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Estado de Minas GOLPE MILITAR

As fotos que mostram como negros combateram o racismo em plena ditadura

Fundado em 1978, Movimento Negro Unificado derrubou mito da 'democracia racial' e denunciou racismo como problema estrutural que precisava ser enfrentado. Confira fotos de Jesus Carlos Lucena.


27/11/2022 13:54 - atualizado 28/11/2022 09:39


Manifestantes com cartazes onde se lê: 'Abaixo o racismo', 'Denunciamos o namoro do Brasil com a África do Sul', 'Abaixo 500 anos de opressão', 'Contra a repressão policial', 'Lei Afonso Arinos' e 'Negro é gente'
Fundado em 1978, Movimento Negro Unificado derrubou mito da 'democracia racial' e denunciou racismo como problema estrutural, que precisava ser enfrentado (foto: Jesus Carlos)

Em abril de 1978, um jovem negro foi acusado pelo roubo de frutas de um feirante. Robson Silveira da Luz, de 21 anos, casado e pai de fam�lia, foi barbaramente torturado pela pol�cia nas depend�ncias do 44º Distrito de Guaianases, na zona leste de S�o Paulo, e acabou morto.

Naquele mesmo ano, quatro garotos negros, atletas da equipe juvenil de v�lei do Clube de Regatas Tiet�, foram barrados no clube. Ao reclamar do acontecido, o t�cnico teria ouvido de um dos diretores: "Se deixar um negro entrar na piscina, cem brancos saem."

Em resposta a esses dois epis�dios, um grupo de jovens negros fundou no dia 18 de junho de 1978 o Movimento Unificado Contra a Discrimina��o Racial. Posteriormente, rebatizado para acrescentar no nome a palavra Negro — uma sugest�o do hist�rico ativista negro Abdias do Nascimento (1914-2011), para que ficasse claro quem eram os protagonistas da luta contra a discrimina��o.

Em meio � ditadura militar, a juventude negra teve a ousadia de questionar o mito da "democracia racial" ent�o vigente e ir �s ruas dizer que o racismo era um problema estrutural que precisava ser enfrentado e que a quest�o racial seria central � luta democr�tica.

Esse movimento retomava a tradi��o de organiza��es como a Frente Negra Brasileira, primeira associa��o de ativismo negro do pa�s, na d�cada de 1930, e o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias do Nascimento nos anos 1940.

Em 7 de julho de 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) reuniria milhares de pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de S�o Paulo, num ato p�blico contra o racismo.

Essa manifesta��o hist�rica, e outras realizadas nos meses e anos seguintes, foram registradas pelas lentes do fot�grafo Jesus Carlos Lucena Costa. No m�s da Consci�ncia Negra, a BBC News Brasil resgata essas fotografias — algumas delas, nunca antes publicadas.


Manifestação do Movimento Negro Unificado, 1980
Manifesta��o do Movimento Negro Unificado contra a Lei Afonso Arinos, considerada pouco efetiva contra o racismo, e Caminhada por Zumbi nas ruas do centro de S�o Paulo, 1980 (foto: Jesus Carlos)

"Toda luta � um processo. Conhecer a luta do MNU, conhecer a hist�ria, � permitir a continuidade do processo. Quem come�a a luta hoje, come�a de um outro patamar", diz Regina Lucia dos Santos, militante do MNU h� 27 anos.

Fotografia e a possibilidade da mem�ria

Hoje com 71 anos, Jesus Carlos tinha 29 naquele 1978 de funda��o do MNU. Durante a ditadura militar, o fot�grafo trabalhava com ve�culos da imprensa alternativa, como os jornais Em Tempo, Rep�rter, Opini�o e Movimento.

Desde 1974, sob o governo Ernesto Geisel, o Brasil vivia o in�cio do seu processo de redemocratiza��o, uma abertura "lenta, gradual e segura", segundo o pr�prio general.

