Damares apostou nos penteados afro, virou trancista, hoje consegue alimentar os seis filhos e, de quebra, colabora para a eleva��o da autoestima de outras mulheres negras
O Estado de Minas foi a campo e, a partir desta edi��o, conta a hist�ria de “mulheres lutadoras e vencedoras”, verdadeiras guerreiras, que, no dia a dia encaram e superaram o preconceito, a pobreza e outras adversidades. A reportagem conheceu de perto o esfor�o de dedica��o de Damares, mulher negra, m�e de seis filhos, que fala abertamente dos momentos em que enfrentou a fome em um ambiente marcado pela viol�ncia. Sozinha, sem marido, ela encontrou um meio de sobreviv�ncia para si pr�pria e os filhos, em um of�cio que, al�m de gerar renda, � um fator de eleva��o da autoestima e de valoriza��o da cultura negra: trabalha como trancista – faz tran�as de cabelo.
Outra lutadora � dona Teresa, m�e de seis filhos e av� de 13 netos, que, mesmo na terceira idade, mant�m o neg�cio que a ajudou a criar sua fam�lia: um carrinho de pipoca. Na inf�ncia, na zona rural onde nasceu, ela trabalhou com a enxada na lavoura, o que a afastou da escola. Na adolesc�ncia, foi morar na cidade e deu duro como dom�stica. “Trabalhei em casa onde n�o tinha comida pra mim”.
Por sua vez, Fabiana, ap�s uma inf�ncia dif�cil por causa da pobreza, teve que abandonar, aos 17, a fam�lia no lugar onde nasceu, para trabalhar em casa de fam�lia e estudar. Fez cursos de est�tica e de cabeleireira. Hoje, ela � dona de um bem montado est�dio de beleza em Montes Claros, no Norte de Minas, onde emprega 12 pessoas e, em breve, vai inaugurar sua sede pr�pria e ampliar o neg�cio e os postos de trabalho.
O esfor�o das mulheres de �reas carentes para melhorar de vida e gerar renda com as pr�prias m�os foi abordado na pesquisa “Empreendedorismo nas Favelas de Minas Gerais”, realizada pelo Sebrae Minas em parceria com o Data Favela /Instituto Locomotiva. O estudo foi feito no segundo semestre do ano passado, em comunidades da Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte e do interior do estado.
De acordo com a pesquisa, 45% das mulheres empreendedoras das favelas mineiras identificaram uma chance de neg�cio ou um nicho de mercado e abriram um neg�cio. Por outro lado, 52% das entrevistadas empreenderam por necessidade, buscando uma alternativa para arcar com seus custos priorit�rios.

No leme do destino
Soraia PivaSegundo o levantamento, quatro em cada 10 empreendedoras das comunidades do estado realizam as atividades do seu neg�cio em casa. Em rela��o ao tipo de empreendimento, 32% das mulheres das favelas mineiras t�m neg�cios no setor de presta��o de servi�os, 31% se dedicam ao com�rcio de produtos feitos por terceiros e 29% atuam com a produ��o e venda de bens e produtos artesanais. J� as atividades em que h� um maior n�mero de empreendedoras atuando s�o: beleza e est�tica (29%), alimenta��o e bebidas (26%) e vestu�rio e acess�rios (15%).
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De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE), 3% dos domic�lios de Minas Gerais est�o localizados em favelas – isso corresponde a mais de 231 mil domic�lios na capital e em cidades do interior. Ainda segundo o IBGE, em Belo Horizonte, mais de 12% das moradias est�o nessas localidades.
Supera��o trilhada na cultura afro
Uma das lutadoras e vencedoras de �reas carentes a partir do esfor�o pr�prio � Damares Aparecida Pinto, de 40 anos, m�e de seis filhos. De fam�lia pobre, ela nasceu no Aglomerado Cidade Cristo Rei, em Montes Claros, no Norte de Minas, uma das comunidades inclu�das na pesquisa ‘Empreendedorismo nas Favelas de Minas Gerais”, realizada pelo Sebrae Minas em parceria com o Data Favela /Instituto Locomotiva.
