
Em 1962, o Brasil conquistou o bicampeonato na Copa do Mundo. O t�tulo veio num 3 a 1 de virada contra a Tchecoslov�quia, com Garrincha jogando com febre de 38 graus e o time desfalcado de seu principal craque — Pel� havia se lesionado ainda no segundo jogo.
Mas pouca gente conhece a hist�ria de uma outra conquista daquele ano: a do 13º sal�rio, benef�cio garantido em lei sancionada pelo presidente Jo�o Goulart em 13 de julho de 1962.
"O 13º sal�rio � um desses casos de reivindica��o surgida no ch�o da f�brica, legitimada nas rela��es costumeiras entre patr�es e empregados em algumas firmas, transformada em lei �s custas de greves, demiss�es, abaixo assinados, pris�es e cuja mem�ria � depois ofuscada pelo brilho da lei que sup�e-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador", escreve o historiador Murilo Leal Pereira Neto.
Conhe�a a hist�ria de como, num ano de infla��o em alta e embates aguerridos entre direita e esquerda na pol�tica, trabalhadores foram � greve geral 18 dias ap�s o bicampeonato mundial e conquistaram o benef�cio que deve injetar R$ 250 bilh�es na economia este ano.
Tudo isso aconteceu sob protestos dos empres�rios e do mercado financeiro da �poca, conforme registrou o jornal O Globo, que no dia 26 de abril de 1962 estampou na sua manchete: "Considerado desastroso para o Pa�s um 13º m�s de sal�rio".
O desastre n�o veio e hoje 85,5 milh�es s�o beneficiados com o rendimento adicional, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estat�stica e Estudos Socioecon�micos).
Origem do abono de Natal e in�cio da luta no Brasil
A gratifica��o de Natal � uma tradi��o que tem origem em pa�ses de maioria crist�, onde alguns patr�es tinham o costume de presentar seus funcion�rios com cestas de alimentos na �poca das festas de fim de ano.
Essa doa��o antes volunt�ria se tornou obrigat�ria na It�lia em 1937, durante o regime fascista de Benito Mussolini, quando o acordo coletivo de trabalho nacional passou a prever um m�s adicional de sal�rio para os empregados das f�bricas.
Em 1946, o benef�cio seria estendido �s demais categorias de trabalhadores italianos, sendo consolidado atrav�s de decreto presidencial em 1960.
No Brasil, os primeiros registros de greves e demandas pelo abono de Natal s�o de 1921, na Cia. Paulista de Aniagem e na ind�stria Mari�ngela, ambas empresas do setor t�xtil.
Sob inspira��o da Carta del Lavoro (1927) da It�lia fascista, o Brasil aprovaria em 1943 sua Consolida��o das Leis do Trabalho (CLT), mas dela n�o constava o 13º sal�rio.
Naquele mesmo ano, no entanto, o abono de Natal foi conquistado pelos trabalhadores da fabricante de pneus Pirelli, o que levaria a uma greve geral no ano seguinte em Santo Andr� (SP) pelo pagamento do benef�cio.
"Na onda de greves que se alastrou de dezembro de 1945 a mar�o de 1946, a luta pelo pr�mio de final de ano era a principal reivindica��o na maioria delas, envolvendo categorias como ferrovi�rios da Sorocabana, trabalhadores da Light, tecel�es, metal�rgicos, gr�ficos e qu�micos em S�o Paulo", lembra Pereira Neto, em sua tese de doutorado A reinven��o do trabalhismo no 'vulc�o do inferno': um estudo sobre metal�rgicos e t�xteis de S�o Paulo.
"Os patr�es ganhavam aquele dinheiro no fim do ano, tudo, chegava e dava um panetone e dava um vinho ruim pro cara. Ent�o n�s mostramos a realidade: o trabalhador tamb�m precisava passar um Natal melhor", conta Jo�o Miguel Alonso, l�der metal�rgico, em depoimento recuperado por Pereira Neto, sobre os argumentos usados com os patr�es � �poca.