A sociedade civil passava por um momento efervescente, com as primeiras passeatas estudantis desde 1968 (ano de endurecimento da ditadura militar, quando foi decretado o Ato Institucional Nº 5), a rearticula��o do movimento sindical, dos movimentos contra a carestia, de trabalhadores rurais, mulheres, homossexuais e o in�cio da recupera��o partid�ria.

"Como fot�grafo, havia consci�ncia da import�ncia daquele trabalho. Voc� estava registrando a realidade, mas tamb�m colaborando para aquele processo fotografado", diz Jesus Carlos.

"Uma quest�o que para mim j� existia naquela �poca, � a de que, ao fotografar, voc� estava n�o s� registrando aquele momento, mas levando em conta a possibilidade da mem�ria."


Manifestação do Movimento Negro Unificado, 1980. No centro da foto, manifestante com cartaz onde se lê: 'Negro é gente'
'Voc� estava registrando a realidade, mas tamb�m colaborando para aquele processo fotografado', diz Jesus Carlos, que fotografou manifesta��es contra o racismo (foto: Jesus Carlos)

Naquele julho de 1978, Jesus Carlos foi pautado para cobrir a primeira manifesta��o de rua do MNU pelo jornal Em Tempo, ao lado do tamb�m fot�grafo Ennio Brauns.

"Naquela �poca, j� existia algo de movimento negro. Por exemplo, os bailes black. O pessoal se encontrava na sexta-feira � noite no Vale do Anhangaba�, embaixo do Viaduto do Ch�. Aquele monte de pessoas com cabelo black power, homens e mulheres com aquelas roupas e colares. Aquilo foi um embri�o do movimento negro", lembra Jesus Carlos, que lamenta n�o ter fotografado esses encontros.

"S� depois me dei conta do que estava realmente acontecendo."

Em julho de 1978, nas escadarias do Municipal, j� n�o havia mais d�vidas.

"Estava acostumado desde 1976 a fotografar movimento sociais, mas ali em 1978 me deparei com algo que nunca tinha visto. Foi ali que me deparei com aquele mundo negro que n�o conhecia. Aquilo me chamou muita aten��o e me entusiasmou muito", conta.


Fátima Ferreira, militante fundadora do MNU, com o filho Samoury nos braços, durante Caminhada por Zumbi no centro de São Paulo, no 20 de novembro de 1979
F�tima Ferreira, militante fundadora do MNU, com o filho Samoury nos bra�os, durante Caminhada por Zumbi no centro de S�o Paulo, no 20 de novembro de 1979 (foto: Jesus Carlos)

"A import�ncia daquele momento, vemos at� hoje no dia a dia", avalia Jesus Carlos.

"Uma coisa precisamos ter clara: a situa��o do negro continua muito grave. Houve mudan�as, houve conquistas, mas o racismo estrutural continua muito forte", observa.

"Precisou a luta pelas cotas para fazer a pessoa de cor negra ter acesso � universidade. Mas continua a diferen�a salarial entre homens e mulheres, negros e brancos. Voc� vai nos bairros de classe m�dia alta, a popula��o � branca. O negro que voc� encontra l� � o vigia da rua."

Movimento Negro Unificado, resist�ncia nas ruas

Aos 74 anos e 44 de milit�ncia no MNU, Milton Barbosa se recupera bem da retirada de um c�ncer de pr�stata no primeiro semestre deste ano. Passada essa batalha, est� de volta � luta com a qual est� mais acostumado: contra a desigualdade racial no Brasil.


Antonio Leite, Milton Barbosa (ao microfone) e Flavio Carrança durante o primeiro ato público do MNU, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978
Antonio Leite, Milton Barbosa (ao microfone) e Flavio Carran�a durante o primeiro ato p�blico do MNU, nas escadarias do Teatro Municipal de S�o Paulo, em 7 de julho de 1978 (foto: Jesus Carlos)

Barbosa lembra que o grupo formado por ele, Jos� Ad�o, Rafael Pinto e outros ativistas negros j� conversava sobre a necessidade de algo que desse conta do enfrentamento da quest�o racial, mesmo antes dos dois epis�dios que resultaram na cria��o do MNU.

