
Ao longo dos 10 meses de pandemia, a favela de Parais�polis, na Zona Sul de S�o Paulo, contou com doa��es de cerca de 8 mil pessoas para manter um sistema de distribui��o de marmitas, cestas b�sicas, kits de higiene e acompanhamento comunit�rio de sa�de para sua popula��o de mais de 100 mil habitantes — maior que 94% dos munic�pios brasileiros.
Nos �ltimos meses, no entanto, as doa��es praticamente pararam.
"Em dezembro, m�s de Natal, tivemos 24 pessoas que doaram pequenos valores, enquanto temos um custo de R$ 59 mil por m�s somente para manter ambul�ncia e equipe m�dica", conta Gilson Rodrigues, presidente da Uni�o dos Moradores e do Com�rcio de Parais�polis.
"Faz�amos 10 mil marmitas por dia. Depois tivemos que diminuir para manter. At� dezembro, faz�amos 5 mil por dia. Agora, come�amos o ano entregando 500 marmitas por dia. Tem dia que a comida acaba, e a fila continua. E eu sei que essa fila vai aumentar, porque o desemprego est� crescendo e a fome, aumentando", diz o l�der comunit�rio.
Diante desse cen�rio, que se repete em outras comunidades do pa�s, o G10 Favelas — grupo formado por Rocinha (RJ), Rio das Pedras (RJ), Heli�polis (SP), Parais�polis (SP), Cidade de Deus (AM), Baixadas da Condor (PA), Baixadas da Estrada Nova Jurunas (PA), Casa Amarela (PE), Coroadinho (MA) e Sol Nascente (DF) — decidiu retomar um projeto antigo.
O grupo das 10 maiores favelas do Brasil planeja lan�ar no pr�ximo m�s o G10 Bank, um banco comunit�rio que ter� entre suas fun��es oferecer microcr�dito aos empreendedores de favela, com parte de sua capta��o de recursos e gera��o de lucro revertida para a manuten��o financeira da estrutura de assist�ncia social criada nas comunidades em resposta � pandemia.

'O primeiro unic�rnio da favela'
"Nossa vontade � criar o primeiro 'unic�rnio' da favela", diz Rodrigues, mencionando a express�o usada no mercado financeiro para se referir a startups avaliadas em mais de US$ 1 bilh�o (R$ 5,26 bilh�es).
"J� h� algum tempo, n�s temos percebido que a favela tem crescido pelas m�os dos seus pr�prios moradores, principalmente aqueles que sonharam empreender", afirma o l�der comunit�rio, citando pesquisa realizada em 2015 que mostrou de 40% dos moradores de comunidades t�m o desejo de ter o pr�prio neg�cio.

Um estudo realizado pela empresa Outdoor Social, divulgado em 2019, apontou que, somente em Parais�polis, o consumo movimenta R$ 706 milh�es, valor que chega a R$ 7 bilh�es considerando os montantes movimentados nas dez maiores favelas do pa�s.
"As pessoas est�o acostumadas a ver uma favela carente, violenta, cheia de problemas. N�s queremos mostrar com o G10 uma favela potente, organizada, mobilizada, agente da sua pr�pria transforma��o."
Mas a� veio a pandemia
Com a chegada da pandemia do novo coronav�rus no ano passado, alguns dos planos do grupo tiveram que ser deixados de lado. Mas as lideran�as das 10 favelas conseguiram elaborar um modelo de a��o, replicado em 300 comunidades de 14 estados, diz o presidente da uni�o de moradores.
Com o nome de "Comit�s das Favelas — Presidentes de Rua", o plano envolve um morador volunt�rio respons�vel por acompanhar cada 50 casas de uma comunidade.
"Com essa rede, conseguimos distribuir em todo o Brasil mais de 700 mil cestas b�sicas, quase 1,5 milh�o de m�scaras produzidas por mulheres costureiras dentro das favelas, mais de 1 milh�o de marmitas e criamos casas de acolhimento, transformando escolas em espa�os para isolar pessoas testadas positivas", conta Rodrigues.

A partir de setembro, no entanto, com o discurso de retomada da economia e de um "novo normal", as doa��es para manter essa estrutura come�aram a minguar.
"Come�amos ent�o a pensar em iniciativas que possam ser sustent�veis, para manter essa estrutura em uma segunda fase da crise, j� que a perspectiva � de que a emerg�ncia sanit�ria v� se estender por mais tempo, at� que efetivamente chegue a vacina, o que n�s acreditamos que deve demorar mais para o nosso p�blico, j� que tradicionalmente somos exclu�dos e marginalizados", afirma.
Retomando um projeto antigo
Diante desse cen�rio, o presidente da associa��o de moradores decidiu retomar um projeto antigo, de criar um banco comunit�rio. Em 2018, a BBC News Brasil j� havia noticiado que Parais�polis tinha planos de criar um banco e uma moeda pr�pria administrados por seus moradores.
"Tentativas anteriores n�o foram para frente porque nos conectamos com parceiros da �rea financeira que n�o queriam que tiv�ssemos um banco pr�prio. Queriam apenas explorar o mercado, oferecendo muito pouco retorno para a comunidade e sem um prop�sito social", avalia Rodrigues.
"Nossa ideia ent�o � tirar os 'atravessadores', porque as grandes transforma��es que v�o acontecer na favela v�o partir dos pr�prios favelados. Por isso decidimos criar o G10 Bank, que n�o ser� um banco s� de Parais�polis, mas um banco da favela."
Segundo o l�der comunit�rio, j� foi aberta uma empresa de cr�dito e a ideia � oferecer aos empreendedores, al�m de financiamento, mentoria e apoio na forma��o, com acompanhamento desses pequenos empres�rios pela rede de "presidentes de rua".
Parceiros investidores e conselho de not�veis

