A imagem de uma pessoa subjugada, numa planta��o ou carvoaria isolada num dos rinc�es do estado � o que geralmente vem � mente quando se fala em trabalho an�logo � escravid�o. Contudo, a atividade perversa, que submete milhares de brasileiros a condi��es degradantes, n�o se restringe ao meio rural. S� neste ano, das 283 pessoas libertadas de alojamentos prec�rios e trabalhos for�ados, 122 (43%) estavam em centros urbanos como Belo Horizonte e Grande BH (66), S�o Paulo (38), Goi�nia (12) e Rio de Janeiro (6). Enquanto o Minist�rio do Trabalho e Emprego (MTE) investiga den�ncias em canteiros de obras e empresas de servi�os pesados, a reportagem do Estado de Minas mostra um novo esquema criado por empregadores e agenciadores da m�o de obra oriunda do interior e de outros estados para ludibriar a fiscaliza��o. Em vez de manter alojamentos pr�prios, os agenciadores agora terceirizam essa parte.
O Bairro Buritis, na Regi�o Oeste de BH, � um dos mais aquecidos mercados imobili�rios da capital mineira, o que fez dele um dos pontos com mais canteiros de obra em atividade. Entre as centenas de frentes de trabalho, h� oper�rios vindos de v�rios lugares do pa�s. O que muitos deles t�m em comum � o interm�dio de um agenciador que conseguiu servi�o para eles, de apelido “Gato Seco”. O nome dele e o apelido constam em pelo menos seis canteiros de obras fiscalizados nos �ltimos dois anos pelos agentes do MTE.
� primeira vista, Gato Seco parece um oper�rio comum: macac�o de pe�o, capacete de pl�stico amarelo, �culos escuros e um celular por meio do qual fala sem parar. Andando de uma obra para a outra, o homem de n�o mais de 40 anos concordou em contar como se d� hoje em dia o emprego de m�o de obra em condi��es an�logas �s de escravid�o, com a condi��o de n�o ter o nome revelado. “Antes, a gente tomava muita multa da fiscaliza��o, principalmente por causa dos alojamentos. Para seguir o que o MTE quer, ter�amos de fazer um hotel para os rapazes (trabalhadores)”, considera. “Ent�o, o que a gente faz � usar uma outra empresa. A gente fala que � uma empreiteira. Os trabalhadores dormem nos alojamentos deles, bem longe daqui. Comem por l�, tomam banho, bebem a cacha�a e fazem tudo quanto h� por l�”, conta o agenciador.
Ele admite que essa � a realidade atual. “Agora mesmo, nessa obra aqui, tenho 20 rapazes que trouxe de Bocaiuva (Norte de Minas). A empreiteira traz aqui, eles trabalham o dia inteiro e depois s�o levados de volta.” No caso de a fiscaliza��o aparecer, o esquema funciona para ludibriar as multas. “A empreiteira tem tempo de mudar as coisas deles para outro alojamento, juntar as carteiras de trabalho e o que mais precisar. Est� � faltando gente para trabalhar, porque servi�o tem demais. E, se n�o for assim, a gente n�o consegue mais pe�o”, resume o agenciador.
Resgate
Pelo Buritis n�o � dif�cil encontrar obras que mant�m oper�rios trazidos de outros lugares para condi��es subumanas de trabalho. Em s�rie de fiscaliza��es nos canteiros da JGR Engenharia e Servi�os, entre 24 de agosto e 20 de setembro, agentes do MTE resgataram 88 pessoas em condi��es an�logas � escravid�o. Foram 47 autos de infra��es lavrados em cinco canteiros, num total de R$ 198 mil em multas.
De acordo com o processo gerado pela fiscaliza��o, eram 42 baianos, 21 sergipanos, 24 norte-mineiros e um alagoano que trabalhavam sem condi��es adequadas de prote��o, sem registros de pontos e das carteiras de trabalho. Entre eles foram encontrados seis menores de idade “em local insalubre e perigoso”.
O alojamento da turma ficava nos subsolos ou por�es, o que � proibido. Camas, len��is, arm�rios e vasos sanit�rios estavam em desacordo com as regras trabalhistas, sem higiene e limpeza nas cozinhas e alojamentos. Faltava tamb�m �gua pot�vel, filtrada e fresca. As instala��es el�tricas estavam descobertas. No piso dos canteiros de obras havia v�rias pontas de vergalh�es de a�o desprotegidas e tamb�m aberturas nos pisos para transporte vertical de material sem guarda-corpos.