"Nas nossas discuss�es, fomos descobrindo que umas das quest�es fundamentais era o enfrentamento ao racismo. Mas era um processo muito dif�cil, porque era um pa�s racista, mas mesmo os setores progressistas n�o viam a quest�o racial como uma das prioridades. Ent�o, percebemos a necessidade de organizar a popula��o negra para estar � frente desta luta."

Robson Silveira da Luz, o jovem morto ap�s tortura policial, era primo de Rafael Pinto. E o caso dos rapazes barrados no Clube Tiet� chegou ao grupo atrav�s do jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999), ent�o colaborador na se��o Afro-Latino-Am�rica do jornal Versus.


Hamilton Cardoso ao centro, com Antonio Leite, Eduardo Ribeiro e Milton Barbosa ao fundo, no primeiro ato público do MNU, nas escadarias do Teatro Municipal em 7 julho de 1978
Hamilton Cardoso ao centro, com Antonio Leite, Eduardo Ribeiro e Milton Barbosa ao fundo, julho de 1978 (foto: Jesus Carlos)

"Todo mundo acha que o MNU foi fundado no 7 de julho, que � o ato das escadarias no Municipal, mas n�o foi. Foi fundado em 18 de junho na sede do Cecan [Centro de Cultura e Arte Negra] e ali eles decidiram fazer um lan�amento p�blico, apesar da ditadura militar", lembra Regina Lucia dos Santos, companheira de Milton Barbosa h� 26 anos.

Enquanto o ato estava sendo preparado, em 1º de julho, o oper�rio negro Nilton Louren�o foi morto por um policial na Lapa, lembra Barbosa.

Nesse contexto, o documento de lan�amento do MNU traz como pontos centrais o car�ter racista da viol�ncia policial no Brasil, o racismo na educa��o e nos meios de comunica��o, a quest�o das empregadas dom�sticas e o apoio aos negros da �frica do Sul, ent�o ainda sob o regime de segrega��o do racial do apartheid.


Abordagem policial durante manifestação do MNU nas escadarias do Teatro Municipal, 1980
Abordagem policial durante manifesta��o do MNU nas escadarias do Teatro Municipal, 1980 (foto: Jesus Carlos)

Legados e desafios

Para Barbosa, um dos legados do MNU foi a percep��o do movimento de negro de que era preciso estabelecer prioridades no enfrentamento � desigualdade racial. J� Regina avalia que um dos principais resultados do movimento foi tirar o racismo da invisibilidade.

Ela tamb�m enumera conquistas como Lei 10.639/1996, que estabeleceu o ensino da hist�ria e cultura afro-brasileira nas escolas; o avan�o da produ��o intelectual negra; e a conquista de espa�o nos meios de comunica��o, um espelho para a juventude negra.

"H� coisa de 15, 20 anos atr�s, nossa juventude morria assassinada pelo Estado nas periferias do Brasil todos os dias. Mas o pr�prio negro da periferia n�o enxergava que o motivo daquelas mortes era sua negritude. Hoje os movimentos de m�es de v�timas colocam isso claramente."

Regina avalia que o combate ao genoc�dio da juventude continua sendo uma miss�o do movimento negro. Mas ela defende que um desafio que se imp�e atualmente � a necessidade de se combater o que ela chama de "epistemic�dio" negro — o apagamento das contribui��es intelectuais dessa parcela da popula��o — e de promover o chamado letramento racial.


Mulheres no primeiro ato público do MNU, julho de 1978
'N�o se coloca a contribui��o, a import�ncia e a resist�ncia negra na hist�ria desse pa�s', diz Regina Lucia dos Santos, militante do MNU h� 27 anos (foto: Jesus Carlos)

"Existem dois tipos de racistas no pa�s. O racista que � racista mesmo, por escolha ideol�gica, para defender os seus privil�gios e manter a desigualdade. E o racista por ignor�ncia, porque n�o se coloca a contribui��o, a import�ncia e a resist�ncia negra na hist�ria desse pa�s", defende a militante do movimento negro.