O estudo apontou que 75% das empreendedoras desses locais s�o negras, como Damares. Ela recorda das muitas dificuldades que j� enfrentou e considera que mais dura foi a “falta de dinheiro para comprar comida para os filhos”. Damares superou as barreiras aprendendo um of�cio ligado � pr�pria valoriza��o da cultura negra: o trabalho como trancista, fazendo penteados e alongamentos, que destacam a beleza de cabelos crespos e valorizam a cultura afro, contribuindo para a conscientiza��o contra o preconceito e o racismo.
O setor de higiene pessoal, perfumaria e cosm�ticos alcan�ou a ocupa��o de 5,6 milh�es de postos de trabalho no Brasil em 2022. A informa��o � da Associa��o Brasileira da Ind�stria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosm�ticos (ABIHPEC), que aponta os sal�es de beleza como o carro-chefe da gera��o de empregos no segmento, com um crescimento de 11,3% d� oportunidades geradas em 2022 em rela��o a 2021.
Hoje, dona de um bem montado sal�o em Montes Claros, no Norte de Minas, Fabiana Cardoso Dias, de 33 anos, � uma das integrantes do ex�rcito da beleza. Mas, al�m de ser destaque no empreendedorismo feminino, ela tem outra marca: a supera��o.
“O sal�o mudou minha vida”, diz a empres�ria, que durante uma fase da adolesc�ncia, trabalhava como empregada dom�stica durante o dia e estudava � noite. Atualmente, emprega 12 pessoas, n�mero que vai aumentar para 18 em breve, quando vai inaugurar a sede pr�pria do seu estabelecimento.
Fabiana nasceu em Bras�lia de Minas (Norte Minas), sendo a primeira filha de Maria Benilde Dias, foi m�e solteira. Ainda nos primeiros meses de vida, foi morar em uma fazenda, na comunidade de Sucui�, na zona rural do munic�pio, onde Maria Benilde (que � filha de um carvoeiro) trabalhava como empregada dom�stica para os donos da propriedade.
Aos 4 anos, junto com a m�e, ela mudou-se para �gua Boa, distrito de Claro dos Po��es, munic�pio carente da regi�o, onde passou a inf�ncia e enfrentou uma vida de sofrimento.
Aos 9 anos, cuidava dos tr�s menores (7,5 e 3 anos, na ocasi�o). Pois, a m�e, que dava duro como cozinheira em um restaurante, sa�a de casa �s 5 da manh� e s� volta �s 10 horas da noite. Por outro lado, o padrasto dela, Reinaldo Ferreira ganhava a vida como lavrador em fazendas da regi�o e “visitava” a fam�lia a cada 15 dias.
"Um dos momentos mais dif�ceis foi quando meu padrasto sofreu um acidente na perda com motosserra e ficou uns seis meses sem poder trabalhar. A gente ficou at� comprar alimentos mesmo”, recorda Fabiana, lembrando que o sal�rio da m�e dela como cozinheira era insuficiente para cobrir as despesas.
“A gente s� comia carne no domingo”, completa, lembrando que a fam�lia tamb�m recebia doa��es de roupas. Ela relata que, aos 12 anos, j� cuidava do cabelo das colegas – “fazia aquelas coisinhas como tran�as e terer�”.
Aos 17 anos, transferiu-se para Montes Claros (65 quil�metros de �gua Boa), onde, para se sustentar, come�ou a trabalhar em casa de fam�lia durante o dia, ao mesmo tempo que estudava � noite. A hoje empres�ria relembra que “chorava todos os dias” por ficar longe da fam�lia, mas resistia em retornar para a casa da m�e “porque eu queria uma coisa melhor para minha vida no futuro”.
Ap�s concluir o curso de est�tica, se matriculou em um curso de cabeleireira. Com a capacita��o, deixou o servi�o dom�stico e passou a atuar como auxiliar de cabeleireira em um sal�o de beleza, morando em uma rep�blica, com um amigo.
