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Estado de Minas RELIGI�O E G�NERO

Vis�o feminista de classe alta n�o v� que igreja evang�lica pode fortalecer mulher, diz autor de 'O Povo de Deus'

O antrop�logo Juliano Spyer diz que conviv�ncia com evang�licos derrubou preconceitos que muitos ainda t�m com essa parcela crescente da popula��o e defende mudar radicalmente a forma de enxergar e dialogar com estas pessoas.


10/02/2022 08:48 - atualizado 10/02/2022 10:00


Mulher orando em evento evangélico
'A mulher se fortalece, porque a dist�ncia entre ela e o homem diminui', diz Juliano Spyer (foto: Getty Images)

O Brasil vai virar um pa�s evang�lico. Algumas previs�es apontam que ser� no come�o da pr�xima d�cada, outras, um pouco mais tarde, mas elas concordam que vai acontecer.

Os evang�licos - que eram 5% da popula��o em 1970 e s�o um ter�o hoje - caminham para se tornar maioria no "maior pa�s cat�lico do mundo".

� algo sem precedentes e paralelo no mundo, diz o historiador e antrop�logo Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem s�o os evang�licos e por que eles importam (Gera��o Editorial, 2020).

O livro j� foi recomendado publicamente por algumas personalidades e pol�ticos de esquerda. Frei Betto, o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ) e o ex-presidente Lula (PT) foram alguns deles. Caetano Veloso assina o pref�cio.

"A maneira com que eles abra�aram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia", afirma Spyer.

"Que, geralmente, a gente trata os evang�licos como espantalhos, de forma t�o rude, t�o desinformada, que s� serve para bater, sem dar a essas pessoas a condi��o de seres inteligentes que fazem op��es inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo."

Spyer diz que o Brasil precisa resolver esse preconceito com os evang�licos e que muita gente n�o est� preparada para ter essa conversa - mas vai ter que fazer isso.


Juliano Spyer fala em evento
Juliano Spyer diz que conviv�ncia com evang�licos derrubou preconceitos comuns em rela��o a essa parcela da popula��o (foto: Juliano Spyer)

O livro foi um dos resultados do seu doutorado em Antropologia na University College London, no Reino Unido, em que ele pesquisou o uso das m�dias sociais pelos mais pobres.

Spyer viveu um ano e meio em uma comunidade na periferia de Salvador e esteve pela primeira vez t�o pr�ximo de tantos evang�licos por tanto tempo.

Ele diz que essa conviv�ncia iluminou os preconceitos que tinha e que ele v� tamb�m em pessoas ao seu redor.

O pesquisador afirma que seu prop�sito com o livro - em que ele entrela�a sua experi�ncia pessoal com pesquisas sobre o tema - � ajudar a rever esses preconceitos.

Um deles, por exemplo, � o de que as igrejas sempre tornam a mulher evang�lica submissa ao homem, diz Spyer.

Outro � que esse novo Brasil evang�lico vai ser "uma ditadura miliciana fundamentalista", como alguns imaginam.

A seguir, ele explica por qu�.

BBC News Brasil - As previs�es apontam que o Brasil se tornar� protestante. Em que medida esse Brasil vai ser diferente do que a gente viu at� agora?

Juliano Spyer - H� uma narrativa [a respeito disso] muito associada � s�rie O Conto da Aia, em que o Brasil se tornaria uma ditadura miliciana fundamentalista baseada em uma rela��o bastante tensa de censura e de controle a partir de valores crist�os. Mas notei algo diferente em minha experi�ncia.

Quando fazia doutorado na Inglaterra, tinha quatro casais de amigos que vinham de fam�lias evang�licas pobres cujos pais n�o tinham estudado ou tinham estudado tardiamente. Desses quatro casais, tr�s tinham deixado de participar mais intensamente da igreja ou deixado definitivamente da religi�o. Tinham inclusive uma perspectiva cr�tica.

Ent�o, uma contranarrativa poss�vel � que [para as futuras gera��es] a igreja se torna algo de que elas podem participar de uma forma mais branda, mais intelectualizada, mais tranquila, levando a�, portanto, a um caminho menos radical e fundamentalista.

