Leonardo Dicaprio , Martin Scorsese e Robert De Niro em Cannes

O cineasta Martin Scorsese e os atores Leonardo Dicaprio e Robert De Niro na chegada para a sess�o de gala de "Assassinos da Lua das Flores", no Festival de Cannes, em maio

LOIC VENANCE - 20.5.2023/ AFP

Foi com certa incredulidade que os cin�filos no ï¿½ltimo Festival de Cannes, em maio, notaram que "Assassinos da Lua das Flores", novo filme de Martin Scorsese, havia ficado de fora da mostra competitiva do mais importante evento do tipo no mundo, de onde ele saiu com a Palma de Ouro em 1976, por "Taxi Driver".

Falamos, afinal, do que � provavelmente o mais importante nome do cinema americano ainda em atividade, respons�vel por cl�ssicos modernos como "Touro Indom�vel", "Os Bons Companheiros" e "Os Infiltrados", pelo qual ganhou seu �nico Oscar.

Aguardad�ssimo, o novo longa foi exibido em car�ter especial, mas nem por isso deixou de ser um dos mais disputados e bem avaliados de todo o evento, onde muitos julgaram que "Assassinos" tinha cacife para sair premiado com alguma coisa.

Mas, aos 80 anos, Scorsese n�o v� seu of�cio apenas como o de um artes�o, de algu�m que cria, produz e lan�a filmes. Sua presen�a em Cannes se justificava, tamb�m, pelo fato de o cineasta ter ocupado, nos �ltimos anos, o lugar de um dos principais pensadores do cinema, defendendo a ida �s salas e condenando a domina��o do circuito pelos super-her�is.

"N�o relegue os filmes � tela de casa", Scorsese deixou claro em entrevista a meia d�zia de jornalistas de diferentes pa�ses, da qual este jornal participou, num quarto de hotel em Cannes. O encontro aconteceu ap�s exibir "Assassinos da Lua das Flores", que chega aos cinemas nesta quinta-feira (19/10 como a mais luxuosa investida do Apple Original Films, bra�o cinematogr�fico do gigante de tecnologia Apple, at� aqui.
 
 
 
"N�s devemos questionar o que fazer para provocar o p�blico e dizer a ele que venha e veja algo no cinema. Idealmente, haver� uma boa sala, assentos confort�veis, uma grande tela e a experi�ncia comunit�ria", diz ainda, justificando que s� aceitou fazer o filme e, antes dele, "O Irland�s", em parceria com plataformas de streaming porque um determinado tempo de exibi��o nas salas foi garantido pelas empresas.

A estreia de agora acontece em meio �s aventuras do cineasta pelas redes sociais. Nesta semana, um TikTok em que ele comenta a recep��o morna de "O Rei da Com�dia" � �poca do lan�amento viralizou, a exemplo do que tem acontecido com v�rios videozinhos que ele grava com a filha de 23 anos, Francesca. Neles, ela o desafia a decifrar termos de sua gera��o, para o del�rio da cinefilia.

"Assassinos da Lua das Flores" narra um cap�tulo sangrento e real da na��o ind�gena osage, que entre os anos 1910 e 1930 viu v�rios de seus membros, abastados ap�s a descoberta de petr�leo em suas terras, serem mortos em condi��es misteriosas e n�o devidamente investigadas. Leonardo DiCaprio e Robert De Niro retomam a parceria com Scorsese, se juntando � novata e elogiada Lily Gladstone.

O senhor � forte defensor da experi�ncia de ir ao cinema. O que o senhor acha dos cr�ticos que, em Cannes, disseram que "Assassinos da Lua das Flores" deveria ser uma miniss�rie, em vez de um filme de tr�s horas e meia?

N�o � uma miniss�rie, � um filme. A quest�o � que com a domina��o dos blockbusters nas salas de cinema e no cronograma dos est�dios, por mais bem-feitos que eles sejam, o p�blico que deseja uma experi�ncia mais madura tende a ver miniss�ries e s�ries, que � onde esse tipo de hist�ria [mais adulta] est� hoje.

E muitos assistem a v�rios epis�dios em sequ�ncia.

Sim, eles est�o fazendo maratonas, de qualquer forma. Ent�o 'Assassinos da Lua das Flores' foi uma tentativa deliberada, de certa forma, de romper esse ciclo. Se o p�blico pode ficar em casa assistindo � mesma coisa por cinco horas seguidas e? eu fa�o isso, n�o sempre, mas fa�o?, ent�o eu acho que eles devem conseguir ver um filme por tr�s horas e 26 minutos no cinema e compartilhar essa experi�ncia.

Ent�o a forma certa de assistir a um filme � no cinema, n�o em casa?

N�o relegue os filmes � tela de casa. Esses cr�ticos que voc� citou est�o analisando o cinema ou o nosso mundo moderno? N�s devemos questionar o que fazer para provocar o p�blico e dizer a ele que venha e veja algo no cinema. Idealmente, haver� uma boa sala, assentos confort�veis, uma grande tela e a experi�ncia comunit�ria.

Eu venho de uma �poca em que os filmes �s vezes passavam das quatro horas de dura��o. Claro que havia obras como 'A Volta ao Mundo em 80 Dias' [de 1956], que era um di�rio de viagem enorme e eu n�o acho que seja um bom filme, ou 'Ben-Hur' [de 1959]. H� t�tulos melhores que esses, mas v�-los naquela tela? Dito isso, h� maneiras genu�nas de tentar trazer o p�blico de volta aos cinemas para assistir a filmes com mais de duas horas de dura��o.