"N�s sempre levant�vamos esse problema desde antes: o trabalhador, no fim de ano, precisava comprar um sapato melhor pro filho, precisava comprar um vestido pra mulher. 'Oh, meu deus do c�u, voc�s t�m que entender, voc�s n�o v�o dar a empresa para eles, voc�s v�o dar apenas o essencial para esse coitado viver, passar um Natal melhor com a fam�lia'."
Benef�cio pago em laranjas
Larissa Rosa Corr�a, professora do Departamento de Hist�ria da PUC-Rio (Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio de Janeiro), observa que a luta dos trabalhadores brasileiros por uma gratifica��o de Natal n�o come�ou j� conquistando um sal�rio extra logo de cara.
No artigo Abono de Natal: gorjeta, pr�mio ou direito? Trabalhadores t�xteis e a justi�a do trabalho, ela resgata o relato do l�der sindicalista Antonio Chamorro. Ele conta que, quando era oper�rio numa f�brica t�xtil em 1946, a primeira vez que os trabalhadores reivindicaram ao patr�o uma gratifica��o de fim de ano, receberam em troca sacos de laranja.
No ano seguinte, pediram cortes de tecido no lugar das laranjas, mas receberam panos considerados de m� qualidade e muito quentes para o final de ano. No ano seguinte, os trabalhadores reivindicaram um tecido mais leve e adequado ao ver�o.
"A� ele [o patr�o] cedeu. Foi uma outra vit�ria nossa", contou Chamorro, em depoimento ao Centro de Mem�ria Sindical, recuperado pela historiadora.

"� interessante observar como os trabalhadores organizados aproveitavam todas as brechas deixadas pelos patr�es", observa a professora da PUC-Rio, no estudo. "No caso relatado, o empregador cedeu uma vez; na pr�xima ele n�o teve argumentos para n�o fornecer o benef�cio novamente, e, desta vez, a gratifica��o teria que ser melhor, e assim por diante."
A luta pelo abono de Natal atravessaria a d�cada de 1950 e chegaria fortalecida nos anos 1960, em meio ao avan�o da infla��o, empoderamento dos sindicatos e contexto pol�tico inflamado pelas disputas ideol�gicas da Guerra Fria.
O Brasil dos anos 1960
Naquele in�cio dos anos 1960, uma s�rie de fatores contribu�am para uma crise econ�mica profunda. Entre eles: um endividamento externo crescente, herdado das pol�ticas desenvolvimentistas do governo Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados d�ficits comerciais; e um aumento da infla��o que se agravava desde o final dos anos 1950.
Em 1960, a infla��o acumulada foi de 30,5%; no ano seguinte, de 47,8%. Em 1962, ano da conquista da lei do 13º sal�rio, a alta de pre�os chegaria a 51,6%.
"� um momento de alta infla��o e os trabalhadores sentiam que o custo de vida vinha aumentando drasticamente", diz Larissa Rosa Corr�a, em entrevista � BBC News Brasil.
"� um Brasil que estava enfrentando a d�vida externa, todas as d�vidas provocadas pelo governo Juscelino, com a constru��o de Bras�lia", lembra a professora da PUC-Rio.
"Ao mesmo tempo, a ind�stria nacional passava por um processo de expans�o. Ent�o, de um lado os trabalhadores estavam perdendo poder de compra, lutando pela melhoria do custo de vida e, do outro, observavam o lucro das empresas. Embora, no discurso patronal, os empregadores reclamassem sistematicamente da dificuldade de sobreviv�ncia do empresariado brasileiro, sempre argumentando incapacidade financeira."
Na conjuntura internacional, o mundo estava bipolarizado entre Estados Unidos e Uni�o Sovi�tica, com um anticomunismo crescente que, no Brasil, se desdobraria no golpe militar de 1964, observa a historiadora.
"Por outro lado, temos a ascens�o do movimento sindical e dos movimentos sociais, tanto no campo como no espa�o urbano, com sindicaliza��o crescente e muitas greves que marcaram esse per�odo", diz Corr�a, citando como exemplos a Greve dos 300 mil de 1953, a Greve dos 400 mil em 1957 e a Greve dos 700 mil em 1963.
� nesse contexto que Jo�o Goulart chega � presid�ncia em 1961, sucedendo J�nio Quadros, que renunciou ap�s apenas sete meses. Jango assume, por�m, destitu�do de parte dos poderes presidenciais, sob um regime parlamentarista, com Tancredo Neves como primeiro-ministro.