BBC News Brasil - De que forma isso ocorreria?

Spyer - Um dos primeiros e mais importantes estudos da Sociologia foi produzido por Max Weber. Ele associa religi�o e capitalismo e aponta em que medida o individualismo do culto protestante, que � fundamentado no quanto o indiv�duo � capaz de chegar � salva��o via sua rela��o individual e direta com Deus, intermediada pela B�blia.

Ent�o, a participa��o na igreja evang�lica cria um ambiente de disciplina em rela��o ao consumo de subst�ncias, de �lcool, de drogas, uma disciplina matrimonial, em rela��o aos estudos, que levam essas pessoas a evoluir na dire��o das camadas m�dias.

N�o sou s� eu que estou falando isso. � a literatura que diz que uma das principais consequ�ncias do protestantismo, inclusive o pentecostal, � produzir ascens�o socioecon�mica. Uma mudan�a de classe social que exp�e a pr�xima gera��o a um mundo muito mais laico, secular, dos ambientes universit�rios.


Pessoas com camisa em que se lê 'deus é 10'
Evang�licos devem se tornar maioria da popula��o na pr�xima d�cada (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - Seu trabalho tem um um prop�sito declarado de desfazer a vis�o estereotipada dos evang�licos. Pode, ent�o, esclarecer de quem estamos falando?

Spyer - Se a gente olhar para os quinhentos anos de protestantismo, uma maneira pr�tica de separar os grupos � entre o protestantismo hist�rico - aquele que vem do [Martinho] Lutero at� o in�cio do s�culo vinte, com igrejas batistas, metodistas, presbiteriana, entre outras, que surgiram mais pr�ximo da Reforma Protestante - e o pentecostal.

A partir do s�culo 20, h� esse fen�meno importante do pentecostalismo, que � o �nico ramo do protestantismo criado por um afrodescendente, o pastor chamado William Seymour. N�o h� na hist�ria do cristianismo nenhum criador de uma nova denomina��o, uma nova teologia, de origem africana. Ele n�o fundou uma igreja. Fundou uma maneira de apresentar sua mensagem que dialoga com o presente, algo muito particular do pentecostalismo.

O pentecostalismo tem uma caracter�stica curiosa. N�o foi disseminado por miss�es, com a igreja pagando para pessoas irem para certos lugares para ensinar sua teologia, mas de baixo para cima, com pessoas tocadas por aquela nova teologia indo para lugares distantes para criar suas igrejas. Tanto que as primeiras igrejas pentecostais do Brasil surgem dois anos depois do movimento original e foram se espalhando muito rapidamente dentro dos espa�os da pobreza e menos vis�veis da sociedade brasileira.

Em parte por conta disso, h� uma surpresa quando o pentecostalismo emerge. As pessoas olham para o lado e falam: "De onde vem isso? O que � que aconteceu? Onde que essas pessoas estavam?".

BBC News Brasil - Por que h� essa surpresa?

Spyer - As camadas m�dias e altas do Brasil t�m uma vis�o fora de foco do Brasil popular e ignoram esse fen�meno [evang�lico]. Isso � problem�tico, porque generaliza a imagem de um grupo de brasileiros com imensa import�ncia cultural, econ�mica e pol�tica. Ao se dirigir a esse brasileiro de maneira desinformada e preconceituosa, isso estimula uma polariza��o que, entre outras consequ�ncias, levou � elei��o do presidente Jair Bolsonaro.

A professora Claudia Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, usa o termo "apartheid", que foi o regime de segrega��o racial na �frica do Sul, para falar sobre essa falta de contato entre o Brasil pobre e o das camadas m�dias e altas. E � incr�vel como eles s�o pr�ximos. Uma rua separa o Brasil da B�lgica do Brasil do Haiti.

