
"Desde o in�cio do governo Bolsonaro, a pol�tica de educa��o foi negligenciada, tratada como instrumento para a guerra cultural e com aparelhamento ideol�gico. Trocas de ministros, den�ncias de corrup��o, crises na oferta dos servi�os p�blicos foram a t�nica."
Assim come�a o cap�tulo sobre educa��o do relat�rio final produzido pela equipe de transi��o do novo governo de Luiz In�cio Lula da Silva (PT).
"De 2019 a 2022, o Minist�rio da Educa��o (MEC) e suas autarquias sofreram retrocessos institucionais, or�ament�rios e normativos, observando-se falta de planejamento; descontinuidade de pol�ticas relevantes; desarticula��o com os sistemas de ensino estaduais e municipais e da rede federal de ensino; incapacidade de execu��o or�ament�ria; e omiss�es perante os desafios educacionais", segue o documento.
Com o MEC sob o comando do ex-governador do Cear� Camilo Santana, e tendo Izolda Cela � frente da secretaria-executiva da pasta, a nova gest�o federal deve tomar uma s�rie de medidas emergenciais para reverter o que foi identificado pela equipe de transi��o como um "desmonte do Estado e das pol�ticas p�blicas" na �rea da educa��o.
Entre essas prioridades, segundo membros da equipe de transi��o, est�o a alimenta��o escolar, recupera��o da aprendizagem p�s-pandemia, implementa��o do novo Ensino M�dio e do novo Enem (Exame Nacional do Ensino M�dio) — que dever� passar por mudan�as em 2024.
A compra de livros did�ticos — atrasada pelo atual governo —, retomada dos espa�os de participa��o social na defini��o das pol�ticas de educa��o, e retomada de pol�ticas para a primeira inf�ncia, alfabetiza��o e valoriza��o dos professores tamb�m est�o entre as medidas urgentes a serem adotadas, segundo os especialistas.No Ensino Superior, a retomada da inclus�o de grupos historicamente desfavorecidos nas universidades e a revis�o dos valores das bolsas de pesquisa est�o na ordem do dia.
"Desde a creche, at� a p�s-gradua��o, o governo Lula vai ter problemas a resolver", diz Heleno Ara�jo, presidente da CNTE (Confedera��o Nacional dos Trabalhadores em Educa��o) e membro da equipe de transi��o.
Confira dez medidas emergenciais para a educa��o que o novo governo Lula deve buscar adotar j� no in�cio do mandato, segundo membros da equipe de transi��o.
1) Alimenta��o escolar
"A primeira coisa que precisa ser garantida � a quest�o da organiza��o da merenda", diz Claudia Costin, diretora geral do Centro de Excel�ncia e Inova��o em Pol�ticas Educacionais da Funda��o Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV Ceipe), que fez parte equipe de transi��o.

"Num Brasil que voltou ao mapa da fome, a merenda escolar era um grande programa de seguran�a alimentar. Embora Estados mais ricos tenham como funcionar sem os repasses federais, o Brasil � profundamente desigual. Ent�o o corte que foi feito na verba da merenda precisa ser consertado com urg�ncia. � uma quest�o de emerg�ncia", diz a especialista.
Segundo o Observat�rio da Alimenta��o Escolar, desde 2017, o governo federal repassa R$ 0,36 por aluna por dia aos Estados e munic�pios, para alimenta��o escolar no ensino fundamental e m�dio.
Em 15 de dezembro, o Congresso derrubou veto de Bolsonaro que impedia aumento de repasse � merenda, abrindo caminho para que o Programa Nacional de Alimenta��o Escolar (Pnae) receba ao menos R$ 1,5 bilh�o a mais em 2023, totalizando R$ 5,5 bilh�es.
O Observat�rio estima, no entanto, que seriam necess�rio R$ 7,9 bilh�es para recompor o poder de compra do or�amento.
2) Recupera��o do aprendizado p�s-pandemia
A segunda "emerg�ncia" a ser endere�ada pelo novo governo na �rea da educa��o, segundo Costin, ser� criar uma coordena��o nacional para a recupera��o do aprendizado ap�s o longo per�odo de fechamento das escolas durante a pandemia de covid-19.

