Maior grupo �tnico-racial do Brasil, respons�vel por 47% da popula��o, os brasileiros que se declaram pardos se veem no meio de uma batalha pol�tica.
De um lado, o movimento negro prega uma alian�a entre pretos e pardos para eleger candidatos � esquerda comprometidos com o combate ao racismo.
Do outro, grupos conservadores que ganharam for�a sob a presid�ncia de Jair Bolsonaro exaltam a identidade parda e acusam a esquerda de estimular divis�es raciais no Brasil.
Como brasileiros de fam�lias multirraciais se posicionam nesse embate?O tema � tratado no segundo epis�dio de Brasil Partido, um podcast da BBC News Brasil, veiculado nesta quarta-feira (20/09) no site da BBC, no canal da emissora no YouTube e em plataformas de �udio como Spotify e Apple Podcasts.
Apresentado pelo rep�rter Jo�o Fellet, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais — como evang�licas, agricultores e executivos do mercado financeiro — se posicionam diante de conflitos pol�ticos atuais.

O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divis�o na pol�tica e se h� possibilidade de di�logo entre grupos divergentes.
O primeiro epis�dio tratou de casais que foram para a terapia para lidar com conflitos pol�ticos que amea�am inviabilizar o relacionamento.
Quantos brasileiros s�o pardos?
Segundo a �ltima Pesquisa Nacional por Amostra de Domic�lios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica), de 2021, os pardos somam cerca de 100 milh�es de brasileiros.
Eles respondem por 47% da popula��o brasileira, � frente de brancos (43%), pretos (9,1%) e da soma entre ind�genas e amarelos (0,9%).
Mas quem s�o os pardos?
"O movimento negro instituiu que negro � igual � somat�ria de preto mais pardo. A minha gera��o fez essa engenharia pol�tica, e n�s dissemos: tudo que estiver dito a� que � pardo e preto, para n�s � negro", disse a fil�sofa Sueli Carneiro, em junho, ao podcast Mano a Mano, do rapper Mano Brown.
Carneiro, de 72 anos, � uma das mais destacadas ativistas do movimento negro brasileiro.
A defini��o citada pela ativista embasa o discurso de que os negros s�o maioria no Brasil, j� que pretos e pardos, somados, respondem por 56,1% da popula��o.
O discurso se apoia na no��o de que pardos tamb�m t�m antepassados africanos e tamb�m sofrem racismo.
Essa vis�o ganhou um reconhecimento oficial em 2010, durante o governo Luiz In�cio Lula da Silva, quando o Congresso aprovou uma lei que criou o Estatuto da Igualdade Racial.
O estatuto definiu a popula��o negra como "o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas".
Mas nem todos os pardos concordaram com a defini��o.

"Eu sou mesti�o, eu n�o sou negro. Eu sou pardo, eu n�o sou negro", disse o m�dico e ativista Le�o Alves, em junho, numa confer�ncia organizada pelo Movimento Pardo Mesti�o Brasileiro, em Manaus.
Fundado pelo pr�prio Alves, o movimento surgiu no in�cio dos anos 2000 e passou quase 20 anos fora das principais arenas onde ra�a e pol�tica s�o discutidas no Brasil.
At� que a chegada de Jair Bolsonaro ao poder mudou a hist�ria do grupo, conforme Alves relatou ao podcast Brasil Partido.
No in�cio de 2022, pela primeira vez em sua hist�ria, o movimento participou de uma reuni�o do Conselho Nacional de Promo��o da Igualdade Racial, inst�ncia formada por entidades civis e �rg�os do governo que est� na estrutura do Minist�rio da Mulher, da Fam�lia e dos Direitos Humanos.
O conselho tem a atribui��o de propor pol�ticas voltadas � igualdade racial. O Movimento Pardo Mesti�o se candidatou a uma vaga no conselho e teve a candidatura aprovada pela ent�o ministra Damares Alves.
Estado mais pardo do Brasil
Nascido em Manaus em 1966, filho de um pai porteiro e de uma m�e zeladora, Alves diz pertencer a uma fam�lia fisicamente parecida com a ampla maioria das fam�lias amazonenses.
Naquele Estado, o percentual de pardos na popula��o � de 66,9%, o maior do pa�s. E o Amazonas tem o segundo menor percentual de pretos do Brasil, 3,2%, s� atr�s dos 3% de Santa Catarina.
Isso porque a escravid�o africana n�o foi t�o presente no Amazonas quanto em outras partes do Brasil. No Amazonas, o principal grupo escravizado foi o dos ind�genas, que hoje s�o 4% da popula��o do Estado.
Segundo Le�o, pardos "com aspecto de caboclo" s�o o grupo que sofre mais preconceito racial no Amazonas por ser associado �s classes mais pobres.
Na defini��o do dicion�rio Aulete, caboclo � o "mesti�o de branco com �ndio", ou o "mulato de pele acobreada e cabelos lisos".
J� os pretos, segundo Alves, s�o associados por muitos amazonenses �s For�as Armadas, uma vez que muitos pretos nascidos em outros Estados servem como militares no Amazonas.