"Por desconhecer essa hist�ria, as pessoas introjetam o racismo. Ent�o letramento racial � oferecer essa hist�ria, oferecer essa discuss�o, ela alcan�ar toda a sociedade, para que os racistas por ignor�ncia deixem de s�-lo."

A gera��o seguinte

Tanto Jesus Carlos, como Regina e Milt�o (como Milton Barbosa � mais conhecido), veem nas diversas organiza��es do movimento negro atual uma continuidade da luta do MNU.

"H� uma continuidade e uma diversifica��o. Com o MNU, surge um movimento social que vai fazer o enfrentamento mais direto. Mas muitas organiza��es surgem da�, e tamb�m outras formas de atua��o, como o advocacy [atua��o para influenciar a formula��o de pol�ticas e aloca��o de recursos p�blicos] e as ONGs, que fazem um outro papel. � importante essa diversidade e a capilaridade no combate ao racismo na sociedade", diz Regina.

Eliane Leite Alcantara Malteze, s�cia-fundadora da consultoria Uzoma Diversidade, Educa��o e Cultura, � parte dessa gera��o que pegou o bast�o do MNU no combate � discrimina��o.

Ela � filha de Antonio Leite, que em 1972 foi um dos fundadores do GTPLUN (Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universit�rios Negros) e em 1978 participou da funda��o do MNU.

"Meu pai era mineiro, nasceu em Muzambinho. Ele veio para S�o Paulo com a m�e e os cinco irm�os, todos analfabetos, com o sonho de todo jovem negro de ser jogador de futebol. Com pouca forma��o, ele foi trabalhar no Departamento de �guas e Esgoto de S�o Paulo, que depois vira a Sabesp, cavando buraco na rua", lembra Eliane.

Antonio Leite casou, teve tr�s filhas e foi estudar j� adulto. Fez Mobral (programa de alfabetiza��o de jovens e adultos extinto em 1985), Ensino Fundamental, M�dio e se formou em Ci�ncias Sociais. Estudando, ascendeu na carreira p�blica e depois teve empresas pr�prias.

Em 1972, ajudou a fundar o GTPLUN junto com a m�dica Iracema de Almeida (1925-2005), grupo que atuava na coloca��o de profissionais negros no mercado de trabalho. Em 1978, com a como��o pela morte de Robson Silveira da Luz, Leite se soma � manifesta��o nas escadarias do Teatro Municipal, pedindo o fim do racismo e da morte dos jovens negros.


Antonio Leite em manifestação do MNU em julho de 1978
Antonio Leite em 1972 foi um dos fundadores do GTPLUN (Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universit�rios Negros) e em 1978 participou da funda��o do MNU (foto: Jesus Carlos)

Seguindo a orienta��o do pai sobre a import�ncia de estudar, Eliane formou-se matem�tica e tornou-se professora e depois diretora de escola. Suas irm�s se formaram em Direito e Ci�ncias Cont�beis.

H� cerca de 15 anos, a filha de Antonio Leite come�ou a resgatar na sua pr�pria atua��o a trajet�ria do pai de combate ao racismo.

"Sentimos a necessidade voltar �s nossas origens e a essa hist�ria do meu pai, que sempre me empoderou. Ent�o retomo isso na Uzoma, para tratar da quest�o da falta de mulheres negras em espa�os de lideran�a no mundo corporativo."

A Uzoma presta consultoria a empresas para promo��o da diversidade, d� treinamento a lideran�as para a inclus�o e atua no processo de a��o afirmativa para contrata��o de pessoas negras, al�m de oferecer programas de desenvolvimento a jovens negros para que eles possam ocupar cargos de lideran�a.

"Uzoma significa 'siga o bom caminho'. Ent�o estamos seguindo o bom caminho da diversidade e resgatando essa hist�ria de quem veio antes da gente, como meu pai. Essa luta n�o � de hoje. Desde Zumbi, h� muitos outros que lutaram no combate ao racismo e estamos continuando essa luta, pois somos fortalecidos pela nossa hist�ria."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63746502


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