As �nicas situa��es geralmente de contato entre esses dois grupos � de manh�, tomando caf� enquanto a empregada lava a lou�a, ou no momento do assalto. E, dentro deste outro mundo, o cristianismo evang�lico � muito maior e mais interessante e cumpre muito mais fun��es do que geralmente n�s entendemos.


Mulher diante de igreja evangélica
As igrejas evang�licas pentecostais cresceram rapidamente no Brasil e no mundo (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - O que explica a crescente ades�o �s igrejas evang�licas no Brasil?

Spyer - N�o vou tentar aqui explicar o que � o mist�rio, se � um efeito psicol�gico, se � realmente a presen�a de Deus, isso n�o cabe dentro da Ci�ncia Social e, geralmente, � visto como desrespeitoso pelo evang�lico.

Mas, al�m do aspecto espiritual, geralmente, a ades�o est� relacionada a viver uma situa��o degradante, de viol�ncia dom�stica ou de desemprego, de alcoolismo, de depend�ncia qu�mica. Quando a pessoa chega na igreja, ela est� no esgoto da vida social, se sentindo fragilizada e precisa encontrar um lugar. Ent�o, ela senta l� no fundo e come�a a ouvir que ela vale a pena, que Deus tem uma hist�ria boa para a vida dela, e, dentro desse conv�vio, ela acaba se convertendo.

O cristianismo evang�lico est� no Brasil muito associado a uma solu��o para as pessoas mais pobres e vulner�veis, formando, por exemplo, redes de ajuda m�tua, para encontrar um advogado, uma cl�nica de tratamento, um m�dico especializado. A igreja cumpre a fun��o de Estado de bem-estar social em lugares onde a vida � muito dif�cil.

O protestantismo traz transforma��es econ�micas, em termos de qualidade de vida, muito em fun��o do disciplinamento que a convers�o produz. A convers�o � resultado da pessoa ter vivido situa��es muito dif�ceis na vida, e a consequ�ncia � uma prosperidade. Eu vi isso acontecer muito rapidamente, para minha primeira surpresa.

A primeira consequ�ncia � que o homem abdica de uma s�rie de coisas, do �lcool, das drogas, do tabaco, e a viol�ncia f�sica praticamente desaparece da vida do casal. A rela��o melhora, aumenta a confian�a, a mulher pode trabalhar, tem menos a expectativa de ela ficar em casa e do homem ser livre para ir para o bar, para festas. Ele geralmente abdica dos relacionamentos paralelos. O dinheiro que era gasto com cerveja, aventuras, passa a ser investido na fam�lia. A casa fica melhor. O filho � incentivado a estudar.

Uma segunda consequ�ncia, que considero mais importante, � uma prosperidade no sentido de dignidade, que passa por um aumento do autorrespeito e da autoestima, pela ideia de que voc� n�o � pior nem melhor do que ningu�m. "Voc� pode ser quem voc� quiser e tem direito a todos os benef�cios que as pessoas de outras classes sociais t�m."

Ent�o, existem muitos motivos que trazem essas pessoas para o cristianismo evang�lico, e dever�amos levar isso em conta para ter um olhar um pouco mais respeitoso e generoso com esse fen�meno.

BBC News Brasil - Um efeito curioso que seu livro aponta e que contraria o senso comum � que a convers�o evang�lica empodera as mulheres. Como isso acontece?

Spyer - A perspectiva feminista das classes m�dias e altas n�o � capaz de entender como a igreja evang�lica pode e representa muitas vezes um aumento no poder da mulher. Geralmente, a maneira que a mulher destas classes m�dias e altas � estimulada a reagir a situa��es de abuso moral ou f�sico � pelo rompimento de rela��es. Mas a mulher evang�lica � muitas vezes estimulada a manter os v�nculos familiares, que s�o muito mais importantes para sua sobreviv�ncia do que em outras classes.

Uma anedota que ouvi com frequ�ncia e que faz sentido � que quando o homem entra para a igreja e a mulher n�o � da igreja, o casamento termina. O homem fica na igreja, e a mulher vai achar outro, porque ela n�o quer abrir m�o da vida que ela leva. Quando a mulher entra na igreja, ela geralmente consegue levar gradualmente as outras pessoas da fam�lia para a igreja.

