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Estado de Minas BLACK POWER

Cabelos crespos s�o coroas: negros afirmam identidades com fios naturais

Jovens negros contam como foi o processo de transi��o e de que maneira enfrentam a padroniza��o que imp�e um �nico tipo de cabelo


19/11/2021 10:00 - atualizado 19/11/2021 10:25

Kenyo Hoffman, um homem negro com cabelo black power, posa contra um fundo cor creme
Kenyo Hoffman � cabelereiro e professor de cuidados com os cabelos, especializado em cabelos crespos e cacheados (foto: Arquivo pessoal)

Desde muito novas, pessoas negras, principalmente as meninas, lidam com o preconceito em rela��o aos cabelos. Desde a �poca da escravid�o no Brasil, h� uma tentativa de padronizar os fios por meio de m�todos para a conter o volume dos cabelos.
 
Na dire��o oposta � padroniza��o, a escolha de pessoas negras pela textura natural do cabelo, mais do que adotar uma est�tica, � a afirma��o de pertencimento. Homens e mulheres negras aderem ao processo de transi��o, que consiste em deixar de usar os cabelos alisados e assumir os fios como s�o, naturais. Tamb�m h� uma valoriza��o das tran�as.

J� houve um tempo, no Brasil, em que os negros raspavam o cabelo para controlar o volume. Tamb�m era comum o uso de ferro de passar para domar os fios. No s�culo XIX, as mulheres negras passaram a usar o pente quente para alisar os cabelos.  Mesmo na atualidade existem diversos utens�lios e produtos para o alisamento.
 
O cabelereiro e professor Kenyo Hoffman conta que a maioria das pessoas negras j� passou por uma experi�ncia traum�tica com os cabelos, seja por preconceito da sociedade, seja por enfrentar situa��es ruins em sal�es. Muitos profissionais n�o s�o especialistas em cabelos crespos e, usualmente, costumavam indicar o alisamento. 

Na literatura sobre cabelos, o crespo � classificado como “conturbado”, enquanto os lisos e ondulados s�o “sexy” e os cacheados s�o “equilibrados” ou “rom�nticos”, remetendo a uma est�tica angelical. 
 
“A gente precisa ressignificar essa forma, esse conceito do que � o cabelo crespo, do que essa imagem passa” declara Kenyo. Ele conta que a partir do momento que iniciou uma reflex�o sobre a negritude passou a encarar o cabelo crespo como uma coroa. "Isso para que minhas clientes entendam que, se elas t�m uma coroa bel�ssima dessas, tem que ser vista sim”, completa.
 
Al�m disso, existe uma dificuldade de se obter uma boneca de treino com cabelos naturais para profissionais que tentam se especializar em cabelos crespos. “Ele s� vai entender no dia a dia, n�o se tem uma boneca de treino com facilidade, para voc� treinar, experimentar, para entender o fator encolhimento e as dificuldades reais que v�o ter em um cabelo crespo”, conta Kenyo. 

RACISMO ESTRUTURAL


Existe uma press�o social para que os cabelos crespos sejam alisados, tanto na escola quanto no mercado de trabalho. Esse � um problema que vem atravessando gera��es, e mesmo hoje, que o movimento de aceita��o dos cabelos naturais ganha for�a, mulheres negras ainda recebem coment�rios pejorativos a respeito dos cabelos.

“O cabelo alisado, descaracterizando a quest�o da ra�a, era uma forma de inser��o na sociedade. Por exemplo, eu muitas vezes fui preterida em processo de sele��o por ser negra, mesmo tendo compet�ncia e capacidade no que eu estava fazendo”, relata a contadora Regina Lopes de Assis Bernardo.

A trancista de Belo Horizonte Milena Moreira, de 21 anos diz que v� poucas mudan�as na sociedade de hoje e lembra que j� deixou de ir a escola por n�o conseguir fazer um rabo de cavalo pelo fato de o cabelo ser muito cheio. “Esses dias, vi a not�cia de uma menina aqui de BH que foi parada na rua e falaram que o cabelo dela assustava, ent�o como algu�m tem coragem de falar que melhorou?”.

Milena Moreira, jovem negra com cabelo black power e usando camiseta branca
Milena Moreira � trancista em BH e diz que ajuda pessoas a se reencontrarem, se reconhecerem (foto: Arquivo pessoal)


Nayara Luminata, trancista de 27 anos, conta que quando trabalhava em um shopping de Belo Horizonte chegou a ouvir coment�rios pejorativos. “Voc� � t�o bonita, mas seu cabelo � assim n�?” ou “tem que dar um jeito nesse seu cabelo”.

A artista baiana �ldima Lima, 40 anos, que assina a exposi��o virtual Negras Cabe�as relata que ficava ansiosa para fazer 13 anos, para que a m�e deixasse que alisasse os cabelos. “Um dos primeiros ritos de passagem para as meninas negras, at� mais ou menos os anos 2000, era o momento de alisar o cabelo, era a hora que voc� sentia que ia fazer parte das coisas, e isso � muito triste”.

