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Estado de Minas AUMENTO DA POBREZA

Crise leva tr�s gera��es da mesma fam�lia para as ruas de S�o Paulo

Sem trabalho e sem dinheiro para o aluguel, fam�lias com beb�s est�o vivendo nas ruas pr�ximas � rodovi�ria do Tiet�, a maior da Am�rica Latina, em S�o Paulo. � o caso da fam�lia de Tatiane Silveira, que vive com a m�e e a filha em uma barraca embaixo de um viaduto da regi�o.


26/01/2022 06:36 - atualizado 26/01/2022 10:29


Bonecas, livro, tênis, colher, roupas e outros objetos jogados em chão embaixo de viaduto da zona norte de SP
Segundo a prefeitura, 3% da popula��o de rua de S�o Paulo s�o pessoas de 0 a 17 anos de idade (foto: BBC)

O c�u paulistano anunciava um temporal enquanto Caroline Silveira, 24, passava entre os carros parados em um farol da avenida Cruzeiro do Sul, em Santana, zona norte da cidade para "manguear". Na barraca na cal�ada, entre trov�es e buzinas, dormia uma de suas duas filhas, uma menina de um ano e nove meses.

Caroline explica que "manguear" � pedir dinheiro, emprego, comida, leite, fraldas, brinquedos, roupas, ou qualquer aux�lio que possa amenizar um pouco a dureza que � viver nas ruas de S�o Paulo. Como ela, ali na frente da Rodovi�ria do Tiet�, a maior da Am�rica Latina, dezenas de pessoas - incluindo beb�s - sobrevivem principalmente do verbo manguear.

No caso da fam�lia de Caroline, s�o tr�s gera��es de mulheres sob a mesma barraca embaixo do viaduto por onde passa o metr�: ela, suas duas filhas pequenas, e sua m�e, Sulamita Baptista, 42, gr�vida de oito meses. "Para n�o fazer uma coisa errada, tirar dos outros, a gente prefere manguear", diz, quando o farol ficou verde.

As quatro mulheres foram para a rua h� pouco mais de um ano, depois que Caroline e a m�e perderam seus empregos - os pais das crian�as tamb�m est�o parados, e dependem de bicos espor�dicos. Sem dinheiro para o aluguel, a fam�lia foi despejada da casa onde vivia. Em Santana, a loca��o de um apartamento em um conjunto habitacional fica pr�ximo de R$ 1 mil.

Caroline era faxineira em eventos na zona norte, principalmente no centro de conven��es do Anhembi, mas a pandemia interrompeu os trabalhos. J� Sulamita, que migrou do Recife h� 12 anos, produzia adere�os e fantasias em uma escola de samba, mas ficou sem servi�o quando o Carnaval foi cancelado.

"A gente vive de pegar marmita e pedir no farol. Todo dia um pessoal vem aqui e doa comida", explica Sulamita, que ajuda a cuidar das netas pequenas e espera o parto de seu terceiro filho para 8 de fevereiro. Ela tem feito acompanhamento m�dico em uma Unidade B�sica de Sa�de (UBS) da regi�o e, quando o beb� nascer, pretende morar por uns tempos na casa de um parente que prometeu ajuda. A filha e as netas, por�m, devem continuar na rua.

A fam�lia recebe R$ 400 do Aux�lio Brasil, programa do governo Jair Bolsonaro (PL) que substituiu o Bolsa Fam�lia, mas o valor n�o d� conta de sanar as necessidades do cotidiano, ainda mais com duas crian�as pequenas e uma mulher gr�vida. "Onde a gente consegue morar com R$ 400 em S�o Paulo? A gente gasta quase tudo em leite e fraldas. Um quilo de carne est� R$ 40. O g�s custa R$ 100", diz Sulamita.

A situa��o da fam�lia retrata a crise econ�mica sob o governo Bolsonaro e agravada pela pandemia: aumento de desemprego e da infla��o, milhares de despejos e crescimento da fome. O pa�s soma 12,9 milh�es de desempregados, e o pre�o dos alimentos acumula alta de mais de 14,66% nos �ltimos 12 meses, segundo o IBGE.


