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Estado de Minas PSICOLOGIA PRETA

Cl�nica do imposs�vel: uma abordagem da psicologia a partir do mito de Nan�

Livro prop�e que cada pessoa negra possa criar linhas de fuga e descobrir seu caminho para superar a opress�o racial


02/12/2021 11:18 - atualizado 02/12/2021 15:37

Lucas Veiga, autor do livro 'Clínica do Impossível: linhas de fuga e de cura'
Lucas Veiga prop�e uma psicologia baseada na mitologia Yorub� (foto: Francisco Costa)

 

O psic�logo Lucas Veiga prop�e um deslocamento do complexo de �dipo, que Sigmund Freud (1856-1939) estabeleceu como mito fundante da psican�lise, e prop�e o complexo de Nan� para abordar �s quest�es da subjetividade dos indiv�duos. Essa proposta � parte do livro "Cl�nica do imposs�vel: linhas de fuga e de cura", lan�ado no s�bado (27). A obra prop�e um debate sobre como o racismo afeta a sa�de mental da popula��o negra.


Segundo a mitologia Yorub�, Obatal� tenta fazer o humano de diversos materiais, como pedra, mas fica muito r�gido, e de fogo, mas ele se consome. At� que Nan� aparece e oferece a lama, presente nas profundezas da �gua, para a feitura do homem. Com sopro de Olodumare, o humano ganha vida.

Lucas parte desse mito da origem do homem do barro para pensar a cl�nica para tratamento de pessoas negras devido � potencialidade ilimitada de muta��o do barro. O barro pode tomar qualquer forma, e depois tornar a ser barro e moldado em outro formato.

Segundo o psic�logo, o colonialismo imprimiu em nossa sociedade uma determinada forma de pensar, de sentir e de viver. “Mesmo que a gente tenha vivido marcas profundas de viol�ncia racial, ou na hist�ria individual de cada pessoa, a gente � feito de uma mat�ria que � infinita na sua possibilidade de transforma��o”.  
 
Por�m, n�o � indicada a importa��o direta de conceitos de psicologia e de psican�lise para aplicar no contexto brasileiro. “Quando n�o considero a subjetividade do outro, e aplico uma escuta ou uma interven��o a partir do meu referencial te�rico branco, eu estou violentando a subjetividade dessa pessoa”, pondera.

O livro � um convite e uma provoca��o para que cada pessoa negra possa criar suas linhas de fuga, por quais caminhos ela pode ser livre, estrat�gias de afirma��o da vida em um cen�rio de opress�o racial.

“Quando a gente pensa em sa�de mental da popula��o negra n�o tem formulas, cada pessoa negra que busca a terapia � singular e chega com sua hist�ria individual, e evidentemente tem um ponto comum, que � a experiencia da viol�ncia racial”, declara Lucas.

Em “Cl�nica do Imposs�vel” Lucas narra que o encontro entre pessoas negras como uma experi�ncia de “aquilombamento”, uma refer�ncia aos quilombos, que eram espa�os de resist�ncia e exerc�cio de liberdade fuga da opress�o.
 
“A gente vive em um ambiente de racismo estrutural, de opress�o. � importante que a gente possa se aquilombar, ou seja, constituir espa�os que a gente se sinta livre para pensar e poder afirmar o nosso lugar no mundo sem tentar ser uma caricatura do branco, mas ser a gente mesmo”, afirma Lucas.

CL�NICA DO IMPOSS�VEL

Capa do livro 'Clínica do Impossível: linhas de fuga e de cura
Livro "Cl�nica do Imposs�vel: linhas de fuga e de cura" prop�e uma nova vis�o sobre a psicologia no Brasil (foto: Reprodu��o)


Lucas � mestre em psicologia cl�nica pela Universidade Federal Fluminense, e uma de duas primeiras experi�ncias profissionais foi trabalhar na Casa Viva Bangu, um abrigo para adolescentes em situa��o de rua que faziam uso abusivo de drogas. A maioria era formada por jovens negros. 

Quando chegou era o �nico t�cnico negro da casa dentre os 22 colaboradores que trabalhavam na institui��o. “Quando eu cheguei l� ficou muito evidente para mim que a quest�o racial era talvez a principal quest�o a ser cuidada, a ser trabalhada, com aqueles adolescentes”, declara Lucas.

Todos os adolescentes tinham a cabe�a raspada e Lucas buscou entender o que levava os adolescentes a n�o experimentarem seus cabelos. Havia um discurso, difundido dentro da casa, que afirmava que quem n�o cortasse os cabelos n�o conseguiria um est�gio, ou teria piolhos.

