Selton Mello empresta sua voz ao detetive cego de 'Fran�a e o labirinto', atormentado por um serial killer
Selton Mello sempre foi um artista da voz. Se o sotaque carioca do mineiro nascido em Passos � hoje t�o reconhec�vel para qualquer brasileiro, n�o custa lembrar que ele debutou cantando num programa de calouros.
Seus primeiros cr�ditos v�o para os personagens em novelas, mas seu trabalho de dublagem remonta aos anos 1980, com a “Turma do Charlie Brown”, passando por personagens que praticamente cocriou, como o Kuzco de “A nova onda do imperador”. Agora, ele empresta a voz para Nelson Fran�a, o detetive protagonista do podcast ficcional “Fran�a e o labirinto”, em 13 epis�dios.
N�o por acaso ele vai seguir um tr�gico fio de Ariadne que desemboca nas artimanhas de um serial killer que ele prendeu h� 20 anos. Se o tormento do personagem se refletir� pela viol�ncia das a��es e pela d�vida constante sobre o caso, para n�s, o som ser� o instrumento de tortura.
Mix de Rio e SP
“Fran�a e o labirinto”, ouviremos, � sobre um homem e seus erros. Aos poucos, sabemos que s�o muitos.
Estamos num Brasil pr�ximo ao nosso, no qual os criadores da s�rie – a turma do portal Jovem Nerd, Deive Pazos e Alexandre Ottoni na dire��o, F�bio Yabu e Leonel Caldela no roteiro – costuram elementos de S�o Paulo e Rio de Janeiro na mesma cidade um tanto m�tica e sombria.
H� penitenci�rias e delegados tipicamente cariocas, como Noronha (Jorge Lucas), que parecem ter sa�do de um “Tropa de elite”. Ao mesmo tempo, trens barulhentos agitam o centro de uma cidade tomado pela cracol�ndia, representando a brutalidade paulistana.
No meio disso, o labirinto do Minotauro grego n�o demora para aparecer como met�fora de uma trama sobre criadores e criaturas – de maneira at� mastigada demais, o que tira um pouco da gra�a e do desafio do quebra-cabe�a.
Do outro lado da caixa de som, o pr�prio labirinto auditivo do ouvinte ser� atormentado. A s�rie impressiona pela explora��o narrativa do �udio binaural, ou 3D, que constr�i todo o espa�o de cena pelo som.
Na pele de Nelson, o ouvinte ser� testemunha de tudo a seu redor: a respira��o do seu c�o-guia, Bonaparte; os carinhos reticentes de Angela (Ma�ra Goes), policial de quem Nelson se separou h� pouco; Omar Hassot (no brilhante vozeir�o de Luiz Carlos Persy), jornalista que enriqueceu com o true crime; al�m do terr�vel assassino Edgar Rosa, que vai atormentar o detetive de todas as formas.
� um painel que, no fundo de tanta polui��o sonora, ecoa os versos de Walter Franco. “O v�o dos olhos, a vis�o”, dizia ele em “Animal sentimental”, como a propor acesso a uma nova consci�ncia por meio da m�sica. Franco tamb�m comp�s “Cabe�a”, m�sica que incomodava seus ouvintes em um protoaudio 3D repetindo “essa cabe�a saiba que ela pode explodir” – isso no in�cio dos anos 1970.
Afinal, o m�rito n�o est� na simples incorpora��o de uma nova tecnologia, mas no uso disso como dispositivo sensorial – algo que o cinema, por exemplo, nunca soube fazer com o 3D, � exce��o de Godard.
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Espanto e viol�ncia
Os melhores epis�dios, que variam entre 15 e 40 minutos cada, s�o de fato aqueles em que os espantos do personagem coincidem com os do ouvinte, j� que somos testemunhas de todos os passos da hist�ria e n�o h� nenhuma trilha sonora para nos manipular.
Sendo um noir, esses inc�modos ocorrer�o pela chave da viol�ncia: no in�cio da trama, Nelson ser� asfixiado numa pris�o por mais de tr�s minutos; depois, se mete na cracol�ndia para tentar plantar escuta num orelh�o e acaba sendo humilhado pelos traficantes.
H� outros exemplos, que devem ser guardados para evitar spoilers, momentos de virtuosismo em que, como Fran�a, teremos d�vidas sobre a realidade, a pr�pria natureza dos crimes e a inclina��o moral das personagens.
O ouvinte, na pele de um deficiente visual, � entupido de sons altos, gritaria e degrada��es de toda sorte.
Quando n�o � s� uma prova de como o som pode torturar, “Fran�a e o labirinto” contempla a sordidez humana, equilibrando seu roteiro em mensagens d�bias, entre a viol�ncia noir (conservadora) e pitadas um tanto for�adas de agenda progressista – Nelson � humanista, mesmo que um p�ssimo passageiro de Uber.
H� pontos fracos como hist�ria detetivesca, mas, em contrapartida, acerta ao investir em tempos mortos, que n�o raro mostram as sutilezas da trama – como as visitas de Angela ao apartamento bagun�ado de Nelson, os papos r�pidos com o porteiro ou di�logos longos e sem grandes pretens�es, fundamentais para dar humanidade a todos os personagens.
“Fran�a e o labirinto” foi criado para ser devorado. E deve, � mesmo um bom podcast para matar num final de semana. Pena que a autoconfian�a no sucesso do programa encomenda, automaticamente, uma segunda temporada. Ficam pontas soltas, algumas de prop�sito, que mostram como “Fran�a e o labirinto” poder� ser um produto ainda mais complexo.
“FRAN�A E O LABIRINTO”
De F�bio Yabu e Leonel Caldela. Dire��o de Alexandre Ottoni e Deive Pazos. Com Selton Mello, Ma�ra G�es e Luiz Carlos Persy. Podcast dispon�vel no Spotify.
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