A convers�o das mulheres geralmente � relacionada a problemas coletivos. O marido que espanca ou � alco�latra, o filho que est� envolvido com o tr�fico... A convers�o do homem � individual. "Estou aqui porque tenho um problema." A mulher vai pra igreja para resolver o problema dos outros, e essas outras pessoas acabam indo junto com ela. Os filhos, um irm�o, uma irm�, os sogros e, em algum momento, o marido.

Quando o homem est� na igreja, ele encontra ali um grupo e relacionamentos que o estimulam a gastar menos, a manter a abstin�ncia, a evitar drogas, a romper rela��es extramaritais. Nesse sentido, a mulher se fortalece, porque a dist�ncia entre ela e o homem diminui. Ent�o, n�o � que o poder da mulher aumenta. � que o poder do homem diminui. O empoderamento da mulher vem da restri��o de possibilidades do homem.

Al�m disso, ela se torna o centro da vida espiritual da fam�lia e pode assumir cargos de responsabilidade. Apesar de mulheres pastoras ainda serem pouco comuns, muitas viajam o Brasil pregando a palavra de Deus. Ent�o, a igreja cria novas possibilidades para que essa mulher ganhe respeito e se torne uma l�der, permitindo e estimulando que ela assuma posi��es de destaque.


Pessoas orando
Igreja ajuda onde o Estado falha, diz antrop�logo (foto: Juliano Spyer)

BBC News Brasil - De onde vem o preconceito com os evang�licos?

Spyer - Nossos preconceitos t�m a ver com modos de ver o mundo. Para quem cresce dentro de um ambiente secular, a igreja pode ser uma besteira, uma idiotice. Algo ruim. Mas, em um outro n�vel, � um preconceito de classe. N�o � s� com a religiosidade. O pobre � considerado problem�tico por alguns porque ele � barulhento demais, sexualizado [demais], violento demais, religioso demais.

Tem essa patologiza��o do pobre, principalmente quando ele est� perto. Quando ele est� longe, � bacana. Ele tem cultura. � o ribeirinho, o quilombola… Mas o pobre pr�ximo � rejeitado. H� uma vis�o de que, se a pessoa n�o teve acesso a uma boa educa��o, n�o sabe votar, precisa ser educada para isso, para pensar a vida do lado de c�.

A maior parte das pessoas que aderem ao protestantismo, principalmente pentecostal, s�o pretas, pardas, pobres, perif�ricas e do sexo feminino, ou seja, s�o, de fato, o grupo mais marginalizado da sociedade brasileira. Mas essas pessoas n�o querem se submeter � opini�o dos outros. Como uma antrop�loga americana fala, o protestante pentecostal n�o quer ser intermediado, n�o quer que digam o que ele � e quais s�o seus direitos. Ent�o, ele � ousado, � uma pessoa "que n�o sabe seu lugar".

A�, imagina, al�m de pobre e ignorante, ele quer se meter com pol�tica? Quer comprar um carro? Quer viajar para a Disney? Falas assim explicitam esse preconceito de classe absurdo que aparece com frequ�ncia em rela��o ao crist�o, principalmente o pentecostal, quando ele busca uma prosperidade que n�o � diferente da prosperidade que as pessoas que o criticam vivem, como ter uma casa, um carro, morar perto [do trabalho], ter plano de sa�de, botar os filhos em uma escola privada.

O Brasil �, curiosamente, preconceituoso, e a gente se acostumou por muitos anos a viver dentro dessa desigualdade a ponto de n�o aceitar muitas vezes que esses espa�os sejam reduzidos. E esses protestantes n�o querem mais esperar, n�o querem mais que fa�am por eles, eles est�o fazendo, pelo empreendedorismo de necessidade e de fato, buscando educa��o. Eles sentem que � responsabilidade deles fazer isso, que ningu�m vai fazer, porque at� agora ningu�m fez.

