Manifestante tenta invadir o Congresso Nacional

As caracter�sticas do bolsonarismo e o ataque de extremistas �s sedes dos Tr�s Poderes, em Bras�lia, no dia 8 de janeiro, s�o temas abordados pelo autor no livro, que � o primeiro volume de uma trilogia

S�rgio Lima/AFP
Jo�o Cezar de Castro Rocha, professor titular de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lan�a nesta quinta (27/7), em Belo Horizonte, o livro “Bolsonarismo – Da guerra cultural ao terrorismo dom�stico”, primeiro volume de uma trilogia que se completa com “Ret�rica do �dio: A pedagogia da desumaniza��o do outro” e “Disson�ncia cognitiva coletiva: Midiosfera extremista e metaverso”, previstos para 2024 e 2025, respectivamente.

O lan�amento ocorrer� ap�s a palestra “Kasparov e a m�quina”, que Castro Rocha oferece no ciclo “Muta��es-Corpo-Esp�rito-Mundo: Passagens”. Nesse primeiro volume, o autor destrincha o mecanismo interno do bolsonarismo, a sua mentalidade e a sua transforma��o, temas que aborda na entrevista a seguir.

Qual � o conte�do da guerra cultural a que se refere o seu novo livro, “Bolsonarismo – Da guerra cultural ao terrorismo dom�stico?”
A extrema direita veio para ficar no Brasil. E essa radicaliza��o se sustenta na guerra cultural que, numa defini��o bem sint�tica, � uma m�quina de produzir narrativa polarizadora, com base em fake news e teorias conspirat�rias. A narrativa deve ser polarizadora porque, al�m de produzir engajamento e monetizar as m�dias digitais, desta forma ela prop�e um mundo bin�rio e permite a cria��o, em s�rie, de inimigos imagin�rios. E uma vez que o inimigo imagin�rio � criado, � poss�vel estimular a f�brica de �dio. Que tem uma linguagem, que � a ret�rica do �dio. Essa estrat�gia da extrema direita versa no mundo inteiro. O �dio, e a sua ret�rica, � uma resposta ao sentimento humano mais difundido, que � o medo. 

Qual � o papel da pauta de costumes na produ��o da desinforma��o e dessa ret�rica do �dio?
A extrema direita usa essa pauta com grande habilidade: trabalha com a ideia da falta de costumes. E o que seria a falta de costumes? A ideia de que h� uma campanha para destruir a fam�lia: a sua fam�lia. A ideia de que h� uma campanha para sexualizar as crian�as: os seus filhos. De que h� uma campanha para tornar os homens transexuais: os seus filhos. De que h� na escola, onde o seu filho passa, at� os 18 anos, a maior parte da vida dele, um processo de doutrina��o e de lavagem cerebral por professores comunistas. A extrema direita usa, assim, a falta de costumes como um conte�do que, pelo seu car�ter imediato e o mais pr�ximo poss�vel das pessoas, produz o medo: “Ser� que vai acontecer comigo? Ser� que vai acontecer com a minha fam�lia?” Esse medo se transforma em �dio. Mas o �dio nunca � um sentimento abstrato. Voc� n�o odeia em abstrato, voc� odeia inimigos espec�ficos. Ent�o, a falta dos costumes gera inimigos imagin�rios. 
 
João Cezar de Castro Rocha

Jo�o Cezar de Castro Rocha avisa: 'A extrema direita veio para ficar no Brasil. E essa radicaliza��o se sustenta na guerra cultural'

Facebook/reprodu��o

'O terrorismo dom�stico j� est� em germe. E fa�o a rela��o no livro: de 30 de outubro a 8 de janeiro, percebe-se a escalada descontrolada da viol�ncia. � muito chocante. N�s poder�amos ter tido no Brasil, no dia 24 de dezembro, um dos maiores atentados terroristas da hist�ria, se aquele caminh�o de combust�vel explodisse no Aeroporto de Bras�lia. Guerra cultural, destruir a imprensa, viol�ncia f�sica, elimina��o do outro, terrorismo dom�stico'