O plano � oferecer ainda servi�o de maquininha de cart�o, cart�o de d�bito e servi�os como seguros, atrav�s de parcerias com outras empresas. A associa��o de moradores tamb�m est� conversando com companhias de cart�o-benef�cio para que doa��es de cestas b�sicas possam ser feitas atrav�s de cart�es, numa divis�o que deve se chamar G10 Bank Benef�cios.
"Isso d� autonomia para que as pessoas possam comprar direto no mercado local, fazendo girar a economia", diz Rodrigues.
A capta��o de recursos para a oferta de cr�dito dever� vir de parceiros investidores, que, segundo o l�der comunit�rio, preferem manter o anonimato. O banco tamb�m contar� com um conselho de "not�veis" formado por empres�rios, economistas e profissionais do mercado financeiro.
Pelo desenho do projeto, 33% dos lucros da nova institui��o financeira ser�o devolvidos para programas sociais das favelas. E os investidores que se comprometerem a apoiar a iniciativa tamb�m doar�o 33% dos recursos aportados para os trabalhos do Instituto G10 Favelas.
Segundo o l�der comunit�rio, uma rodada inicial de capta��o j� garantiu R$ 1,8 milh�o para dar o pontap� inicial ao projeto e, quando o banco for oficialmente lan�ado, a ideia � abrir para que novos investidores possam participar.
Garantia solid�ria
Antes executivo da �rea de microcr�dito do banco Santander e atualmente consultor da Avante Microfinan�as, Jer�nimo Ramos est� assessorando o G10 na cria��o do novo banco.
Conforme o especialista em microcr�dito, a iniciativa mira os cerca de 45 milh�es de brasileiros hoje desbancarizados. "Sem acesso a cr�dito, milh�es de empreendedores brasileiros vivem atualmente � margem, sendo explorados por um sistema financeiro informal, que s�o os agiotas", diz Ramos.
Segundo ele, a ideia � que os empr�stimos tenham um teto de cerca de R$ 10 mil a R$ 15 mil, para que os recursos possam chegar a uma base ampla de pessoas. A expectativa � oferecer a taxa de juros mais baixa poss�vel, mas que permita � opera��o ser sustent�vel.

"O projeto n�o � dar dinheiro, � investir com algum retorno, para que essa opera��o do G10 Bank seja sustent�vel", afirma o executivo.
Quanto ao sistema de garantias, Ramos explica que haver� uma linha de cr�dito individual, voltada para empreendedores com alguma robustez na sua atividade econ�mica, e outra linha direcionada para grupos de empreendedores que prestar�o uns aos outros um "aval solid�rio".
"Num grupo de tr�s ou quatro pessoas, se uma delas se tornar inadimplente, os demais membros do grupo garantem esse aval", explica Ramos, acrescentando que o sistema � inspirado no modelo criado pelo economista e vencedor do pr�mio Nobel Muhammad Yunus, considerado o "pai do microcr�dito", pelo projeto desenvolvido
por ele em Bangladesh.
Inspira��o do G10 Bank, Banco Palmas completa 23 anos
Segundo Joaquim Melo, fundador do Banco Palmas e presidente da Rede Brasileira de Bancos Comunit�rios, o pa�s conta atualmente com 118 bancos comunit�rios, com 140 mil usu�rios cadastrados e 8,5 mil com�rcios credenciados.
Iniciativa pioneira no Brasil e fonte de inspira��o para o novo G10 Bank, o Banco Palmas foi criado em janeiro de 1998 no Conjunto Palmeiras, bairro da periferia de Fortaleza, no Cear�.
"O bairro surge em 1973, a partir de v�timas de despejo na �poca da ditadura militar. A prefeitura foi urbanizar a praia de Iracema, na beira-mar de Fortaleza, n�s �ramos pescadores e fomos trazidos todos para c�, um espa�o em que n�o tinha nada, s� mato e lama."
Melo conta que, ao longo de 20 anos, o bairro foi sendo urbanizado atrav�s de mutir�es comunit�rios. Com isso, em meados da d�cada de 1990, as pessoas mais pobres come�aram a vender suas casas e partir para outras favelas mais distantes.
"Avaliamos ent�o que, se come��ssemos a produzir e consumir de n�s mesmos, conseguir�amos gerar trabalho e renda. A� surgiu a ideia de criar o banco e um dinheiro pr�prio, para estimular as pessoas a comprarem localmente. Assim surgiu a moeda Palmas e formamos um fundo de cr�dito a partir de doa��es, que emprestava para quem quisesse produzir e consumir na pr�pria comunidade. Com isso, foram surgindo diversas empresas locais."
Conforme Melo, a pandemia tem sido muito dif�cil para esses pequenos neg�cios, com muitos deles indo � fal�ncia. "Hoje estamos digitalizados e nosso desafio � aumentar a oferta de cr�dito, temos R$ 3 milh�es em carteira, o que � muito pouco. No passado, j� chegamos a operar R$ 15 milh�es ao ano", lembra.
O fundador do Banco Palmas v� com entusiasmo a cria��o do G10 Bank. "Acho maravilho, quanto mais modalidades surgirem, melhor. � isso que chamamos de 'ecologia monet�ria'", diz Melo.
"Precisamos democratizar o sistema financeiro brasileiro. Quanto mais bancos comunit�rios, quanto mais fintechs locais existirem, melhor ser�."
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