"O contexto a� era de embate entre um governo reformista nacionalista e as for�as da UDN [Uni�o Democr�tica Nacional, partido conservador], da direita, que resistiam aos projetos das reformas de base", lembra Murilo Leal Pereira Neto, atualmente professor da Unifesp (Universidade Federal de S�o Paulo).
Pressionado pelo conservadorismo, Jango fortaleceu o sindicalismo e os movimentos sociais como base de apoio para seu projeto reformista, o que se configurou num ambiente prop�cio �s conquistas trabalhistas.

A greve pelo abono de Natal de 1961
Em 1951, um projeto do deputado Muniz Falc�o (PSP-AL) sobre a gratifica��o natalina foi considerado inconstitucional pela Comiss�o de Constitui��o da C�mara, que avaliou que a Constitui��o Federal n�o permitiria "a interfer�ncia do Estado nos encargos financeiros de particulares".
Em 1959, um novo projeto sobre o tema foi apresentado pelo deputado Aar�o Seteinbruch (PTB-RJ), j� num cen�rio de ac�mulo de lutas por esse direito no ch�o de f�brica. Assim, j� a partir de 1960, a mobiliza��o se concentra em pressionar o Congresso pela aprova��o da lei.
Em 13 de dezembro de 1961, os trabalhadores v�o � greve pelo abono de Natal, com a mobiliza��o puxada pelos sindicatos dos metal�rgicos e dos t�xteis de S�o Paulo.
"A greve foi um resultado de um processo de luta que durou cerca de oito anos. Durante todos os anos passados, o abono de Natal tinha constado das listas de reivindica��es nos diss�dios coletivos e sido pauta nas assembleias dos sindicatos", escreve a professora da PUC-Rio.
"Os trabalhadores tinham consci�ncia de que a gratifica��o jamais seria fruto das negocia��es com os patr�es e muito menos de uma decis�o da Justi�a do Trabalho", aponta Corr�a, citando avalia��o de Afonso Delellis, ex-presidente do Sindicato dos Metal�rgicos de S�o Paulo, cassado pelo golpe militar de 1964.
A greve foi duramente reprimida, com ao menos 1.300 presos, 50 sindicalistas detidos e o Sindicato dos Metal�rgicos cercado e mantido incomunic�vel pela pol�cia.

J� no dia 12, o ministro da Justi�a, Alfredo Nasser, declarou o movimento grevista ilegal. A C�mara dos Deputados, que havia aprovado o projeto em primeira vota��o, entrou em recesso, alegando estar sendo coagida e adiando a segunda vota��o, relata Pereira Neto.
Ap�s a greve, a Fiesp recomendou que seus membros pagassem voluntariamente o abono, em um boletim de dezembro de 1961, mas n�o admitia a aprova��o do projeto de lei, acusando o governo de demagogia por apoi�-lo, lembra o professor da Unifesp.
O projeto s� viria a ser aprovado em segundo turno na C�mara em 24 de abril de 1962 e no Senado, em 27 de junho daquele ano. Mas ainda faltava a san��o presidencial.
E ent�o veio a greve geral de 5 de julho de 1962.
A greve geral de 1962 e a conquista do 13º sal�rio
Em meio � press�o crescente, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia e Jo�o Goulart indica San Tiago Dantas para substitu�-lo. Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua indica��o foi vetada pelos conservadores.
Em resposta ao veto e � indica��o para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convoca a greve geral de 5 de julho.

"A greve, deflagrada 18 dias ap�s o Brasil conquistar o bicampeonato mundial de futebol — o que desmente an�lises rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma 'apatia s�cio-pol�tica' da popula��o —, afetou sobretudo empresas estatais ou sob controle do governo, embora o setor privado n�o tenha passado inc�lume", escreve Rubens Goyat� Campante, doutor em sociologia pela UFMG e pesquisador do N�cleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT-3ª Regi�o, no artigo O 13º veio de uma greve geral.
