
Optar por caminhar no meio da rua, mesmo com o risco de ser atropelada por carros, procurar lugares iluminados, deixar de fazer determinado caminho ou pedir algu�m para acompanh�-la at� determinado lugar. Certamente, se voc� for homem, essas reflex�es podem n�o ter passado pela sua cabe�a enquanto circula pela cidade. Mas, se for mulher, com certeza a maior parte dessas preocupa��es, sen�o todas e muitas outras, integram sua rotina. N�o h� mulher que n�o costume fazer um exame do percurso, seguido de planejamento, todas as vezes que sai de casa.
E o que era uma percep��o das mulheres foi organizada num trabalho da ge�grafa e pesquisadora canadense Leslie Kern, que prop�e uma reflex�o sobre a rela��o entre a geografia e a viv�ncia das mulheres no livro “Cidade feminista: a luta pelo espa�o em um mundo desenhado por homens”.
Em di�logo com a obra de Leslie, o Estado de Minas ouviu relatos de leitoras, conversou com a arquiteta J�lia Passos sobre o quanto Belo Horizonte pode ser acolhedora ou hostil �s mulheres e ouviu a Guarda Municipal e a Pol�cia Civil para esta reportagem especial feita pelos n�cleos Multim�dia e DiversEM do EM.
A pesquisadora retoma o processo de urbaniza��o e a forma��o das primeiras cidades para pontuar que todas, sem exce��o, foram concebidas por homens e, portanto, n�o levam em conta quest�es espec�ficas delas. Na Europa, a refer�ncia � o per�odo medieval, mas em cidades de pa�ses colonizados esse per�odo � diferente. No caso de BH, s�o 123 anos.
O fato de as cidades serem concebidas por homens, t�o naturalizado, passa a ser questionado por feministas. A pesquisadora destaca que o fato de os modelos de cidades n�o contarem com o olhar feminino resulta em espa�os mais hostis �s mulheres. Por�m, essa hostilidade se apresenta de maneiras distintas, de acordo com a etnia e classe social.

O ponto de partida dessa reportagem especial foi conversar com Leslie para entender o significado da express�o que d� nome ao livro. “Uma cidade feminista � aquela que as muheres s�o participantes igualit�rias de todos os aspectos da constru��o de uma cidade e onde as vidas, experi�ncias, corpos e inten��es n�o s�o colocadas como empecilhos no planejamento”, detalha a escritora.
“Ela representa uma vis�o da cidade se preocupando com as necessidades daqueles que historicamente foram mais marginalizados. � tamb�m uma forma diferente de ver a cidade; a perspectiva daqueles que foram exclu�dos e colocados como ‘outsiders’.”
“Ela representa uma vis�o da cidade se preocupando com as necessidades daqueles que historicamente foram mais marginalizados. � tamb�m uma forma diferente de ver a cidade; a perspectiva daqueles que foram exclu�dos e colocados como ‘outsiders’.”
Leitoras relatam locais e situa��es hostis
A partir de uma enquete com centenas de mulheres no stories do Instagram do Estado de Minas, reunimos relatos de como BH pode ser hostil para as mulheres. Elas listaram quest�es relacionadas � ilumina��o, ass�dio em transportes p�blicos, inclusive carros de aplicativos, mas tamb�m externalizam outras viol�ncias, como questionamentos feitos por policiais ao denunciarem crimes. Outro ponto recorrente foi o controle do comportamento delas, que parte principalmente de um entendimento de como o corpo feminino deve se apresentar no espa�o p�blico.Em um dos cap�tulos de “Cidade feminista”, Leslie discute o mapa da viol�ncia. “Para mulheres de cor, que relatam n�veis mais elevados de ass�dio e viol�ncia do que mulheres brancas, homens brancos e figuras de autoridade do sexo masculino, como policiais, podem ser especialmente preocupantes”, afirma. Leslie destaca que as mulheres deslocam parte do medo para os espa�os: ruas, becos, plataformas de metr�, cal�adas escuras da cidade. O que foi recorrente no levantamento de relatos feito pelo Estado de Minas.
A arquiteta J�lia Passos traz reflex�es que dialogam com esse pensamento de Leslie. Um exemplo seriam os muros altos de resid�ncias e pr�dios, que aumentam a sensa��o de inseguran�a de mulheres que andam por essas ruas. “D� para sugerir que uma cidade pensada para a mulher seria uma cidade melhor para crian�as, idosos, pessoas com defici�ncia, ou seja, para todo mundo”, afirma.
"Os custos ocultos do medo"
A viv�ncia das mulheres nas cidades envolve c�lculos constantes de risco sobre o uso de cada espa�o p�blico. “Esses s�o os custos ocultos do medo, que impedem as mulheres de viver uma vida plena, livre e independente na cidade. As consequ�ncias sociais, psicol�gicas e econ�micas s�o substanciais. Elas colocam um peso enorme sobre os dias j� sobrecarregados das mulheres: temos a ‘dupla jornada’ de trabalho remunerado e o n�o remunerado”, comenta Leslie.
Para tentar reverter essa hostilidade urbana, movimentos t�m questionado a forma como as cidades est�o organizadas. Entre eles est�o o “Take back the night” (Devolva a noite), o “Paradas de orgulho”, na �ndia, a “Marchas das vadias” e a campanha #Cu�ntelo.