Depois de sete anos como empregada, a cabeleireira decidiu montar o seu pr�prio sal�o, em 2016. Hoje, o “Est�dio Fabiana Dias”, situado no Bairro Todos Santos (�rea de classe m�dia/alta), oferece uma infinidade de servi�os na �rea da beleza feminina, incluindo est�tica, depila��o, al�m de colora��o, descolora��o, alisamento, tran�as, diferentes tipos de corte de cabelo e outros procedimentos.
A empreendedora revela que, para divulga��o de sua atividade, recorre muito �s redes sociais, o que acha que contribuiu o seu crescimento, que, em breve, ser� incrementado com com a inaugura��o da sua sede pr�pria (erguida no Bairro Augusta Mora, regi�o sul da cidade), que j� tem data marcada: 10 de julho.
No “novo sal�o”, adianta, ela vai aumentar de 12 para 18 empregos, ampliando tamb�m os servi�os oferecidos. Fabiana participa do grupo Central de Empres�rios da Beleza do Norte de Minas (CEB), voltado para cultura da coopera��o e capacita��o dos empreendedores do setor. “Eu sempre gosto de aprender algo a mais sobre gest�o”, diz.
A dona de sal�o sofre de compuls�o alimentar, uma consequ�ncia do que enfrentou no passado “Hoje, o que me faltou no passado, quero comer em dobro, com “medo” de faltar alguma coisa”, conta. Por causa do problema faz terapia, com tratamento de reeduca��o alimentar.
Retirando essa sequela, ela afirma que tenta se espelhar nas experi�ncias vividas para tentar a supera��o de novos desafios. “Mesmo tendo enfrentado dificuldades, a pessoa n�o se pode se sentir apenas como coitadinha. Penso que tudo que passei tem que servir como aprendizado. Se eu ficar remoendo algumas coisas eu s� vou gastar energia enquanto poderia est� fazendo novos planos” comenta.
A empreendedora ressalta que valoriza a sua negritude, estando engajada na luta contra a discrimina��o e contra o racismo. “Me sinto uma mulher preta de corpo e alma. Quero participar de projetos voltados para a aceita��o da mulher negra na sociedade. Sempre, incentivo as mulheres a saber cuidar do cabelo crespo, valorizando a identidade afro”, sustenta.
Fabiana d� uma dica para outras mulheres que sonham com a independ�ncia a partir do neg�cio pr�prio. “Cada uma tem que usar o melhor de si. Precisa usar a criatividade e inovar sempre. Somente assim que conseguimos a mudan�a.
O neg�cio de Damares ainda � mais t�mido, mas ela conta que sua vida de “sem nada” come�ou a mudar h� seis anos, quando come�ou fazer os penteados tran�ados que aprendeu pela internet. “No in�cio, fiz tran�as em meu pr�prio cabelo e n�o ficou l� essas coisas. Depois, aprimorei bastante e hoje sou uma boa trancista”, garante Damares, que hoje domina v�rios modelos de tran�as, como nag�, box braid (boxeadora) e twist.
Ela considera, entretanto, que seu maior feito foi conseguir, com a profiss�o, garantir renda para alimentar seus seis filhos, que cria sozinha. O mais velho � Jeferson, de 14 anos, e o ca�ula, Fl�vio Gael, de apenas 8 meses. “Hoje, posso alimentar os meus filhos. N�o falta nada”, comemora a mulher, lembrando que j� viveu situa��o bem mais complicada. “Antes faltava dinheiro para comprar comida e outras coisas, como pagar contas de �gua e luz. Eu tamb�m n�o tinha como dar conforto a meus filhos. N�o tinha condi��es de ir a uma lanchonete e muito menos a uma pizzaria.”
Damares se diz apaixonada pelo que faz. “Para quem antes n�o sabia fazer nada, ter uma profiss�o hoje � motivo de muito orgulho”. Ela manifesta o mesmo sentimento em rela��o � cor de sua pele. “Tenho muito orgulho de ser negra. Ainda existe muito preconceito, mas estamos vencendo isso”,considera.