Caroline Silveira e sua filha mais nova, no colo, em meio a carros
Caroline Silveira e sua filha mais nova, de 1 ano e 9 meses, vivem embaixo do viaduto do metr� na zona norte de SP (foto: BBC)

Embora existam decis�es judiciais impedindo a remo��o for�ada de fam�lias na pandemia, os despejos tamb�m cresceram nos dois �ltimos anos. De agosto de 2020 at� novembro do ano passado, 23,5 mil fam�lias foram despejadas no Brasil, segundo um levantamento da campanha Despejo Zero, lan�ada por organiza��es e movimentos sociais. O pa�s somava 123,2 mil fam�lias amea�adas de retirada for�ada de seus domic�lios em outubro do ano passado, um crescimento de 32% em rela��o ao levantamento anterior, de agosto.

"Se voc� n�o tem endere�o fixo, dificilmente algu�m te d� um emprego", diz Caroline, que passa parte do dia "mangueando" para conseguir alimentar as filhas. "Meu sonho mesmo � ter uma casa, um lugar para ficar. Deixar as meninas na creche e procurar um emprego..."

Suas duas filhas foram inscritas em uma creche da regi�o h� poucas semanas, diz, mas a fam�lia ainda aguarda ser chamada pela prefeitura. J� sua m�e, Sulamita, sonha com um futuro melhor para o beb� que vai nascer em poucos dias. "Minhas netas j� se acostumaram � rua. N�o vai acontecer com meu filho tamb�m. S� quero um lugar para ficar, ningu�m merece a rua", diz.

'A rua � sem futuro'

Nas proximidades da rodovi�ria do Tiet�, a reportagem encontrou dezenas de pessoas em situa��o parecida: despejadas, sem emprego e renda fixa, vivem em barracas em canteiros e pra�as. Pararam ali por causa do fluxo intenso de pessoas que entram e saem da rodovi�ria, oportunidade de conseguir mais doa��es.

Boa parte fica embaixo do elevado por onde passa a linha 3-azul do metr�, em frente � entrada principal do terminal rodovi�rio. As grandes pilastras desse viaduto, pintadas com grafites, j� fizeram parte de um projeto do poder p�blico e de artistas de transformar a �rea em uma esp�cie de museu da arte de rua paulistana. Por�m, hoje as obras est�o sujas e degradadas, al�m do mato e lixo acumulado. Quem vive por ali precisa conviver com grandes goteiras e po�as d'�gua que se formam quando chove forte.

Uma dessas fam�lias � a de Tatiane dos Santos, 37, e Marcio Freire, 42. O casal tem um filho de um ano e oito meses, que vive com eles em uma pequena barraca.

Eles s�o de Francisco Morato, cidade da Grande S�o Paulo. L�, pagavam R$ 600 de aluguel at� serem despejados. Sem servi�o, migraram para as ruas da zona norte h� quatro meses.

"Em Francisco Morato a gente podia fome, sem dinheiro. L� quase n�o tem assist�ncia, ningu�m ajuda. Aqui sempre tem algu�m pra doar uma marmita, um alimento", diz Tatiane, que j� foi cozinheira e vendedora. Com o filho pequeno e sem endere�o fixo, est� desempregada h� quase dois anos. Recebe R$ 400 do Aux�lio Brasil, mas o valor � consumido com as despesas b�sicas do filho, como fraudas e leite.

Seu companheiro, Marcio, n�o consegue servi�o fixo como vigilante h� mais de um ano - de vez em quando consegue pequenos bicos nas ruas. "A rua � sem futuro, mas � o que tem pra gente. Sempre ouvi que as pessoas que moravam na rua eram 'vagabundas', drogados. Hoje s�o fam�lias inteiras, crian�as, beb�s", diz ele.

O casal afirma ter dificuldade para conseguir uma vaga em centros de acolhida da prefeitura. "Nunca tem vaga pra mulheres e crian�as", diz Tatiane.

A poucos metros dali, na avenida Zaki Narchi, h� um abrigo municipal, mas o espa�o s� recebe homens. A reportagem tentou visitar o local na tarde do dia 13/1, mas funcion�rios de uma empresa terceirizada que administra o ponto impediram a entrada, alegando ser necess�ria autoriza��o pr�via da prefeitura.

Acolhimento


3 barracas em frente a uma pilastra de viaduto
Cerca de 31 mil pessoas vivem nas ruas de S�o Paulo, segundo censo da prefeitura (foto: BBC)

O acolhimento falho a fam�lias desabrigadas � um dos atuais gargalos da pol�tica de assist�ncia � popula��o em situa��o de rua em S�o Paulo, segundo Renata Bichir, professora da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metr�pole (CEM).