E n�o � necess�rio derrubar tudo e come�ar do zero. “A cidade feminista n�o precisa de um projeto para torn�-la real. N�o quero que uma super planejadora feminista destrua tudo e comece de novo. Mas, assim que come�armos a ver como a cidade � configurada para sustentar uma forma espec�fica de organizar a sociedade – por g�nero, ra�a, sexualidade e muito mais –, podemos come�ar a procurar novas possibilidades”, escreve Leslie na obra.
Planejamento pode evitar a segrega��o
A pedido da reportagem, a arquiteta J�lia Passos prop�s formas de as cidades serem mais amig�veis para as mulheres. A ideia central � avaliar como o planejamento urbano pode evitar a segrega��o e garantir o direito � cidade. E n�o s� o acesso � cidade, mas o direito de mudar as regras.
A arquiteta defende a urg�ncia de desenvolver projetos relacionados � ilumina��o p�blica, banheiros p�blicos de qualidade para mulheres e homens, fachadas perme�veis nos lugares de muros imensos, ruas mais amplas e iluminadas, fachadas ativas que garantam ‘olhos da rua’. “� um conceito que se refere � sensa��o de seguran�a causada pelo movimento, pela presen�a das pessoas e n�o pelo policiamento”, explica J�lia.

Ao fazer refer�ncia ao livro “Cidade feminista”, Julia destaca o trecho da obra que diz que as “suavizam as arestas dessa experi�ncia por meio do design urbano n�o desafia o patriarcado em si. � preciso reconhecer as regras ideol�gicas que orientam as cidades para pensar os novos caminhos”.
“A cidade � constru�da de forma a marginalizar as minorias sociais. Antes de qualquer coisa, � preciso assumir um compromisso pol�tico que garanta que n�o s� as mulheres, como a popula��o negra, LGBT participe da constru��o das cidades a partir das pr�prias demandas. Seria preciso construir uma nova agenda urbana que considerasse essas dimens�es raciais, de g�nero e sexualidade”, destaca a arquiteta, em refer�ncia a trecho do livro.
Para J�lia, � essencial “olhar para a diversidade e ouvir a multiplicidade de vozes”. “A cidade ainda � regida e governada pelos homens e isso traz implica��es diretas para a vida das mulheres. � urgente a cria��o de espa�os institucionais para as mulheres constru�rem cidade mais democr�tica”.
Nota da Pol�cia Civil
Em nota, a Pol�cia Civil de Minas Gerais informou que "prioriza um acolhimento qualificado e humanizado �s mulheres v�timas de viol�ncia que buscam, espontaneamente ou mesmo quando trazidas por outros �rg�os de seguran�a em situa��es de flagrante, as delegacias de Pol�cia Civil." Segundo o texto, em BH "h� profissionais capacitados, com forma��o em psicologia, que realizam o primeiro atendimento �s v�timas na Delegacia Especializada em Atendimento � Mulher. Al�m disso, BH ainda conta com uma delegacia exclusiva para investiga��es de crimes sexuais."
"No servi�o de acolhimento s�o apresentados �s mulheres todos seus direitos e outros servi�os da rede de apoio dispon�veis. Atualmente, Minas conta com 70 delegacias especializadas no atendimento � mulher, sendo quatro em Belo Horizonte e outras 66 no interior do estado, com profissionais que constantemente passam por cursos de capacita��o e aperfei�oamento no atendimento � mulher", diz a nota.
Entenda o que s�o fachadas ativas
As fachadas ativas s�o aquelas que integram o espa�o privado e a rua. Um bom exemplo disso s�o os edif�cios residenciais com com�rcios ou espa�os culturais no t�rreo. A fachada ativa, al�m da permeabilidade f�sica, ou seja, permitir a circula��o das pessoas, oferece uma permeabilidade visual, ou seja, promove alguma integra��o com a rua, mesmo que o pedestre n�o entre no local.
A proposta das fachadas ativas se contrap�e ao que vemos frequentemente na cidade: muros altos e fechados, que empobrecem a experi�ncia do pedestre e trazem uma sensa��o de inseguran�a pela falta de "olhos da rua".
Saiba o que � o conceito de Olhos da Rua
“Olhos da rua” � um conceito da urbanista e ativista social norte-americana Jane Jacobs, autora de “Morte e vida das grandes cidades”, que se refere � presen�a de pessoas utilizando o espa�o p�blico ou apenas olhando para as ruas de suas janelas. Isso traz uma sensa��o de vigil�ncia e seguran�a, que nada tem a ver com o policiamento. Para tal, o contato das edifica��es com o espa�o p�blico � essencial.
*Estagi�rias sob supervis�o do subeditor Rafael Alves
*Estagi�rias sob supervis�o do subeditor Rafael Alves