Direitos origin�rios
Uma das cr�ticas de Alves � inclus�o dos pardos na categoria negros tem a ver com a pol�tica de terras brasileira.
Alves defende que, por serem descendentes de ind�genas, os pardos do Amazonas deveriam ter "direitos origin�rios" sobre as terras que ocupam — direitos que, no entanto, a Constitui��o s� confere aos povos ind�genas.
A express�o "direitos origin�rios" se refere a direitos que s�o anteriores � cria��o do Estado brasileiro e ao fato de que os ind�genas foram os primeiros habitantes do territ�rio nacional.
Por�m, Alves afirma que, por n�o reconhecer a origem ind�gena dos pardos e por trat�-los como negros ap�s o Estatuto da Igualdade Racial, o Estado brasileiro se eximiu de destinar terras ao grupo.
O m�dico diz ainda que considerar pardos como negros estimula um conflito entre negros e brancos na sociedade brasileira, ao passo que a identidade parda ou mesti�a "homogeneiza e unifica" a na��o, segundo ele.
Alves considera como parda qualquer pessoa que tenha alguma mistura racial — at� mesmo as que tenham pele bem clara ou bem escura. Pelo crit�rio dele, a ampla maioria da popula��o brasileira � parda.
O Movimento Pardo Mesti�o � pr�ximo de outros grupos conservadores e defende a reelei��o de Jair Bolsonaro.

A trajet�ria de Alves vai na contram�o de um movimento que ganhou for�a nas �ltimas d�cadas: o dos brasileiros que passaram a se ver como negros, ainda que tenham antepassados de ra�as distintas.
� o caso de Iara Viana, uma educadora e musicista de 37 anos tamb�m entrevistada pelo podcast Brasil Partido.
Nascida em S�o Bernardo do Campo, na Grande S�o Paulo, Viana diz ser filha de um homem branco e de uma mulher "preta de pele clara" e ter frequentado escolas particulares onde negros eram raros.
Ela diz que, na adolesc�ncia, passou a sofrer ass�dio por conta da "hipersexualiza��o da mulher preta de pele clara" e tamb�m epis�dios de racismo na escola. "As pessoas falavam: 'Cala a boca, sua preta', 'boneca de piche', 'senta l�, sua macaca'".
Viana conta que, para se defender, se tornou uma "adolescente cruel" e passou a fazer bullying com outros colegas.
Certa vez, quando a coordenadora chamou Viana para lhe dar uma bronca, a jovem diz ter questionado a dire��o da escola por nunca ter combatido o racismo que ela sofria.
"Ela (a coordenadora) simplesmente olhou para mim e falou: 'Mas voc� nem � negra'. "E esse entrelugar de 'mas voc� nem � negra', 'mas voc� n�o � branca' � uma coisa que faz parte da minha vida desde ent�o", afirma.
Apesar dos questionamentos, Viana decidiu se identificar como negra.
"O meu processo foi: 'eu estou sofrendo racismo. Aqui as pessoas est�o falando que eu n�o sou preta. Mas eu estou vivendo isso aqui, eu estou enxergando o que est� acontecendo aqui, e eu vou me assumir como preta, assim as pessoas n�o v�o fazer isso comigo, eu vou assumir a minha afrodescend�ncia'."
Para ela, "a quest�o do pardo foi uma coisa inventada no Brasil pelos europeus para separar a gente, para tirar o poder revolucion�rio da popula��o negra brasileira".
Viana vota em partidos de esquerda e defende a elei��o de pol�ticos negros focados em combater o racismo.
Quem � negro no Brasil?