“Com a minha chegada, esse discurso come�ou a cair, porque eu era negro, tinha black e tinha conseguido um empreso, ent�o essa discursividade n�o tinha mais lugar”. 

A partir dessa experi�ncia, Lucas foi estudar a fundo a sa�de mental da popula��o negra e percebeu que a psicologia, no Brasil, tem muita pouca forma��o sobre o assunto, com poucos estudos e poucas leituras. Essa situa��o tem mudado gradativamente inclusive com a entrada de estudantes negros nos cursos de psicologia que estimulam a discuss�o de uma psicologia preta, mas ainda � muito pobre. 

A Psicologia Preta surgiu nos anos 70 nos EUA, quando o movimento negro lutava pelos direitos civis, intelectuais negros produziram conhecimento sobre a viv�ncia negra tendo a psicologia como ferramenta. O assunto se tornou objeto de estudo de Lucas, que, ao querer compartilhar conhecimentos, criou o curso Introdu��o a Psicologia Preta. 

O livro “Clinica do Imposs�vel” surgiu como consequ�ncia do curso, que cresceu e percorreu v�rios estados brasileiros. As v�rias quest�es que eram trazidas pelos alunos para o curso instigaram o autor a respond�-las. O livro ent�o � uma tentativa de responder as quest�es que os alunos colocaram ao longa das 15 edi��es.

O t�tulo “Clinica do Imposs�vel” se refere ao problema que � o racismo, um problema imposs�vel de se resolver imediatamente. “Diante do imposs�vel de se lidar com essa quest�o, tem um outro imposs�vel que se revela, porque � imposs�vel tamb�m sermos totalmente capturados pelo racismo”.

FUGA E CURA

Para al�m da impossibilidade de resolver o racismo, Lucas tamb�m buscou inspira��o em sua pr�pria hist�ria ao dar nome � obra.

Na d�cada de 50, o av� de Lucas n�o aceitou uma situa��o de subjuga��o e brigou com o filho do patr�o na �poca, o que o levou a ser internado no Hospital Psiqui�trico do Jurujuba, em Niter�i. Aos 18 anos foi for�ado a usar camisa de for�a e ser submetido a sess�es de eletrochoque, pr�ticas desumanizantes que eram adotadas na �poca. 

Realizou v�rias tentativas de fugir desde que chegou ao hospital, sem sucesso, pois eram reconhecidos pelo uniforme. At� que foi bem sucedido e voltou para a casa dos pais, casando-se anos depois.

“Se meu av� n�o tivesse fugido, eu n�o estaria aqui para contar essa hist�ria. A fuga dele possibilitou que uma fam�lia fosse constitu�da, que eu viesse a nascer, posteriormente, e que esse trabalho agora pudesse ser feito por mim”, declara Lucas.

Quando completou 18 anos, a mesma idade que seu av� tinha quando foi internado, Lucas entrou na faculdade de psicologia, em Niter�i, na mesma cidade do hospital psiqui�trico. “Ent�o essa passagem dessa hist�ria me inspira a pensar quando que a fuga de uma realidade de opress�o � caminho de promo��o de sa�de, de promo��o de cura”.  

O BRASIL NO DIV�

O processo de coloniza��o no Brasil pode ser lido como a primeira experi�ncia traum�tica sofrida pelo pa�s, uma vez que a invas�o do territ�rio foi de forma bastante violenta pelos europeus. Ainda hoje, a chegada dos portugueses em terras brasileiras � passada de forma a camuflar a radicalidade da funda��o da nossa sociedade.

“Essa tentativa de mascarar o pr�prio trauma fundante do Brasil faz com que diante de algu�m que diz 'eu vivi uma experi�ncia de racismo' esse profissional branco precise negar essa viv�ncia. Quando ele faz isso o que ele nega? Ele t� negando o pr�prio trauma, que originou toda essa discuss�o que a gente est� fazendo aqui agora”, afirma Lucas.

O Brasil tem mais da metade de sua popula��o composta por negros e pardos, e sofre com uma desigualdade social extrema. “Setenta e cinco porcento da popula��o mais pobre do brasil � negra. N�o se pode ler esse dado sem considerar os mais de 300 anos de escraviza��o, � um efeito direto da escraviza��o e de aus�ncia de repara��o econ�mica aos danos que esse per�odo produziu”.

Segundo Lucas, quando o profissional nega a experi�ncia de viol�ncia racial de um paciente negro, ele impossibilita sua repara��o f�sica, emocional e simb�lica da viol�ncia do racismo. “E a gente precisa poder encarar o problema para poder fazer as repara��es poss�veis, e as repara��es imposs�veis, que � o que eu estou discutindo no livro”, afirma.
 
*estagi�ria sob a supervis�o de M�rcia Maria Cruz 


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