Jo�o Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj


Em seu novo livro, o senhor  afirma que ao produzir um ecossistema de desinforma��o, a extrema direita leva pessoas a uma esp�cie de del�rio. Poderia esclarecer o conceito de disson�ncia cognitiva, muito empregado em sua produ��o cient�fica?
Nenhum ser humano possui uma rela��o perfeita entre as coisas nas quais acredita e a maneira como se comporta. A disson�ncia cognitiva � a diferen�a entre a cren�a e o comportamento. Quantas vezes n�s sabemos que o comportamento A ou B n�o � o ideal para a nossa sa�de? O que caracteriza o humano � precisamente essa diferen�a, essa defasagem entre cren�a e comportamento. A extrema direita une as duas caracter�sticas que s�o essenciais � condi��o humana: um, a narrativa; e dois, a disson�ncia cognitiva. Sobre a narrativa, n�o existe grupo humano contatado, at� hoje, que n�o tenha a narrativa como um dos eixos da sua articula��o social. Narrar o mundo, narrar aos outros � o que nos tornou humanos. A extrema direita usa a narrativa para gerar um fen�meno in�dito na hist�ria da humanidade, propiciado pelas redes sociais: a produ��o de disson�ncia cognitiva, n�o mais no plano individual, tratado pelo psic�logo social norte-americano Leon Festinger. A extrema direita produz, de maneira deliberada, um ecossistema de desinforma��o cuja finalidade � gerar um del�rio coletivo, uma disson�ncia cognitiva coletiva, que pode levar milh�es de pessoas a verem um homem, que j� est� no terceiro casamento, sempre seguindo o mesmo modelo: a esposa envelhece, ele a troca por uma 20 anos mais jovem. Agora, quando a disson�ncia cognitiva � muito acentuada, ela produz um desconforto psicol�gico. Ent�o, diz Leon Festinger, � pr�prio da condi��o humana diminuir esse desconforto. O que voc� faz quando voc� tem um desconforto psicol�gico? Assim como quando temos fome, comemos, quando a disson�ncia cognitiva nos perturba, paramos de consumir informa��es contr�rias ao que acreditamos, recusamos as fontes de informa��o ou informa��es que contrariam a nossa cren�a. O que aconteceu com o bolsonarismo foi a cristaliza��o, a consolida��o de um Brasil paralelo. As pessoas que voluntariamente se submetem � midiosfera extremista somente se informam na midiosfera extremista. N�o h� possibilidade objetiva de se demonstrar que h� erro nessas informa��es, porque todas as outras fontes de informa��o foram desqualificadas e vedadas.
 

'Uma vez que a guerra cultural se transformou em forma de vida, tem o ethos religioso. Ent�o, a derrota eleitoral n�o � mais aceit�vel, est� fora de quest�o: � inconceb�vel que o mito, o ungido, tenha perdido a elei��o. Agora, se a derrota n�o � poss�vel, se agora o ethos � religioso, n�o existe mais advers�rio pol�tico: o que existe � o herege ou o �mpio'

Jo�o Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj



Como a religi�o � usada para produzir a disson�ncia cognitiva?
Essa � uma quest�o fundamental. A extrema direita transnacional – que � toda neopentecostal ou crist� ou cat�lica conservador�ssima – realizou um movimento teol�gico que ajuda a entender o apoio a Bolsonaro e o apoio a Donald Trump. O movimento teol�gico foi a transfer�ncia do Novo Testamento para privilegiar o Velho Testamento. E no privil�gio do Velho Testamento, duas figuras s�o enaltecidas: Davi e Salom�o. Porque foram reis, senhores de ex�rcito, conquistadores. Davi n�o � o Davi que enfrenta o Golias e o derrota, simbolizando a ast�cia contra a for�a bruta. O Davi que interessa � extrema direita transnacional � o Davi rei, o senhor de ex�rcitos, rei de Israel. � um Davi que n�o somente cobi�ou a mulher do outro, a violentou, a engravidou e mandou o marido Urias para a guerra, para morrer, de modo que Betsab� pudesse ser sua concubina. Esse � o Davi. Percebeu ent�o o que estou dizendo? O primeiro movimento teol�gico: abandonar o Novo Testamento ou deixar a figura de Cristo de lado. Porque a figura de Cristo n�o autoriza o projeto de poder. � o oposto. Por isso a extrema direita atraca-se ao Velho Testamento. Em termos t�cnicos, a guerra cultural da extrema direita transnacional � sat�nica. Ren� Girard, pensador franc�s muito importante para compreender o momento contempor�neo, chamou a aten��o para o fato de que a palavra sat� tem etimologia que vem do persa. Sat� � o acusador. Por isso tamb�m Jesus, nos evangelhos, � dito paracleto, o advogado de defesa, na famosa cena de lapida��o da mulher ad�ltera. Jesus se apresenta e defende a mulher. Diz: “Aquele que n�o tiver pecado que jogue a primeira pedra”. O neopentecostalismo n�o quer jogar a primeira pedra, quer jogar a �ltima, que � aquela que mata. Porque o princ�pio todo � o Velho Testamento. E � o rei Davi. 

Em que momento a guerra cultural se transforma de narrativa em comportamento, um estilo de vida, um ethos?
Imagina um bolsonarista que passou dois anos, tr�s anos da sua vida disputando narrativas, como naquele famoso v�deo em que as pessoas diziam: “Sou rob� do Bolsonaro... Sou rob� do Bolsonaro...”. Mas na pandemia h� um impasse. Porque n�o � poss�vel transformar a morte num meme. At� porque, progressivamente, no Brasil e nos Estados Unidos, as mortes deixaram de ser uma estat�stica, que podia ser disputada narrativamente: passaram a ter rosto, pois era a morte do seu irm�o atleta, do seu pai, da sua m�e. Agora, com tanta morte ou rosto pr�ximo, as falas do Bolsonaro produzem asco. A minha hip�tese � que, nestse momento de crise do pr�prio bolsonarismo, a solu��o que desponta � que a guerra cultural progressivamente se transforma numa forma de vida, num estilo de vida. Ent�o, agora voc� toma kit cloroquina como caf� da manh� e doses cavalares de Ivermectina; voc� come�a a aglomerar ou usar, de maneira deliberada, m�scara no queixo. Nesse momento, o bolsonarismo passa por uma metamorfose. Agora, do que se trata, de fato, � de um ethos religioso. E recorde-se que foi a partir da pandemia que a radicaliza��o das igrejas evang�licas teve lugar.
 