Muitas vezes, o cabelo negro � colocado no lugar de “duro”, “ruim” e associado � falta de higiene. “Para n�s, n�o ter o cabelo alisado era um aspecto de ser descuidada, desleixada, bagun�ada, suja”, afirma �ldima.

Kenyo lembra das experi�ncias vividas pela m�e. “N�o se podia ir para a escola de cabelo alto. Como assim, em uma escola em um bairro perif�rico, n�o se pode ir para a escola de cabelo ato?”, questiona o cabelereiro, e conta que a m�e usava pente quente para alisar os cabelos.

“Da� j� vem tamb�m as experi�ncias traum�ticas, porque em uma dessas queimou orelha e a testa. Dependendo de onde pegava no couro cabeludo, e dependendo do grau da queimadura, n�o nasce mais cabelo”, relata Kenyo.

Maria da Conceição, mulher negra, Posando com cabelo estilo black power contra fundo cinza escuro
Maria da Concei��o, m�e de Kenyo, se submeteu a alisamento com pente quente quando jovem (foto: Arquivo pessoal)


Kenyo tamb�m passou por situa��es constrangedoras na escola, recebendo “zoa��es” dos colegas, que hoje seria considerado bullying. Ao reagir, acabou brigando com um colega e foi suspenso. A m�e, ao questionar o diretor da escola se o mesmo estava a par do que aconteceu, contou o lado de Kenyo na hist�ria. A resposta do diretor � Kenyo foi “se voc� cortar o seu cabelo, ningu�m vai te zuar”.

A partir de ent�o passou muitos anos alisando o cabelo quando crescia, e apenas h� seis anos, voltou a usar o cabelo natural, e hoje ostenta um black power com orgulho. 

AUTORECONHECIMENTO

Apesar de enfrentar muito preconceito, cada vez mais meninas e mulheres negras assumem os cabelos naturais e enfrentam a press�o da sociedade. Processos de transi��o s�o cada vez mais procurados nos sal�es, seja pelo m�todo de big chop, que � cortar o cabelo alisado deixando um corte curto, ou pelas tran�as, com o corte gradual at� o cabelo natural crescer. 

“Quando eu cortei meu cabelo, eu me olhava no espelho e me sentia t�o bonita que eu n�o precisava nem de um batom”, conta Nayara, “voc� joga o black pra cima, voc� se sente realmente uma rainha”.

"N�o s� muda o cabelo da pessoa, mas muda tamb�m a forma dela viver, porque os olhares s�o diferentes", conta Milena, "Eu t� exaltando a cultura de um povo lindo e eu t� ajudando pessoas a se reencontrarem, a se reconhecerem", completa a trancista. 
 
O processo de transi��o, para al�m da imagem exterior, simboliza uma mudan�a interior de autoafirma��o da ancestralidade. “Quando voc� entra na transi��o, n�o tem volta, no sentido de ser negro no mundo. Para voc� aceitar uma transi��o, voc� j� foi para um outro lugar”, declara �ldima, que passou pela transi��o em 2017.

Íldima Lima, mulher negra com seu cabelo longo e natural, com árvore ao fundo
�ldima Lima, artista que assina a exposi��o "Negras Cabe�as", que exalta a import�ncia dos penteados africanos (foto: Reprodu��o: Instagram)


“Quando eu vou para esse lugar do cabelo � para dizer ‘esse seu cabelo, que foi t�o massacrado, t�o  destru�do, t�o invisibilizado e embranquecido, � uma ferramenta rica, de poder, de est�tica, mas que traduz conte�dos culturais, ent�o ele faz parte de quem voc� �’”, completa �ldima.

MODA

Muitos encaram a op��o de manter os cabelos cacheados e crespos por muitas mulheres, inclusive no meio musical, jornal�stico e tamb�m em novelas e filmes, como moda. Entretanto, a moda do cabelo “frisado” aconteceu na d�cada de 80.

“Isso era aceito desde que a mulher fosse branca, ali era moda. E a moda privava as pessoas que tinham de fato aquele cabelo de serem bonitas usando aquilo que elas tinham naturalmente”, afirma Kenyo. 

Ou seja, s� se gostava da est�tica naturalmente negra se estivesse sendo usada  por algu�m de pele branca, j� as pessoas negras precisavam alisar. “Agora, o que a gente est� vendo � um processo de autorreconhecimento mesmo, de aceita��o”, completa.

Hoje em dia existe um movimento, cada vez maior, antirracista e de valoriza��o da cultura e da est�tica negra. Com isso, produtos destinados ao cuidado dos cabelos crespos e cacheados ocupam boa parte das prateleiras das lojas. A discuss�o de apropria��o cultural ganha for�a. 

“Isso � uma resposta a um movimento que come�a muito antes desses efeitos. Come�a l� com os Panteras Negras, com os Rastafaris, que foram movimentos e grupos que falaram ‘n�o! A gente vai ficar com nosso cabelo, e nosso cabelo � esse’”, afirma �ldima.
 
Kenyo destaca como a apropria��o cultural fere �s pessoas negras, porque tran�as, cabelos crespos e penteados para pessoas negras n�o s�o apenas quest�o de moda. 
 
*estagi�ria sob a supervis�o de M�rcia Maria Cruz 


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