"Existem pouqu�ssimas op��es de abrigo para fam�lias e mulheres com filhos. Muitas vezes, as mulheres precisam sair para procurar emprego, mas n�o t�m com quem deixar as crian�as, porque alguns abrigos n�o permitem que elas fiquem. Acabam deixando com colegas, em uma rela��o informal", diz.

Para Bichir, o poder p�blico n�o acompanhou a recente mudan�a de perfil dessa popula��o. "Os equipamentos sempre foram voltados para homens, mas muitas mulheres e fam�lias foram viver na rua recentemente, e o servi�o n�o melhorou", explica. "Era muito dif�cil encontrar crian�as nas ruas de S�o Paulo. Mas com a crise econ�mica, a alta da infla��o e o desemprego entramos de novo nesse buraco", diz.

A gest�o do prefeito Ricardo Nunes (MDB) informou que a cidade tem 18 centros de acolhida exclusivos para mulheres, totalizando 986 vagas - 50 delas para gestantes, m�es e beb�s. J� para homens existem 11.692 vagas - outras 1.569 n�o t�m predefini��o de g�nero e s�o destinadas �s fam�lias que necessitam de acolhimento, diz a prefeitura.

Tamb�m afirma que todos os dias agentes abordam adultos, crian�as e adolescentes em situa��o de vulnerabilidade social na regi�o da rodovi�ria, "oferecendo apoio e encaminhamento para os centros de acolhidas, inclusive, orientando-os com rela��o a inscri��es em programas de assist�ncia".


Malas abandonadas embaixo de viaduto
Pessoas vindas de outros estados tamb�m ocupam a regi�o da rodovi�ria do Tiet� (foto: BBC)

O problema � que, na pr�tica, muita gente prefere n�o recorrer aos abrigos por uma s�rie de problemas, como estrutura ruim, dificuldade de encontrar vagas, regras restritivas e baseadas em padr�es morais de comportamento e, no caso das mulheres, receio de perder a guarda dos filhos caso o contato com municipalidade inicie algum processo judicial nesse sentido.

Essa � a avalia��o Juliana Rocha, mestre em administra��o p�blica e governo pela FGV e pesquisadora do N�cleo de Estudos da Burocracia (NEB), que participa de pesquisas de campo com mulheres em situa��o de rua.

"Alguns espa�os permitem que as mulheres fiquem no local durante o dia. J� em outros ela precisa ficar fora e s� voltar no fim da tarde. Al�m disso, as mulheres s�o cobradas para ter uma super postura materna de trabalho e estudo ao mesmo tempo em que s�o julgadas negativamente quando existe algum problema, quando deixam o filho com algu�m para procurar emprego, ou quando arrumam namorado", diz.

Para ela, a situa��o de rua � ainda mais dram�tica para as mulheres e crian�as, que ficam mais expostas � viol�ncia. "A Constitui��o tem esse compromisso de proteger a crian�a, porque ela est� em desenvolvimento e � vulner�vel. Nas ruas, elas est�o expostas � viol�ncia, ao trabalho infantil, �s vezes sem a oportunidade de estudar e experimentar a vida com a prote��o social que toda crian�a merece", diz.

Censo


Grafite de uma criança amarrada em pilastra do viaduto
Prefeitura tentou transformar o espa�o em um museu da arte urbana, mas obras ficaram degradadas (foto: BBC)

Nesta semana, a prefeitura lan�ou um censo da popula��o de rua da cidade. Em 2021, havia 31.884 pessoas vivendo nas vias p�blicas, alta de 31% em compara��o com 2019. Segundo a pesquisa, 16,6% eram mulheres - 83,4%, homens. Em 2019, a porcentagem de mulheres era menor, 15%. J� o recorte de ra�a aponta que, no ano passado, 70,8% da popula��o de rua era formada por negros (pardos e pretos), e 25,8% por brancos.

O censo aponta, ainda, que 3,1% das pessoas tinham entre 0 e 17 anos. A faixa et�ria entre 31 e 49 anos representava 49,4%; outros 18,5% tinham entre 18 e 30 anos. J� 28% estavam na rua h� menos de dois anos; 28,7%, h� mais de dois anos, e 26% h� mais de 5 anos.