BBC News Brasil - Caetano Veloso assina o pref�cio do seu livro, que j� foi indicado por Marcelo Freixo, Lula, frei Betto. Por que personalidades e pol�ticos de esquerda t�m recomendado a leitura do seu trabalho?

Spyer - Vou falar especialmente do Caetano Veloso. N�o somos amigos e n�o tivemos contato antes de eu enviar o livro para ele. Queria uma frase dele e, dois meses depois, recebi um longo email com uma s�rie de observa��es e cr�ticas. Fiquei impressionado, porque ele leu de forma muito cuidadosa.

O Caetano � uma pessoa que se move para al�m do �bvio. Ele fala no pref�cio da quantidade de pessoas que falam sobre este assunto de maneira muito preconceituosa, taxando essas pessoas como idiotas e ignorantes ou como fan�ticas e mercadores da f�. O Caetano historicamente combate esse tipo de vis�o arrogante das camadas m�dias.

Acho que, de certa forma, as outras pessoas - posso falar pelo frei Betto, com quem eu passei a ter contato, e o Marcelo Freixo -, que a maneira com que eles abra�aram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais nisso do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia. Que geralmente a gente trata os evang�licos como se eles fossem espantalhos, de uma forma t�o rude, t�o desinformada, que s� serve para bater, sem dar a essas pessoas a condi��o de seres inteligentes que fazem op��es inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo.

Essas pessoas demonstraram interesse pelo livro vendo ali um problema importante que o Brasil vai precisar resolver, que � o preconceito de classe com um grupo que hoje representa um ter�o do pa�s. � importante perceber o quanto a gente pode ganhar aliando for�as e tendo um di�logo mais interessante e menos preconceituoso com essas pessoas.


Bolsonaro em evento evangélico
Bolsonaro n�o � evang�lico, mas tem alian�as importantes com l�deres evang�licos, avalia Spyer (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - Por que o Brasil precisa resolver esse preconceito em rela��o aos evang�licos?

Spyer - Em primeiro lugar, porque, ao tratar os evang�licos de forma desrespeitosa, arrogante, desinformada e com uma s�rie de cr�ticas por serem religiosos, estamos abrindo m�o do di�logo com pessoas que t�m valores conservadores, n�o s� do ponto de vista moral, mas econ�mico, e que s�o contr�rios aos nossos.

Em uma conversa recente com o pastor Henrique Vieira, perguntei como a gente faz para negociar essa pauta moral com o evang�lico comum que acha que a fam�lia tradicional � uma quest�o importante e que sua liberdade religiosa � desrespeitada pelas "pessoas mais esclarecidas".

Ele me deu duas recomenda��es muito l�cidas. A primeira: quando a esquerda se relacionar com essas pessoas, precisa tirar os manuais de baixo do bra�o e ouvir mais do que falar. A segunda � fazer um esfor�o para entrar de novo na discuss�o sobre termos que a esquerda tratou de forma muito desastrada: fam�lia, amor e vida.

Se voc� quer dialogar com essas pessoas, precisa aceitar que, mesmo discordando do que pensam, elas t�m o direito de pensar dessa forma. E tentar propor outros enquadramentos para essas discuss�es. Por exemplo, dentro do di�logo sobre a vida, em vez de refor�ar que a mulher tem direito � escolha do aborto, mostrar que mulheres morrem porque o aborto � ilegal. A mesma coisa em rela��o � legaliza��o da maconha: dizer que, por conta da proibi��o, pessoas morrem v�timas de determinadas situa��es ligadas � pol�cia.

O Henrique Vieira relatou uma conversa que teve sobre homoafetividade: "O que voc� prefere: que uma pessoa gay seja assassinada ou ver essa pessoa beijando outra pessoa do mesmo sexo?". Percebe como voc� cria uma possibilidade de di�logo?

BBC News Brasil - Qual ser� a consequ�ncia caso esse preconceito persista?

Spyer - Em �ltima inst�ncia, ser� manter os evang�licos cativados ou sendo pressionados dentro das suas igrejas a aderirem a pautas que geralmente n�o s�o do interesse deles por conta da defesa das pautas morais.