No Rio de Janeiro, a greve teria s�rios impactos. Diante da paralisa��o dos trens, em meio ao avan�o da fome e � crise econ�mica, a Baixada Fluminense explodiu em uma onda de saques, que deixaria 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos.
"Enquanto a greve se desenrolava no Rio de Janeiro, e em outras unidades da Federa��o, uma comiss�o de l�deres do comando nacional de greve se encaminhou para Bras�lia, com o objetivo de manter conversa��es com Jo�o Goulart sobre a crise pol�tica nacional e pressionar pelas reivindica��es da greve, ocasi�o em que o presidente tamb�m se comprometeu a assinar a lei do 13º sal�rio, que fora aprovada no Senado alguns dias antes (em 27 de junho)", relata o pesquisador Demian Bezerra de Melo, na tese de doutorado Crise org�nica e a��o pol�tica da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962).
Goulart cumpriria o compromisso alguns dias depois, em 13 de julho, quando foi sancionada a Lei 4.090 de 1962.
Inicialmente, a lei s� dava direito ao 13º aos empregados urbanos do setor privado. Trabalhadores rurais e servidores p�blicos n�o eram contemplados, lembra o Dieese.
Em 1963, Jo�o Goulart estende o direito aos aposentados. E em 1965, j� em plena ditadura, lei sancionada pelo presidente Castello Branco estabelece o pagamento em duas parcelas, sendo a primeira entre fevereiro e novembro, e a segunda at� 20 de dezembro de cada ano.
A Constitui��o de 1988 garante o 13º a todos os trabalhadores urbanos e rurais, direito formalmente estendido aos servidores p�blicos por meio da Emenda Constitucional 19 naquele mesmo ano.
"Para n�s hoje, o processo de conquista do 13º causa estranheza", avalia Larissa Corr�a, da PUC-Rio.
"Estamos vivendo um contexto de alta precariza��o do trabalho e aquelas lutas dos anos 1960 parecem quase um outro mundo para a gente, haja visto a reforma trabalhista e todo o processo de terceiriza��o das rela��es de trabalho. Mas � curioso tamb�m que, na reforma trabalhista de 2017, a lei do 13º permaneceu intocada. Isso diz muito sobre o patrim�nio das leis trabalhistas e o que elas representam at� hoje", acrescenta a historiadora.
Os aprendizados da luta pelo 13º sal�rio
Para Pereira Neto, da Unifesp, o principal aprendizado da conquista do 13º sal�rio � que as leis trabalhistas "n�o nascem no Congresso".
"Temos uma ideia no Brasil de que as conquistas trabalhistas n�o s�o conquistas, s�o um favor. H� um modelo interpretativo de que o Estado ou a classe dominante fazem concess�es, ao inv�s de reconhecer direitos", diz o pesquisador.
"O que a luta pelo 13º mostra � que essas pautas at� podem come�ar como um favor [das empresas aos funcion�rios], mas elas se constituem como um direito no percurso da experi�ncia. E esse direito, antes de se transformar em lei, vai sendo legitimado na sociedade. Ent�o existe uma constru��o pol�tica do direito", avalia o professor da Unifesp.
Para Larissa Corr�a, da PUC-Rio, a estrat�gia dos sindicatos na luta pelo 13º tamb�m deixa um aprendizado.
"O movimento sindical naquele contexto atuava nas duas frentes: tanto na parte jur�dica, parlamentar, quanto nas greves e nos movimentos de rua. Eles n�o apostavam no projeto de lei sem deixar de fazer greve. Isso era uma estrat�gia muito importante e, de fato, foi bem sucedida", avalia a historiadora.
Para Miguel Torres, atual presidente do Sindicato dos Metal�rgicos de S�o Paulo e Mogi das Cruzes, da CNTM (Confedera��o Nacional dos Trabalhadores Metal�rgicos) e da For�a Sindical, a conquista do 13º sal�rio � uma refer�ncia para a luta os trabalhadores at� hoje.
"Essa conquista ensina que temos sempre que estar lutando e que, se tem organiza��o suficiente, a possiblidade de �xito � muito maior", diz Torres.
"Para os trabalhadores, a luta faz a lei. Foi o que aconteceu em 1962 — a luta fez a lei, que vigora at� hoje."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63802323
