea de quase 11.000 metros quadrados.

Z� Celso convocou a classe art�stica, as manifesta��es tomaram conta do bairro e mostraram engajamento nas recentes redes sociais e nem um tijolo foi empilhado.

O embate atravessou quadro d�cadas sem vit�ria para nenhum dos lados e, diante da teimosia e da persist�ncia de Z� Celso em n�o se calar, muitas vezes Silvio Santos deixou o ringue enfraquecido.

Os Sert�es (2002/2006)

O projeto teatral mais ousado e trabalhoso de Z� Celso foi a transposi��o para o palco do romance de Euclides da Cunha publicado em 1902.

Dividida em tr�s espet�culos, A Terra, O Homem e A Luta, a vers�o teatral enfoca respetivamente o cen�rio da cidade de Canudos, no sert�o baiano, os personagens envolvidos na mobiliza��o religiosa e popular que assustou os poderosos de um per�odo de transi��o entre a monarquia e a rep�blica e, por fim, a batalha em si que destruiu a comunidade e matou quase 25 mil pessoas.

Z� Celso interpretou o l�der religioso Ant�nio Conselheiro, secundado por um elenco de mais de quarenta atores, na trilogia que ganhou a cena no Teatro Oficina entre os anos 2002 e 2006.

Com Os Sert�es, o diretor aproveitou para trazer � tona a discuss�o sobre a for�a predat�ria do capitalismo no mundo globalizado e cutucar os defensores da especula��o imobili�ria e o apresentador Silvio Santos, que, inclusive, era representado em cena.


Zé Celso em apresentação de 'Os Sertões' em 2005 em Berlim

Z� Celso interpretou Ant�nio Conselheiro na vers�o teatral de 'Os Sert�es'

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Fausto (2022)

Apresentado entre agosto e setembro de 2022, no calor da disputa presidencial envolvendo Jair Bolsonaro (PL) e Luiz In�cio Lula da Silva (PT), Z� Celso encenou o texto do dramaturgo ingl�s Christopher Marlowe (1564-1593) para trabalhar a dicotomia entre o bem e o mal.

Cada sess�o, no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros, em S�o Paulo, era como um show de rock, com entusiasmadas manifesta��es da plateia, que n�o economizava aplausos ou gritos.

Na trama, um m�dico ambicioso, empenhado em obter uma sabedoria cada vez maior, faz um pacto com o diabo.

Na vers�o do diretor, Fausto � um brasileiro que enfrenta uma grande travessia depois de sair de uma pandemia e de um governo desp�tico com o objetivo de chegar a um lugar onde seja poss�vel respirar ventos mais democr�ticos.

Casamento: o ato final

Em uma grande manifesta��o contra a homofobia, o �ltimo ato criado e protagonizado por Z� Celso se deu em torno de um epis�dio de sua vida real e teve fortes tintas pol�ticas.

Na noite de 6 de junho, o diretor oficializou a uni�o de quase 37 anos com o ator Marcelo Drummond em um grande evento midi�tico para provocar o conservadorismo no Teatro Oficina.

Centenas de convidados, entre artistas, pol�ticos e intelectuais, celebraram o casamento de Z� Celso e Drummond, que teve performances das atrizes Bete Coelho e Leona Cavalli e n�meros musicais com as cantoras Daniela Mercury e Marina Lima, al�m da participa��o da bateria da escola de samba Vai-Vai.