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Estado de Minas ECONOMIA

Ana Primavesi, agr�noma que lan�ou bases da agroecologia no Pa�s, faria 100 anos


03/10/2020 09:00

A van estaciona no meio do canavial e, dentro dela, uma senhora aguarda que lhe tragam um punhado de terra. O portador traz o quinh�o e conta a respeito dos resultados de mais de duas d�cadas de trabalho naquela �rea: discorre sobre a textura e a umidade do solo - �ntegras, apesar da falta de chuva no interior paulista na ocasi�o -, seu cheiro, cor, microbiologia, classifica��o cient�fica...

A senhora olha a terra na m�o do sujeito, pega um pouco, avalia a textura e concorda, com um meneio de cabe�a, que era, de fato, um bom solo. Um solo vivo.

Essa situa��o ocorreu em 2012 e est� registrada em v�deo. Os personagens eram o maior produtor e exportador de a��car org�nico do Pa�s, Leontino Balbo, do Grupo Balbo e criador da marca Native, e a senhora, na �poca com 91 anos, uma de suas inspira��es na lida do campo: a engenheira agr�noma Ana Maria Primavesi, que faleceu em 5 de janeiro deste ano e completaria, no dia 3 de outubro, 100 anos.

Assim como Leontino Balbo, que cultiva 20 mil hectares de cana-de-a��car org�nica e certificada em Sert�ozinho, na regi�o de Ribeir�o Preto (SP), Primavesi contribuiu com milhares de outros produtores rurais no sentido de buscar uma agricultura limpa, sem uso de venenos ou adubos qu�micos, e com base em muita observa��o e na intera��o entre planta e solo - que, no caso dos tr�picos, deve ser vivo, ou seja, repleto de microrganismos que interagem com os minerais e vegetais, num fino equil�brio.

"A base da agricultura tropical � a riqueza de microrganismos no solo, que, ao contr�rio dos solos de clima temperado, � pobre de nutrientes, mas rico em vida", costumava ensinar a agr�noma. "E o que a agricultura convencional tem feito � justamente matar essa riqueza, tratando os microrganismos como pat�genos; eles n�o s�o pat�genos, s�o mobilizadores de nutrientes e a garantia de fertilidade", arrematava. "Solo saud�vel, planta saud�vel, ser humano e animais saud�veis", era outro de seus mantras.

Pode-se dizer, sem exagero, que, se alimentos org�nicos multiplicam-se hoje nas prateleiras dos supermercados, nas feiras livres, lojas de produtos naturais, deliveries e sacol�es, essa engenheira agr�noma nascida na �ustria e radicada no Brasil por mais de 60 anos teve tudo a ver com isso.

Foi ela quem lan�ou as bases da agroecologia em solos tropicais, h� 41 anos, ao publicar seu livro "Manejo ecol�gico do solo", um manual que traduz a ci�ncia da vida contida na terra para que o agricultor a aplique na pr�tica e at� hoje � livro de cabeceira para uma infinidade deles. "� uma obra muito importante porque chama a aten��o para alguns aspectos da agronomia e da agricultura que a ci�ncia acad�mica convencional insistia, naquela �poca, em ignorar", conta ao Estad�o Leontino Balbo, que se formou em agronomia em 1984, na Unesp de Jaboticabal.

Sobre a visita de oito anos atr�s aos canaviais da Usina S�o Francisco, em Sert�ozinho (SP), Balbo lembra que Primavesi "n�o era de conversa fiada". "N�o estava nem a� se a elogiavam ou admiravam. Estava � preocupada se os seus conhecimentos estavam sendo aplicados ou n�o", continua. "Eu provei a ela que sim e ainda disse que, para mim, essas pr�ticas eram o futuro da agricultura."

Ao citar v�rios outros pesquisadores que tamb�m foram importantes para seu trabalho de recupera��o do solo, como Vladimir Vernadsky, Rudolf Steiner, Darwin, Goethe e Justus von Liebig, o produtor de cana org�nica diz que, "conceitualmente", foi fundamentalmente inspirado por eles. "Mas, no campo pr�tico, foi a Primavesi; meu exemplar de Manejo Ecol�gico do Solo est� at� desgastado de tanto que eu consulto."

"Foi a primeira, e talvez �nica vez, que eu vi um livro de agricultura se tornar best seller", confirma a pesquisadora especializada em ci�ncia de solos Maria Leonor Lopes Assad, professora aposentada do Centro de Ci�ncias Agr�rias da Universidade Federal de S�o Carlos (UFSCar), que participou da cria��o do programa de agroecologia da universidade.