As redondezas da rodovi�ria explicam um pouco esse aumento de contingente na pandemia. H� dois anos eram raras as barracas na regi�o. Hoje, o local � uma esp�cie de ponto inicial de um corredor ocupado por essa moradia prec�ria: ele sai da Cruzeiro do Sul, passa pelas avenidas Santos Dumont e Tiradentes e pela regi�o da cracol�ndia, chegando ao centro da cidade, onde � dif�cil circular sem encontrar pessoas nessa condi��o.

"� importante saber o perfil dessa popula��o para direcionar as pol�ticas p�blicas adequadas para cada grupo. H� uma s�rie demandas e pol�cias que poderiam mitigar esse problema complexo, como moradia, seguran�a alimentar e sa�de mental", diz Bichir.

S�o m�ltiplos os fatores que levam as pessoas �s ruas. O levantamento anterior da prefeitura apontou que 41% dos entrevistados culparam "conflitos familiares" como motivo principal. Outros 26% falaram em "perda de trabalho". Depend�ncia de drogas il�citas e �lcool somavam 33%. Perda de moradia, 13%.

O pr�prio servi�o de acolhimento foi bastante criticado pelos usu�rios. Embora 59,5% dos entrevistados tenham dito que os abrigos s�o "bons ou �timos", 20% disseram j� terem sido v�timas de discrimina��o por parte de algum funcion�rio, 30% j� ficaram sem receber alimenta��o e 34% relataram ter dormido em colch�es sujos ou com insetos.

Em nota, a prefeitura afirma que, "preocupada com o agravamento da crise trazido pela pandemia", adiantou o censo da popula��o de rua para o in�cio deste ano - ele estava previsto para 2023. "A iniciativa se deu justamente pela percep��o de que havia necessidade de atualiza��es", diz a gest�o.

Migrantes

A regi�o da rodovi�ria tamb�m � ocupada por migrantes de outros estados que est�o tentando a sorte em S�o Paulo. Sem parentes ou conhecidos na cidade e, principalmente sem oportunidades de emprego, acabaram embaixo de alguma barraca.

� o caso de Caio Marinho, 21, que saiu de Ceil�ndia, no Distrito Federal, para procurar trabalho na capital paulista. Chegou no final de dezembro, mas at� semana retrasada s� conseguiu um bico espor�dico em uma lanchonete. Sem dinheiro para alugar um espa�o, montou uma barraca em frente � rodovi�ria, onde estava vivendo em meio a dezenas de ciganos que tamb�m ocupam a �rea.

"Fico aqui porque � mais seguro, bem policiado. Passa muita gente e n�o corro risco, e sempre tem aux�lio. De fome ningu�m morre", diz. Desempregado h� um ano e meio, sonhou que a "cidade das oportunidades" resolveria o problema. "Vim s� com a mochila e as roupas. Em S�o Paulo, se voc� correr atr�s, consegue emprego, sim. Tenho certeza que vai dar certo", diz, dentro da barraca.

Na mesma situa��o est� Jos� Gon�alves Neto, 51, que improvisou um pequeno barraco de pl�stico em uma pra�a a poucos metros da rodovi�ria. De Divin�polis (MG), chegou a S�o Paulo h� pouco mais de um ano. At� conseguiu um emprego de caseiro em Cotia (Grande SP), mas perdeu o servi�o no in�cio de dezembro.

"Eu tinha R$ 200 no bolso. Vim para a rodovi�ria para voltar para Minas, mas perdi o �nibus. Fui para a rua e acabei sendo roubado e agredido. Perdi at� os documentos", conta. Parte de sua fam�lia, que ainda vive em Minas, n�o sabe da situa��o. Sua ex-companheira e a filha, de tr�s anos, ficaram em Cotia. "Eu desisti de voltar para Minas. Tudo o que quero � arrumar um emprego e alugar um quartinho para mim. Depois procurar minha filha de novo...", diz, enquanto espera o sem�foro fechar.

Durante o dia, Jos� pede comida e emprego entre os carros que param no farol. Carrega sempre uma placa: "Procuro trabalho. Demitido em 10/12/21. Caseiro/Manuten��o Geral. Tenho refer�ncia. Aceito ajuda! Deus aben�oe".


José Gonçalves Neto segurando placa pedindo ajuda entre carros
Jos� Gon�alves Neto perdeu o emprego e foi morar na rua em dezembro (foto: BBC)

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