“Onde h� um pobre coitado procurando servi�o, tem sempre um gato por perto interessado em alici�-lo para a explora��o e o trabalho degradante”, afirma o frade Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo, da Comiss�o Pastoral da Terra (CPT). Ele associa o problema � baixa escolaridade e m�s condi��es de renda nas regi�es pobres do pa�s, como o Norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha. “O trabalho escravo � um fen�meno extremo de viola��o da dignidade e da liberdade. E isso traz preju�zos para a economia do pa�s. As viola��es de regras de mercado abrem a oportunidade de retalia��es de outros mercados por causa da competitividade desleal e de infra��es de direitos humanos”, alerta Plassat.
De acordo com o coordenador do grupo de combate ao trabalho escravo do Minist�rio do Trabalho e Emprego em Minas Gerais, Marcelo Gon�alves Campos, o manuten��o de pessoas em condi��es an�logas � escravid�o ainda � um tra�o cultural no Brasil que precisa ser combatido com vigor. “Percebemos que h� uma cultura do empregador de suprimir os direitos pelo lucro. A partir de 2003, a legisla��o trabalhista se aprimorou e hoje contamos com todos os instrumentos de governo, sejam pol�cias ou Minist�rio P�blico, para fiscalizar e coibir as pr�ticas an�logas � escravid�o", afirma. “As den�ncias dos trabalhadores, parentes e testemunhas, ainda s�o nossa melhor forma de informa��o”, disse.
Ferida dif�cil de cicatrizar
Bras�lia – Passados 125 anos da aprova��o da Lei �urea, os embates gerados na tramita��o da proposta mobilizam o Poder Legislativo at� hoje. Uma proposta de emenda � Constitui��o (PEC) que fortalece os instrumentos de combate � explora��o do trabalhador, apresentada h� 18 anos pelo deputado federal Paulo Rocha (PT-PA), tramita no Congresso sem avan�ar. Considerada uma segunda aboli��o, a PEC prop�e o confisco da terra onde for flagrada a pr�tica de condi��es de trabalho an�logas � escravid�o, com as �reas sendo destinadas � reforma agr�ria ou ao uso urbano. E esse ponto que trava a discus�o.
A PEC j� entrou e saiu da pauta do Congresso diversas vezes. Em 2004, a medida ganhou for�a, depois da grande como��o popular gerada pelo assassinato de tr�s auditores fiscais e de um motorista do Minist�rio do Trabalho e Emprego (MTE), que faziam uma fiscaliza��o no Noroeste de Minas Gerais. Os produtores rurais Ant�rio e Norberto M�nica, acusados de serem os mandantes do crime – que ficou conhecido como Chacina de Una�, em refer�ncia ao munic�pio onde os servidores foram assassinados –, ainda n�o foram julgados.
No ano passado, a proposta foi aprovada pela C�mara dos Deputados, mas voltou ao Senado Federal por causa de uma modifica��o no texto. No per�odo que antecedeu � aprova��o da emenda, a bancada ruralista, contr�ria � proposta, tentou esvaziar o debate, ao defender que a lei definisse exatamente os casos que pudessem ser caracterizados como trabalho escravo.
Com aval No m�s passado, o relator da PEC na Comiss�o de Constitui��o, Justi�a e Cidadania (CCJ) do Senado, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), deu parecer favor�vel ao texto da C�mara, sem altera��es. Na justificativa, o senador argumenta que, ao permitir o confisco do im�vel no qual for flagrado o trabalho an�logo � escravid�o, o pa�s dar� um sinal inequ�voco de que est� empenhado em acabar definitivamente com essa chaga, que fere n�o s� as leis trabalhistas, mas, acima de tudo, a dignidade das pessoas. Se aprovada na CCJ, a proposta seguir� ao plen�rio para ser votada em dois turnos.
Atualmente, o trabalho escravo – em linhas gerais, descrito como priva��o de liberdade para se desligar do patr�o – � considerado grave viola��o dos direitos humanos, crime previsto no Artigo 149 do C�digo Penal. Enquanto a discuss�o se arrasta no Congresso, o pa�s continua flagrando trabalhadores sendo explorados em condi��es an�logas � escravid�o. Na quinta-feira, oito pessoas foram libertadas de um s�tio em Castelo dos Sonhos, no munic�pio de Altamira, Sudoeste do Par�. De acordo com a den�ncia feita ao Ibama, o dono da fazenda, armado, fazia amea�a aos trabalhadores e os obrigava a fazer compras na pr�pria fazenda, caracterizando a escravid�o por d�vida, j� que os trabalhadores nunca conseguiam quitar as contas. Um litro de leite, por exemplo, era vendido por R$ 17.