A cientista acredita que o sucesso do livro, al�m da car�ncia de informa��es sistematizadas sobre agroecologia tropical na �poca, ocorreu porque Ana Primavesi "foi a primeira a falar de uma forma aberta e simples e que muitos entendiam". "Seu grande m�rito foi apresentar de forma simples conhecimentos que s�o as aulas n�mero 1, 2 e 3 de manejo e conserva��o do solo na academia."

"Ela era muito combativa", continua Maria Leonor. "Lembro de um documento preparado por um renomado professor da Esalq-USP, que leu o livro de Primavesi da primeira � �ltima p�gina e detectou v�rios equ�vocos; alguns v�lidos, outros n�o", continua a pesquisadora. "Mas os poss�veis equ�vocos n�o invalidam a import�ncia do livro e do trabalho dela", diz, acrescentando que o objetivo da engenheira agr�noma sempre foi mostrar que o tipo de agricultura que at� hoje se pratica contribui para causar doen�as no solo, nas plantas e nos animais, concentra terras e empobrece n�o s� o solo, mas tamb�m o agricultor, "tornando-o cada vez mais dependente da ind�stria de adubos qu�micos sint�ticos e dos agrot�xicos".

Por antever essa situa��o, principalmente o empobrecimento dos solos nos tr�picos, Maria Leonor classifica Ana Primavesi como "um �cone, um marco, no sentido de se contestar a agricultura convencional". "E agora podemos comemorar os 100 anos de Ana Primavesi tendo o orgulho de ver que ela foi uma pioneira."

Leontino Balbo acrescenta que o trabalho de Ana Primavesi lhe chamou a aten��o porque se baseia em quatro pilares: a import�ncia da bioestrutura do solo, a intera��o radicular da planta com a vida animal do solo - "Eu usei muito isso no meu trabalho", diz -; a import�ncia da manuten��o de mat�ria org�nica no solo e os benef�cios dos adubos verdes, "que s�o muitos".

Tamb�m entre produtores familiares e assentados da reforma agr�ria, Ana Primavesi � refer�ncia. No Movimento dos Sem-Terra (MST), que se tornou o maior produtor de arroz org�nico do Pa�s, com 15 mil toneladas colhidas na �ltima safra, engenheiros agr�nomos e t�cnicos agr�colas repassam diariamente aos produtores os seus ensinamentos, diz o agricultor e t�cnico agropecu�rio do MST Jos� Maria Tardin. Ele afirma ao Estad�o que, � medida que se estuda agroecologia, "n�o tem como n�o se deparar com Ana Primavesi". "Tanto ela quanto seu marido, Artur Primavesi, fizeram pesquisas fundamentais para qualquer tipo de agricultura que pretenda ser de base ecol�gica."

Atualmente, Tardin promove a agroecologia em cursos para as fam�lias assentadas e acampadas e ensinando e capacitando t�cnicos agr�colas por meio do Setor de Produ��o, Coopera��o e Meio Ambiente do MST. Tamb�m na Am�rica Latina, por meio da Via Campesina, apoia a cria��o de cursos e escolas t�cnicas de agricultura - sempre tendo como base a agroecologia.

Tardin conta que conviveu em v�rias oportunidades com Ana Primavesi, a partir de 2002, quando o MST realizou o primeiro Encontro da Jornada Estadual de Agroecologia, no Paran�. "Ela teve uma atua��o militante pela agricultura ecol�gica, deslocando-se pelo Brasil e pela Am�rica Latina dando cursos, palestras, fazendo atividades de campo e formando estudantes de ci�ncias agr�rias em processos aut�nomos, fora da universidade", lembra Tardin.

No meio acad�mico, al�m de ter se formado em 1942, com mestrado em Agronomia na �ustria, Ana Primavesi lecionou por 12 anos na Universidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, entre 1962 e 1974, onde tamb�m realizou pesquisas sobre biologia no solo, juntamente com seu marido, Artur, que fundou o Instituto de Solos e Culturas no c�mpus ga�cho. "Nas aulas nos assentamentos, ela n�o fazia quest�o de exibir conceitos complexos, a n�o ser que as pessoas pedissem", lembra Tardin, que tamb�m teve a oportunidade de promover cursos com Ana Primavesi na Escola Latino-Americana de Agroecologia, no Assentamento Contestado, no munic�pio paranaense de Lapa.