N�o � uma contradi��o defender a experi�ncia de ir ao cinema depois de fazer "O Irland�s" para a Netflix e "Assassinos da Lua das Flores" para o Apple TV+?

Eu acredito que essas plataformas podem apresentar um caminho para o futuro do cinema. E a Apple me garantiu uma certa quantidade de semanas nas salas de cinema, por isso os escolhemos para produzir o filme.

Falando em futuro do cinema, o senhor costuma publicar v�deos de TikTok com a sua filha, e a plataforma virou um lugar para novos talentos do audiovisual.

Apesar de eu estar aqui falando de um filme de tr�s horas e meia e de o James Cameron dizer que n�o quer ningu�m reclamando da dura��o de um filme, o cinema de cem anos atr�s, de certa forma, foi embora. Ent�o, com o TikTok ou isso e aquilo, coisas nas quais eu nem sei mexer direito, h� uma nova linguagem. E o futuro est� l�, porque o futuro � dos jovens. O que eles t�m a dizer � a chave. Mas eu pergunto: haver� espa�o para que os jovens se expressem por mais de uma, duas horas?

Al�m da longa dura��o, outra marca importante do seu cinema s�o os personagens com trauma e culpa. "Assassinos da Lua das Flores", por�m, fala mais sobre a aus�ncia de culpa, n�o acha?

Sim, � o que eu acho. Mas o Ernest [personagem de Leonardo DiCaprio] se sente culpado, de certa forma. Ele diz que n�o, ele tenta fingir que aquilo n�o est� acontecendo, � verdade. Mas o filme questiona o qu�o c�mplices podemos ser diante dos erros dos outros. E isto � o que somos como seres humanos.

Falando em trauma e culpa, quais foram os cuidados tomados ao filmar essa hist�ria, j� que fala sobre o passado violento da na��o ind�gena osage?

Olhei para esse projeto e pensei que ele deveria ser executado com o m�ximo de respeito, o m�ximo de compreens�o de quem eles s�o nao? apenas agora, mas tamb�m antes, quando o filme se passa, e antes disso. � muito dif�cil, mas o ponto-chave � respeitar as culturas e povos diferentes dos nossos. O acordo que fizemos foi de sermos o mais honestos poss�vel, sem sermos condescendentes.

O senhor, aos 80 anos, um homem americano branco, consegue pensar com esse cuidado em mente. O que diria para outros como o senhor que est�o por a� fazendo cinema e n�o veem as coisas dessa forma?

N�o h� desculpa, realmente n�o. Temos que ir at� o fim, melhorarmos como pudermos, mesmo que estejamos fazendo entretenimento. O que � meio ruim de dizer, porque entretenimento tamb�m pode ser arte as? vezes boa, �s vezes nem tanto. Os ingleses e os franceses nos ensinaram isso com a sua cr�tica nos anos 1960, quando falavam do qu�o maravilhosa era a arte que estava saindo de Hollywood na �poca. Enquanto isso, n�s, americanos, v�amos aquilo como mero entretenimento.


O que aprendeu ao narrar a hist�ria da na��o osage?

Eu estava muito nervoso por ter essa experi�ncia com os nativos americanos, porque havia muitas coisas sobre eles que eu n�o sabia. E eu n�o estava preparado para o que descobri. � um filme que fizemos com muita humanidade. Deve haver um reconhecimento [do massacre dessas popula��es].

Costumamos fazer sil�ncio, e as escolas alimentam um sistema de emascula��o, no sentido de destruir quem esses povos s�o, que foi implementado l� atr�s. Muitas vezes, isso acontecia ao cortar o cabelo dos ind�genas, numa esp�cie de mutila��o da alma algo? que eu fa�o em 'O Lobo de Wall Street' [quando uma funcion�ria do protagonista Jordan Belfort raspa a cabe�a em troca de dinheiro]. O que aconteceu foi que, de alguma forma, boas inten��es e o evangelho se misturaram a institui��es opressoras e � americaniza��o.

Falando em evangelho, Jesse Plemons, que est� em "Assassinos", disse que o senhor falava muito em religi�o no set de filmagem.

�, eu acho que sim. Eu acho que realmente fa�o isso, desculpe. Eu tenho 80 anos, tento n�o pensar muito nisso [no divino], mas se voc� � aben�oado o suficiente para criar arte, ent�o � natural que voc� a use para tentar chegar ao que h� de mais simples na vida, ao que ela significa.

Em "Assassinos" o senhor reuniu duas de suas musas, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. Fazer o filme foi mais especial por causa disso?

Eu sempre converso com o Bob [De Niro] para saber no que ele est� trabalhando, e ele faz o mesmo comigo. Em determinado momento, quer�amos voltar a fazer algo juntos, e eu estava trabalhando no roteiro de 'Assassinos'. Mas decidimos fazer 'O Irland�s' antes, porque ele ia ter que ser rejuvenescido para algumas cenas e disse: 'Se esperarmos mais dois anos, talvez eu n�o consiga mais levantar da cadeira como um jovem faria'.

Trabalhar juntos � �timo, e eu acredito que foi ele quem encontrou o Leo [DiCaprio]. Eles estavam fazendo o 'Despertar de um Homem'[de 1993], quando ele me ligou e disse: 'Estou fazendo um filme com esse garoto e ele � muito bom, voc� deveria trabalhar com ele qualquer dia'. Veja s�.

“ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES”
(EUA, 2023, 206 min.) Dire��o: Martin Scorsese. Com Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Robert De Niro. Classifica��o: 14 anos. Estreia nesta quinta (19/10) em salas dos complexos Cineart, Cinemark, Cin�polis, no Centro Cultural Unimed-BH Minas e no UNA Cine Belas Artes.