O escritor Eucanaã Ferraz

Eucana� Ferraz conta que, no processo de escrita, chegou a transformar todos os poemas em prosa; parte deles retomou a forma de poesia, e alguns assumiram a forma de prosa po�tica

Ailton Silva/Divulga��o


Com tr�s de seus livros de poesia mais recentes – “Sentimental” (2012), “Escuta” (2015) e “Retratos com erro” (2019) –, o escritor e professor Eucana� Ferraz comp�s uma esp�cie de trilogia involunt�ria.

S�o tr�s obras “violentas”, tanto no que diz respeito aos temas quanto no aspecto formal, segundo o autor. Seu novo rebento na seara po�tica, “Raio”, que vem � luz nesta segunda-feira (4/9), nasce do desejo de se afastar daquele universo e buscar outros caminhos.

“Havia ali uma viol�ncia nos temas que repercutia em uma viol�ncia formal. Eram poemas muito desestruturados em seus versos, com muitas rupturas, uma escrita muito fragment�ria, de leitura dif�cil, sofrida, com ritmos desarticulados, bruscos. Depois de tr�s livros com essa caracter�stica escritos ao longo de sete anos, eu n�o suportava mais aquilo”, diz.

“Raio” foi, conforme aponta, se fazendo aos poucos, ao longo dos �ltimos quatro anos, sem nenhum tipo de baliza ou tema que os poemas orbitassem. Ferraz observa, no entanto, que essa produ��o nasceu do desejo consciente de sair de uma situa��o que tinha sido criada por aquelas tr�s obras anteriores. Ele diz que, ao t�rmino de “Retratos com erro”, se sentia sufocado.

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“A sensa��o de que eu n�o queria mais aquilo era clara para mim, ent�o fui em busca de uma poesia que trouxesse pacifica��o, que me desse um certo descanso. Eu queria repousar. Os poemas foram se fazendo com esse desejo”, destaca. Ele pontua que obedece � vontade dos poemas tanto quanto eles obedecem � sua, por isso usa a express�o “foram se fazendo”.

Poemas sombrios

O poeta acabou surpreendido pela pr�pria obra. Ferraz conta que, depois do livro pronto, foi ler para um amigo, a quem tinha dito que seus poemas haviam retornado a um estado de delicadeza e suavidade. “Quando estava lendo, me dei conta de que os poemas eram sombrios, tr�gicos. Fiquei muito surpreso. Meu pr�prio livro me tomou de assalto”, observa.

Ele, ent�o, entendeu o que tinha acontecido: a sintaxe de sua poesia havia, de fato, reconquistado uma esp�cie de limpeza, de retid�o e de clareza que vigoravam em suas primeiras obras, como “Martelo” (1997) e “Desassombro” (2002), mas os motivos continuavam amargos, duros. “H� formas muito variadas no livro e elas est�o, no geral, mais retas, limpas, amenas, mas os conte�dos seguem dram�ticos”, explica.

Quando fala em formas muito variadas, Ferraz alude, por exemplo, aos poemas em prosa – algo in�dito em sua produ��o pregressa. Ele diz que, assim como queria se afastar da viol�ncia da trilogia involunt�ria, estava tamb�m cansado dos versos.

“Percebi que os poemas queriam seguir por outro caminho, estavam me sugerindo outra forma, outra respira��o, outro corpo. A certa altura, antes de o livro ficar pronto, peguei os versos e transformei tudo em prosa”, pontua.

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N�o deu certo. Ele diz ter percebido que n�o funcionaria daquela forma. “Alguns queriam ser prosa e outros n�o. Fui voltando, refazendo em verso os poemas que precisavam ser em verso e deixando em prosa aqueles que tinham ficado bem em prosa. De qualquer forma, � uma mudan�a formal grande. Nenhum dos meus livros anteriores tem poemas em prosa”, afirma.

Livro que flui

Ele ressalta que abra�ar essa mudan�a formal foi mais uma surpresa do que propriamente uma decis�o. � algo que demanda uma compreens�o, um entendimento do livro, do que ele quer ser e de como os poemas podem contribuir para isso, segundo o autor.

Ele observa, ainda, que “Raio” n�o tem nenhuma divis�o, como algumas de suas obras anteriores t�m, com interse��es. Em sua defini��o, “este � um livro que corre, que flui”.

Os 58 poemas reunidos em “Raio” n�o orbitam um tema espec�fico, tampouco convergem em alguma ideia ou sentimento, segundo o autor. H�, no entanto, motes recorrentes, que est�o espalhados por toda a sua obra. Ele cita, por exemplo, os animais, as cores e a presen�a da m�e.

“De qualquer forma, n�o � um livro em torno de uma quest�o, como outros que j� escrevi foram, com um esqueleto, um motor mais evidente para mim”, comenta.

Dos motes que se espraiam por sua bibliografia e que retornam em “Raio”, ele destaca o m�s de maio (em que faz anivers�rio), o le�o esculpido em pedra e o afogado, que se relaciona com uma lembran�a de inf�ncia.

“Eu ia muito � praia com minha m�e, e em muitas ocasi�es eu vi afogados. Foi uma coisa que me traumatizou. Acho que a primeira pessoa morta que vi na vida foi um afogado. Aquilo, aquela cena, que se repetiu outras vezes, sempre me pareceu muito terr�vel. � um tema que volta”, diz.