"Ela n�o tinha essa emp�fia academicista, de falar termos rebuscados; mas se algu�m porventura dissesse que queria entender mais conceitualmente, ela desenvolvia o pensamento", continua. "Desde que come�aram os grandes encontros de agroecologia, a partir dos anos 1990, ela n�o falhava em um."

Nos contatos diretos com agricultores, Tardin conta que Ana Primavesi sempre recomendava "olhar o solo". "Ela dizia que a gente tinha que �conversar� com a terra, cheirar, sentir com as m�os, ficar atento � sua apar�ncia, consist�ncia, e, a partir da�, come�ar a entender o que se passa com o ambiente no entorno e as plantas", lembra. "No caso das plantas, ensinava a observar as ra�zes, as folhas, para detectar o que poderia estar faltando de nutrientes; era sempre um ensinamento bastante pr�tico e efetivo."

E nunca se furtava a responder a qualquer pergunta, de um jeito "muito humano e sens�vel, o que atra�a bastante as pessoas em torno dela", afirma. Para Tardin, os conhecimentos transmitidos por Ana Primavesi aos assentados, agr�nomos e t�cnicos agr�colas "criou no MST uma capacidade cada vez maior e melhor de fazer a passagem da agricultura de base industrial, qu�mica e sint�tica para uma agricultura agroecol�gica". "Tanto que a partir dos anos 2000 o MST come�ou a adotar a agroecologia como pol�tica e passou a converter grandes �reas para esse sistema de cultivo."

Ele informa que, atualmente, pelo menos 50 mil fam�lias ligadas ao MST, em 24 Estados, adotaram cultivos agroecol�gicos.

O tamb�m agr�nomo e presidente do Instituto Brasil Org�nico (IBO), Rog�rio Dias, conta que quando Ana Primavesi lan�ou seu livro sobre manejo ecol�gico do solo "pouco se falava em perda de biodiversidade no Pa�s". "Ouv�amos sobre ecologia nos meios urbanos, n�o no meio rural", observa. "E a dra. Ana j� falava disso."

Como presidente do IBO, Dias conta que, atualmente, � clara a busca de v�rios produtores convencionais por m�todos mais sustent�veis de produ��o. "S�o agricultores que percebem a �fal�ncia� do pacote qu�mico, em termos de gastos excessivos com insumos e tamb�m de problemas de sa�de, al�m da percep��o da maior consci�ncia da popula��o em rela��o � preserva��o ambiental."

Ele comenta, por�m, que, mesmo entre produtores interessados em fazer a transi��o agroecol�gica, h� aqueles que querem um "pacote pronto". "Infelizmente, ainda tem gente no movimento org�nico que est� na l�gica do �pacote�, que � como funciona a agricultura convencional, com o pacote adubo qu�mico-sementes transg�nicas-agrot�xicos", lamenta. "Mas, quando eles percebem que t�m de ter uma vis�o sist�mica, inevitavelmente se deparam com a Primavesi."

Para Dias, que mant�m um cultivo org�nico nos arredores de Bras�lia, "sempre foi claro" que, como Ana Primavesi preconizava, "tudo come�a com o solo". "O solo sempre foi minha obsess�o; nunca pude ver um solo descoberto, exposto", continua. "Isso � uma coisa que tem de ser trabalhada o tempo todo, para que o solo possa estar cada vez mais vivo, e hoje vejo resultados fant�sticos."

Sob esse aspecto, um dos principais ensinamentos da agr�noma Primavesi era que uma planta necessita de pelo menos 45 tipos de nutrientes para crescer saud�vel e conseguir, paralelamente, criar defesas naturais contra pragas e doen�as. E a agricultura convencional trabalha com apenas tr�s macronutrientes (nitrog�nio, f�sforo e pot�ssio) e poucos micronutrientes, como zinco, cobre, ferro, mangan�s molibd�nio, boro e cloro. J� na agroecologia e com um solo vivo, a riqueza de nutrientes garantida pelo solo nutre a planta - e, consequentemente, os seres humanos.

Dias avalia que, com todos esses ensinamentos, "cada dia mais atuais", Ana Primavesi "influenciou gera��es". "Ela teve a capacidade de falar para v�rias gera��es; seus ensinamentos n�o foram ficando para tr�s, pelo contr�rio. Cada vez mais estamos tendo provas cient�ficas de que tudo aquilo que ela preconizava, as rela��es entre microrganismos no solo e a sa�de das plantas, al�m da sustentabilidade dos cultivos, era verdade."

Quanto � agricultura convencional, Dias acha que aos poucos "ela vai se render" a processos mais sustent�veis e que garantam a fertilidade de fato do solo. "V�rios produtores est�o se voltando a isso porque n�o t�m mais para onde correr", observa.