� muito comum dentro dos c�rculos intelectualizados comparar os evang�licos a fascistas bolsonaristas, sendo que, no meu entendimento, a partir da conviv�ncia com uma s�rie de evang�licos, h� muitos que n�o t�m identifica��o com nosso atual presidente. Mas eles se sentem constrangidos em dizer isso dentro das igrejas, porque o presidente, de forma muito h�bil, costurou rela��es com as lideran�as.

Bolsonaro � um peso para o evang�lico comum. Primeiro, porque ele fala de uma maneira muito violenta e desrespeitosa. Voc� n�o vai ver evang�lico falando dessa forma, usando palavr�es, uma forma intimidadora que n�o cabe ali dentro [da igreja]. Segundo, Bolsonaro n�o � evang�lico, e a B�blia certamente n�o � um assunto de interesse dele. O interesse dele pela religi�o � muito menor do que o interesse que tem, por exemplo, em rela��o � quest�o do policiamento. Terceiro, porque a mulher evang�lica de periferia tem um imenso problema com o tema da facilita��o do acesso �s armas de fogo. Ela j� v� armas de fogo demais nos bairros dela.

Agora, se voc� n�o demonstra respeito pelas convic��es, vis�es, entendimentos que essas pessoas t�m em rela��o �s pautas morais, voc� entrega elas todas [de bandeja] que ser�o de uma forma muito efusiva abra�adas pelo outro lado.

Muitas vezes, essa polariza��o � promovida dentro da igreja, quando dizem que a esquerda � antifam�lia, � comunista, o que � uma grande bobagem porque as mesmas pessoas que falam isso participaram dos governos de esquerda do Lula e governo Dilma. Elas est�o falando da boca pAra fora, por conveni�ncia, mas constrangendo evang�licos que n�o se identificam com Bolsonaro a votar em candidatos que representam esse pensamento ou pelo menos, o que � mais importante, a se calar e n�o expressar suas cr�ticas.


André Mendonça discursa
Bolsonaro mostrou lealdade aos evang�licos ao indicar Andr� Mendon�a ao STF, afirma o pesquisador (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - Seu livro cita epis�dios em que pol�ticos de esquerda cometeram erros ao tratar da religi�o em elei��es. A esquerda aprendeu a li��o?

Spyer - Os pol�ticos e os partidos pol�ticos entenderam o recado. Quem est� disputando [uma elei��o] sabe que precisa dialogar com um ter�o do pa�s e disputar esses votos. O que me preocupa � o eleitor, que, com frequ�ncia, especialmente nas redes, demonstra ainda muita insensibilidade. Sempre que uma entrevista como essa � publicada, h� muito desrespeito.

A professora Jacqueline Teixeira, da USP, � uma antrop�loga que estuda mulheres na Igreja Universal e acompanhou nas campanhas eleitorais em 2018 as conversas dentro das redes de mulheres evang�licas da Universal. Ela percebeu o esfor�o que essas mulheres estavam fazendo para que a igreja n�o abra�asse oficialmente a candidatura do Bolsonaro.

Esse esfor�o veio abaixo quando o candidato Fernando Haddad chamou o Edir Macedo de charlat�o. Isso deu muni��o para as outras pessoas que eram a favor do Bolsonaro constrangessem essas mulheres, falando "a gente vai votar no cara que � contra a gente?".

BBC News Brasil - Caso o ex-presidente Lula seja candidato, ele cometeria um erro assim?

Spyer - Certamente, n�o. Primeiro, porque o ex-presidente Lula, ao contr�rio do Haddad, n�o vem das camadas m�dias da sociedade. Ele � muito mais identificado com o brasileiro que migrou do sert�o do que o Haddad, ent�o, � uma pessoa muito mais aberta ao tema da religi�o e que vivencia a quest�o da religi�o do que o Haddad - que, ali�s, � uma pessoa por quem tenho muito respeito. Mas, em rela��o a esse aspecto, ele cometeu um erro que o Lula, caso ele se torne candidato, n�o repetir�.