Ao se declarar negra, no entanto, Viana passou a encarar questionamentos do outro lado, por parte de negros que n�o a viam como igual.
Ela conta que, num encontro do movimento negro, uma mulher preta de pele retinta a criticou por morar em Perdizes, um bairro rico e majoritariamente branco de S�o Paulo.
"Ela me falou: 'sabe qual � a nossa diferen�a?' 'A nossa diferen�a', ela falava dela, � que ela s� fica na cozinha da casa dessa gente de Perdizes, e eu posso sentar no sof� da sala."
Viana diz compreender que, por ter a pele clara, jamais sofrer� tanto racismo quanto pretos retintos.
"Por isso eu n�o fico ofendida quando algu�m questiona a minha negritude. S� que n�o quer dizer que, estando sentada l� naquele sof�, eu tamb�m n�o sofra racismo", afirma.
Movimento antirracista

O podcast Brasil Partido abordou as trajet�rias de Le�o Alves e Iara Viana com o arquiteto baiano Zulu Ara�jo, um dos principais nomes do movimento negro brasileiro.
Ara�jo, de 70 anos, dirigiu entre 1990 e 1994 o Grupo Cultural Olodum, uma das mais importantes organiza��es culturais afrobrasileiras, e presidiu entre 2007 e 2010 a Funda��o Cultural Palmares, um �rg�o federal respons�vel por difundir a cultura brasileira negra.
Indagado sobre os epis�dios em que Iara Viana diz ter sido questionada sobre sua negritude por outros ativistas do movimento negro, ele afirmou:
"Um dos equ�vocos graves que o movimento negro tem � que uma parcela da sua milit�ncia acredita no racialismo, ou seja, de que a cor da pele passa a ser um elemento fundamental para defini��o da milit�ncia, para defini��o daqueles que t�m, ou devem ter, mais protagonismo na luta".
Ara�jo afirma que "o que n�s precisamos no Brasil � de um movimento antirracista".
Para ele, o movimento negro deve continuar existindo, pois � composto por "aqueles que sofrem diretamente na pele, na alma, no cora��o, a discrimina��o".
"Mas, do ponto de vista pol�tico, n�s n�o podemos abrir m�o daqueles que possam contribuir para que a discrimina��o e o racismo acabem no Brasil."
Segundo ele, o movimento antirracista deve "incorporar brancos de todas as matizes, negros de todas as matizes, desde que sejam antirracistas".

Alves tamb�m comentou as vis�es do Movimento Pardo Mesti�o. Segundo ele, ao valorizar a identidade parda e a no��o de que quase todos os brasileiros s�o mesti�os, o grupo ignora que o racismo no Brasil se baseia principalmente no fen�tipo (apar�ncia) das pessoas.
"Voc� � mais discriminado quanto mais voc� se parece com um africano, seja na cor da pele, seja nos seus tra�os fen�tipos, tipo narizes mais achatados, l�bios grossos, cabelos mais carapinha", diz.
Por essa l�gica, Alves afirma que, mesmo que a maioria da popula��o brasileira seja multirracial, pessoas com caracter�sticas f�sicas associadas � negritude s�o mais discriminadas que as outras. Da� a impertin�ncia de considerar todos os mesti�os como parte de um s� grupo, diz ele.
Alves faz outras ressalvas ao grupo fundado por Le�o Alves.
"A minha cr�tica a esse movimento dos pardos � porque eles, na verdade, est�o muito mais voltados para o combate �queles que combatem o racismo e a discrimina��o do que para promover a igualdade", afirma.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62812987
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