A pequena empreendedora assegura que tamb�m se sente empoderada por proporcionar alimentar a autoestima de outras mulheres, especialmente as moradoras da comunidade onde vive e labuta. “�s vezes, a pessoa entra aqui cabisbaixa e sai com um sorriso no rosto e o brilho nos olhos. Isso pra mim � incr�vel.”
Viol�ncia de perto
O Aglomerado Cidade Cristo Rei j� viveu um per�odo de muita viol�ncia e mortes relacionadas � disputa pelo tr�fico de drogas. O per�odo sombrio � relembrado por Damares. “J� presenciei muita viol�ncia. A gente tinha muita apreens�o, com medo de sair de casa por causa do risco de balas perdidas”, conta. “Mas, hoje est� tudo tranquilo”, assegura. O clima de paz citado por ela foi confirmado pela reportagem do Estado de Minas, que, por v�rias vezes, circulou pela comunidade sem problemas, acompanhando o ir e vir de adultos e crian�as em suas ruas estreitas.Ap�s ter superado as barreiras impostas pela pobreza e o preconceito, Damares Aparecida Pinto d� dicas para que outras mulheres encarem as agruras e ven�am os desafios, gerando a pr�pria renda. “Acho que todo mundo pode romper as barreiras e melhorar de vida. Para isso, basta ter foco, determina��o e f�”, recomenda.
Movidas pelo desafio da subsist�ncia
A maioria das mulheres empreendedoras das �reas carentes transformou o pr�prio neg�cio numa garantia de subsist�ncia. Elas tamb�m foram “incentivadas” pelas dificuldades impostas pela pandemia do coronav�rus.
“A maioria dessas mulheres come�ou a empreender por necessidade. N�o porque elas viram uma oportunidade, mas sim porque o empreendedorismo foi uma forma de garantir a subsist�ncia de sua fam�lia. Durante a pandemia, muitas delas ainda se viram desafiadas a trabalhar e cuidar dos filhos em tempo integral, j� que as creches estavam fechadas”, afirma Patr�cia Delgado, analista do Sebrae Minas, ao avaliar os resultados da “Empreendedorismo nas Favelas de Minas Gerais”. “A pesquisa mostra justamente essa realidade: pelo menos um quarto das empreendedoras realizam as atividades do seu neg�cio em casa”, completa.
A especialista salienta que as empreendedoras de �reas de baixa renda t�m como desafio manter o neg�cio e elevar a autoestima. “Gerir um neg�cio, ser seu pr�prio chefe, estar no controle dos seus ganhos s�o iniciativas que j� trazem um aumento da autoestima para qualquer pessoa. Estar preparado para assumir esses desafios � fundamental para o sucesso do empreendimento”, destaca. Ela lembra que o Sebrae tem um programa que incentiva e apoia o empreendedorismo feminino: o Sebrae Delas.
Patr�cia Delgado salienta ainda que as empreendedoras das �reas mais vulner�veis devem se preparar para investir em qualquer atividade. N�o existe um indicativo de atividades mais prop�cias �s mulheres. “De um modo geral, podemos dizer que quando se est� preparado, � poss�vel ter sucesso em qualquer empreendimento.
Por�m, a maioria das mulheres empreende em alguma atividade em que j� tem conhecimento e experi�ncia”, relata. De acordo com a �ltima pesquisa do pr�prio Sebrae, baseada em dados do IBGE, de 2022, o Brasil atingiu a marca de 10,3 milh�es de mulheres donas de neg�cios, representando 34% dos empreendedores no pa�s.
A analista do Sebrae destaca que o fato de Minas Gerais ter 3% dos seus domic�lios (231 mil) em favelas tamb�m mostra a relev�ncia do empreendedorismo nessas �reas. “Muitos dos que vivem nessas localidades s�o empreendedores ou potenciais empreendedores, que almejam o crescimento de seus neg�cios e o desenvolvimento local”, afirma. Ela lembra que o Sebrae Minas desenvolveu o programa Comunidade Empreendedora, que tem como objetivo capacitar pessoas de lugares em situa��o de vulnerabilidade.
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