Na Embrapa Cerrados, em Bras�lia, por exemplo, uma tecnologia desenvolvida ali traria uma imensa satisfa��o a Ana Primavesi, acredita a pesquisadora Ieda Mendes, especializada em microbiologia do solo. "N�s desenvolvemos uma an�lise alternativa da qualidade do solo, que mede o n�vel de vida por meio de duas enzimas", explica ela, acrescentando que a an�lise convencional de solo baseia-se apenas na sua composi��o qu�mica, e n�o biol�gica. "� uma vis�o que n�o vai muito al�m do excesso ou defici�ncia de nutrientes", comenta, adicionando que a bioan�lise do solo vai de encontro com o que Ana Primavesi pregava, de se observar a import�ncia da vida microbiol�gica como condicionante da fertilidade.

"� uma pena que a dra. Ana n�o esteja mais aqui para ver esse tipo de an�lise sistematizada, que virou realidade", diz Ieda. "Agora podemos oferecer aos agricultores, em maior escala, tudo o que ela ensinava e fazia empiricamente." A pesquisadora explica que, com a ferramenta, � poss�vel constatar a "sa�de" do solo. "Seria uma honra apresentar a tecnologia para ela."

O jatob� �reencarnado�
Em um s�tio agroecol�gico em Amparo (SP) h� um canteiro com quatro jatob�s que n�o s�o "quaisquer jatob�s". Suas mudas foram feitas pela pr�pria Ana Primavesi e dadas de presente aos convidados de seu anivers�rio de 95 anos. No S�tio Duas Cachoeiras, que hoje abriga o Jardim Bot�nico Ararib�, o produtor agroecol�gico e educador ambiental Guaraci Diniz reservou um local para formar o "Bosque Ana Primavesi" e ali plantar essas �rvores, uma das esp�cies preferidas da engenheira agr�noma, por suas propriedades medicinais - ela tamb�m detinha conhecimento em fitoter�picos.

Diniz conta que, al�m do seu jatob�, recebeu, como doa��o, outros tr�s, de outros convidados � festa de Ana Primavesi, para formar o bosque t�o especial.

Assim como muitos outros agricultores, leu "at� gastar" os v�rios livros de Ana Primavesi sobre

agroecologia - s�o pelo menos dez j� publicados, al�m do Manejo Ecol�gico do Solo. "Quando eu vim morar no s�tio, o solo estava bastante degradado", conta. Entretanto, a ideia n�o era fazer uma agricultura � base de adubos qu�micos e agrot�xicos. "Comecei a pesquisar, fui tomando conhecimento de v�rias t�cnicas de agricultura sustent�vel, como permacultura, depois a agricultura natural de Mokiti Okada... Com a funda��o da Associa��o de Agricultura Org�nica (AAO) - do qual Ana Primavesi � a membro n�mero 1 -, tomei conhecimento do trabalho dela", conta Diniz, que passou a aplicar os seus conceitos.

Hoje, Guaraci recuperou o solo do s�tio, de 36 hectares e, de quebra, reflorestou a �rea com esp�cies nativas ao longo de mais de 30 anos, instituindo ali a Reserva Particular do Patrim�nio Natural (RPPN) Duas Cachoeiras e, mais recentemente, o Jardim Bot�nico Ararib� (JBA).

"Primavesi nos ensinou a forma de trabalhar, de fazer compostagem, de perceber quais eram as plantas companheiras e as que n�o s�o, al�m das indicadoras de solos, que, ao crescerem em determinadas �reas, mostram o que pode estar ocorrendo naquele lugar em termos de nutrientes ou acidez."

Sob esse aspecto, ele conta que aliar o trabalho do solo com o ciclo das plantas, como ensinava Ana Primavesi, fez com que ele visse as plantas "n�o como inimigas ou pragas, mas sim como elas funcionam no ecossistema e o que indicam ao crescer ali".

"O sap�, por exemplo, cresce em �reas �cidas, com pH 5 a 5,5, e a 'm�e do sap�', em solos mais �cidos ainda", explica. "Para contornar essa quest�o, a receita de Ana Primavesi era trabalhar com aduba��o verde, fazendo um �colch�o vegetal� sobre o solo, beneficiando o surgimento de microrganismos que decomp�em a palhada, num ciclo ben�fico, entre v�rias outras t�cnicas agroecol�gicas", diz. "Com isso, vai surgindo outra microvida, e o solo vai se recuperando."


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