Al�m disso, Lula � menos associado aos temas identit�rios do que Haddad. Acredito, que, neste momento, ele vai dar mais �nfase �s pautas econ�micas e menos � moral e aos costumes. Mas Lula vai ter que, de alguma forma, convencer esse grupo de que ele n�o � contra as igrejas e que, dentro do hist�rico das esquerdas, n�o vai se posicionar de forma arrogante em rela��o a causas e temas que s�o importantes para os evang�licos.


Lula discursando
Voto evang�lico est� dividido entre Lula e Bolsonaro, apontam pesquisas (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - Na �ltima elei��o, o voto evang�lico foi majoritariamente para Bolsonaro e, para muitos, isso foi decisivo para sua elei��o. Pesquisas apontam que esse eleitorado agora est� dividido entre ele e Lula e, em alguns levantamentos, Lula est� � frente. O que aconteceu?

Spyer - O evang�lico � predominantemente pobre. A maior parte do cristianismo evang�lico cresce nas periferias urbanas, por conta da aus�ncia do Estado, ent�o, n�o s� o evang�lico, mas o brasileiro pobre entende que foi beneficiado pelas pol�ticas de combate � pobreza dos governos petistas e que viveu seu melhor naquele per�odo.

O Lula � visto pelos pobres brasileiros como uma pessoa que, pela primeira vez na hist�ria do Brasil, governou pensando neles. A gente ouvia com muita frequ�ncia nas pesquisas da campanha de 2018 pessoas falando: "Minha m�e fez faculdade, que era o sonho da vida dela", "essa casa e esses m�veis eu comprei durante os governos do PT", ent�o, num primeiro momento, essa lembran�a da vida mais pr�spera que beneficia Lula.

Particularmente, o crist�o entende a prosperidade como elemento importante de express�o da f�, ou seja, estar trabalhando, ter uma casa melhor, comprar uma moto, ter filho na escola particular s�o uma evid�ncia de que ele est� se comportando bem.

Em um segundo momento, tenho a impress�o que essas pesquisas refletem que Bolsonaro n�o � a express�o mais desejada por eles enquanto l�der. Ent�o, esses evang�licos, mesmo calados entre seus pares, na intimidade da urna ou das pesquisas, manifestam essa rejei��o.

A vantagem de Bolsonaro � que ele tem falado de forma aberta e expl�cita em favor das pautas morais que s�o caras para os evang�licos e em favor da liberdade religiosa. � um grande m�rito dele. Ele conseguiu indicar um ministro evang�lico, bancou essa candidatura com o apoio da bancada evang�lica. Com isso, ele demonstrou para o evang�lico pobre uma fidelidade, uma aten��o com esse eleitor que n�o se sente representado, por exemplo, no Supremo [Tribunal Federal] em rela��o aos seus valores e vis�es de mundo.

Mas a disputa n�o est� ganha. No espa�o da esquerda intelectualizada, progressista, h� o problema de achar que as pessoas que abra�aram a candidatura de Lula rejeitaram a candidatura Bolsonaro. Uma hip�tese minha � que tem muitas pessoas que diriam que se, um n�o estiver na disputa, votam no outro.

BBC News Brasil - Ou seja, a disputa pelo voto evang�lico ainda est� em aberto?

Spyer - N�o s� est� em aberto como est� em aberto antes das campanhas come�arem. Ainda tem muita propaganda boca a boca, muito uso dessa infraestrutura de comunica��o via WhatsApp, tem muita �gua para rolar.

Tenho visto nos meus pares um al�vio, achando que o Bolsonaro n�o ser� o pr�ximo presidente do Brasil. � a mesma sensa��o de seguran�a que se tinha em janeiro de 2018 em rela��o ao candidato azar�o que n�o tinha tempo de TV. Agora, esse candidato � presidente da Rep�blica, tem a m�quina p�blica a favor dele e costurou muitas rela��es com esses l�deres evang�licos midi�ticos que falam em defesa dele. Ent�o, ele n�o � carta fora do baralho.

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