A sua an�lise aponta para a evolu��o da guerra cultural para um estilo de vida. Em que momento ela alcan�a tamb�m o terrorismo dom�stico?
Hoje, no Brasil, n�o se trata mais de guerra cultural, como n�s pens�vamos antigamente. � bem importante que isso fique claro. Porque, uma vez que a guerra cultural se transformou em forma de vida, tem o ethos religioso. Ent�o, a derrota eleitoral n�o � mais aceit�vel, est� fora de quest�o: � inconceb�vel que o mito, o ungido, tenha perdido a elei��o. Agora, se a derrota n�o � poss�vel, se agora o ethos � religioso, n�o existe mais advers�rio pol�tico: o que existe � o herege ou o �mpio, que n�o reconhece o car�ter ungido do seu favorecido. O terrorismo dom�stico j� est� em germe. E fa�o a rela��o no livro: de 30 de outubro a 8 de janeiro,  percebe-se a escalada descontrolada da viol�ncia. � muito chocante. N�s poder�amos ter tido no Brasil, no dia 24 de dezembro, um dos maiores atentados terroristas da hist�ria, se aquele caminh�o de combust�vel explodisse no Aeroporto de Bras�lia. Guerra cultural, destruir a imprensa, viol�ncia f�sica, elimina��o do outro, terrorismo dom�stico. Um n�mero n�o pequeno de v�deos come�ou a circular na internet com diversos epis�dios de viol�ncia, inclusive nos bloqueios das estradas. O 8 de janeiro n�o surgiu do nada: � o resultado dessa transforma��o interna da guerra cultural para esp�rito religioso, do esp�rito religioso para terrorismo dom�stico. Esse g�nio saiu da garrafa e n�o vai voltar, n�o. Ent�o, quando o ethos religioso passa a dominar, o Bolsonaro se torna um Davi.
 

'A extrema direita transnacional - que � toda neopentecostal ou crist� ou cat�lica conservador�ssima - realizou um movimento teol�gico que ajuda a entender o apoio a Bolsonaro e o apoio a Donald Trump. O movimento teol�gico foi a transfer�ncia do Novo Testamento para privilegiar o Velho Testamento'

Jo�o Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj



Al�m da religi�o, como a classe social importa nesse processo de identifica��o com a ret�rica bolsonarista?
N�o se entende o bolsonarismo no Brasil se n�o se entender que, em certa medida, o bolsonarismo � o que h� de mais brasileiro, isto �, permitiu o retorno do recalcado, de boa parte da forma��o social brasileira, uma tentativa de retornar ao movimento brasileiro pr�vio � Constitui��o de 88; uma tentativa de afirma��o do direito do mais forte, da incapacidade de respeitar leis, da imposi��o do jeitinho... Nesse sentido, o bolsonarismo � muito mais profundo do que Bolsonaro. Bolsonaro foi apenas um porta-voz de uma forma��o social que � muito anterior a ele. Por isso tamb�m a extrema direita veio para ficar. E a extrema direita ficar� tanto mais quanto mais seja o decl�nio da figura f�sica de Bolsonaro. Porque sair� o Bolsonaro, mas o bolsonarismo fica, e ent�o, essa quest�o da classe social �, de fato, da forma��o social brasileira: profundamente desigual, profundamente hier�rquica, profundamente inamov�vel na sua elite. A sociedade muda, mas a elite no poder � a mesma. Nesse sentido, o bolsonarismo � profundamente brasileiro; refere-se � pr�pria forma��o social brasileira. 

Capa do livro Bolsonarismo, da guerra cultural ao terrorismo doméstico

Capa do livro Bolsonarismo, da guerra cultural ao terrorismo dom�stico

Aut�ntica/reprodu��o
“BOLSONARISMO: DA GUERRA 
CULTURAL AO TERRORISMO DOM�STICO –  RET�RICA DO �DIO E DISSON�NCIA COGNITIVA COLETIVA”
• Jo�o Cezar de Castro Rocha
• Editora Aut�ntica (192 p�gs.)
• R$ 54,90 (livro); R$ 38,90 (e-book)
• Lan�amento nesta quinta-feira (27/7), no Teatro Jos� Aparecido de Oliveira, na Biblioteca P�blica Estadual (Pra�a da Liberdade, 21), ap�s palestra do autor no Ciclo Muta��es, �s 19h30. Os ingressos devem ser retirados pelo site Sympla.