P�riplo do t�tulo

O t�tulo com que o livro foi batizado � um caso � parte, quase uma novela, de acordo com Ferraz. Ele explica que quando tem em m�os um n�mero de poemas que “t�m uma dignidade”, eles pr�prios apontam um nome, o que, conforme diz, orienta sua sensibilidade e d� um norte para os outros escritos que v�o compor a obra. No caso de “Raio”, isso n�o aconteceu. “Foi um inferno”, diz.

“O t�tulo nunca vinha. O livro foi crescendo, os poemas se fazendo de maneira muito livre, independentes uns dos outros, e eu n�o tinha um t�tulo. Era como se eu n�o tivesse um livro. Fui ficando realmente desesperado, escolhendo t�tulos que logo abandonava. Fiquei mais de um ano escolhendo tr�s ou quatro t�tulos por dia”, conta. O primeiro que lhe apareceu foi justamente “Raio”.

Ferraz diz que compartilhou essa ideia com um de seus editores em Portugal, e que ele recha�ou. Resignado, o autor abriu m�o do nome. “Achava bonita essa ideia de uma luz repentina, porque os poemas t�m luminosidade e porque sou um poeta da claridade, sou um poeta solar, n�o sou da escurid�o, embora a traga comigo, caminhe por ela, queira eu ou n�o, porque n�o depende de mim; se dependesse, seria luz o tempo todo, mas a vida n�o nos autoriza uma realiza��o plena dos nossos desejos”, diz.

Ilumina��o r�pida

Ele faz, ainda, uma outra analogia entre o raio e o poema. O autor observa que o fen�meno da natureza � uma luz r�pida na escurid�o, o que o aproxima do poema, tamb�m entendido como uma ilumina��o r�pida.

“Por mais que eu leve anos na absor��o de um poema, esse � um tempo que se leva para chegar a uma ilumina��o r�pida. Por mais que demande uma leitura lenta, trabalhada, trabalhosa, ruminada, silenciosa hoje e em voz alta amanh�, o poema �, diferentemente da prosa, sempre uma coisa r�pida”, ressalta.

A partir do momento em que seu editor descartou o t�tulo que havia sugerido, ele come�ou a buscar por outros, contando com a ajuda de amigos que, conforme diz, acompanharam de perto seu sofrimento.

Um deles foi o tamb�m poeta Fabr�cio Corsaletti, com quem costuma conversar muito, trocando ideias sobre pausas, divis�es, estruturas e outros aspectos relativos ao fazer po�tico.

“O coitado tentava me ajudar, mas n�o chegamos a um nome. Demorou muito at� que, um dia, eu pensei: o t�tulo � 'Raio' mesmo, n�o tem outro. Voltei a entrar em contato com o editor, dizendo que tinha finalmente descoberto o t�tulo, 'Raio', e ele exclamou que era maravilhoso. Falei, meio bravo, do tempo que eu tinha sofrido por causa daquela primeira recusa, da qual ele nem se lembrava. Eu estava meio inseguro, falei com Fabr�cio, e ele tamb�m disse que era muito bom. O t�tulo estava l� desde o in�cio, como uma hip�tese abandonada”, conta.

Muitas tempestades

Ele diz se recordar, ainda, de ter contemplado, durante o per�odo de feitura do livro, muitas tempestades, o que sempre lhe traz recorda��es po�ticas da inf�ncia. “Me lembro do meu pai nas varandas ou abrindo as portas e janelas das casas em que moramos para ver os rel�mpagos. Ele amava as tempestades. Isso me marcou muito e trago tamb�m esse gosto desde crian�a. Contei isso para Beth�nia, que � muito ligada nos raios, por causa de sua orix�, Ians�”, destaca.

A cantora, conforme aponta, acompanhou parte do processo de feitura do livro e acabou, na reta final, embarcando no projeto. Ferraz diz que, ap�s conclu�da a obra, concebeu e dirigiu tr�s v�deos que s�o, no seu entendimento, clipes de poemas do livro. Coube a Beth�nia ler o que d� t�tulo � obra. Imagens que evocam rel�mpagos ilustram a narra��o em off da cantora.

Outro poema, “O xam�”, dedicado a Davi Kopenawa, ganhou a voz de Eliseu Braga, jovem poeta ribeirinho do Porto Velho (RO). Um terceiro ficou a cargo do pr�prio Ferraz.

Os tr�s v�deos tamb�m ser�o lan�ados e estar�o dispon�veis nas plataformas a partir de hoje. “Pensei nesses tr�s v�deos como canais alternativos, que libertam os poemas das p�ginas do livro, e contei com essas colabora��es preciosas”, diz. 

Escritas complementares

Al�m de sua obra adulta (que inclui, al�m dos livros de poesia, ensaios e a organiza��o de volumes em torno de nomes como Caetano Veloso, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade), Ferraz tem uma expressiva produ��o voltada para crian�as e adolescentes. Ele diz que h� uma rela��o de complementaridade entre esses dois campos.

“Viro a chave quando vou escrever para crian�as. Quando � para adulto, n�o viro chave nenhuma. Se direciono meu trabalho para as crian�as, estou pensando num p�blico espec�fico. Quando � para adulto, n�o � para p�blico nenhum, � para todo mundo. Adoro quando viro essa chave, porque me sinto muito livre, incursiono por poemas muito experimentais. Os livros para crian�as t�m uma unidade, sei de tudo desde o in�cio, � muito claro, tem todo um projeto, ent�o s�o escritas que, de certo modo, complementam a escrita para adultos”, afirma.