"Essa emerg�ncia decorre da quase aus�ncia de coordena��o nacional para a recomposi��o das aprendizagens que se perderam com a pandemia", diz Costin. "Ser� preciso ent�o montar um sistema nacional de recupera��o da aprendizagem, n�o adianta apenas mapear as aprendizagens que n�o ocorreram."
Segundo o Saeb (Sistema de Avalia��o da Educa��o B�sica), os alunos em etapa de alfabetiza��o foram os mais prejudicados pela pandemia.
Conforme reportagem do jornal O Globo publicada em setembro deste ano, a parcela de crian�as que ainda n�o sabem ler e escrever ao fim do segundo ano do fundamental mais do que dobrou entre 2019 e 2021, de 15% para 34%.
3) Novo Ensino M�dio e novo Enem
Um terceiro desafio a ser encarado ainda no curto prazo � a implementa��o do novo Ensino M�dio, que teve in�cio em 2022.
No novo modelo, a carga hor�ria dos alunos � ampliada de 4 para 5 horas di�rias, com objetivo de progressivamente chegar ao Ensino M�dio de tempo integral. Al�m disso, a forma��o passa a ser composta por um ciclo b�sico obrigat�rio e uma parte flex�vel, a ser escolhida pelo aluno, chamada de itiner�rios formativos.
Aprovada em 2017, durante o governo de Michel Temer (MDB), a mudan�a foi alvo de discord�ncia no grupo de transi��o para a educa��o do novo governo.
Parte dos participantes defendeu a revoga��o da reforma, enquanto outra parcela prefere seu aperfei�oamento. Sem consenso no grupo, a decis�o sobre que caminho seguir ficou para o novo ministro, relata Heleno Ara�jo, da CNTE e um dos defensores da revoga��o.
"Os jovens gostaram [da mudan�a], 92% deles disseram numa pesquisa Datafolha que querem poder escolher uma �rea de aprofundamento. Mas as diretrizes firmadas para isso s�o t�o gen�ricas que, num Brasil t�o desigual, vai ser muito dif�cil a implementa��o. Isso pode ser aperfei�oado", defende Costin, partid�ria do aperfei�oamento.
"� preciso tamb�m deixar mais claro como o novo Enem ser� alinhado com esse novo Ensino M�dio, pois a data para o novo Enem � 2024, o que � daqui a pouco."

Francisco Soares, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais An�sio Teixeira) e professor em�rito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), explica que a falta de unidade nacional na implementa��o do novo Ensino M�dio ser� um desafio para a efetiva��o do novo Enem.
"A mudan�a do Ensino M�dio foi cheia de intercorr�ncias. Ela come�ou com uma Medida Provis�ria, uma maneira ruim de fazer pol�tica educacional", lembra Soares.
"Mas o que veio depois foi pior ainda, porque os documentos s�o pouco claros, ent�o as diferentes redes [estaduais] interpretaram a norma de maneiras um pouco diferentes. O Enem se v� numa situa��o complicada, porque a prova precisa contemplar a todos."
Segundo o professor da UFMG, o novo governo ter� que definir se as diretrizes para o novo Enem — apresentadas pelo MEC de Bolsonaro em mar�o de 2022 — ser�o revistas. Definido isso, o Inep precisar� apresentar as matrizes de refer�ncia para elabora��o da nova prova e apresentar exemplos do novo modelo de provas, para que os alunos possam se preparar.
"S�o milh�es de alunos envolvidos, ent�o o Enem � uma quest�o importante socialmente. S�o literalmente milh�es de fam�lias que precisam ter clareza de como seus filhos e filhas far�o o exame. A quest�o do Enem ultrapassa o �mbito educacional e � tamb�m uma quest�o social."
4) Compra de livros did�ticos
Outro problema que precisar� ser resolvido ainda no in�cio de mandato � que o governo Jair Bolsonaro deixou de comprar parte do material que integra o Programa Nacional do Livro Did�tico (PNLD) de 2023.

Segundo reportagem do jornal O Estado de S�o Paulo publicada no in�cio de dezembro, o problema afeta obras liter�rias e de recupera��o da aprendizagem para alunos da primeira � quinta s�rie do Ensino Fundamental, incluindo a alfabetiza��o, e materiais pedag�gicos para professores.
"Todo o procedimento da escolha do livro did�tico, de efetivar a fatura e o pagamento tem que ser feito no ano anterior. Para que as editoras saibam quais s�o os livros e possam disponibilizar para 2023. O diagn�stico que fizemos mostra que o MEC n�o cuidou de toda a parte inicial de garantir a compra de livros did�ticos para serem entregues no ano que vem", relata Ara�jo, da CNTE.
"Isso precisa ser tratado com urg�ncia, para evitar um preju�zo maior aos nossos estudantes."
5) Primeira inf�ncia, uma abordagem intersetorial
Outra a��o priorit�ria do novo governo, segundo Costin, ser� tratar da primeira inf�ncia, faixa et�ria historicamente deficit�ria em vagas na educa��o p�blica.
O Instituto Rui Barbosa, organiza��o ligada aos Tribunais de Contas dos Estados, estima que o Brasil precisaria criar pelo menos 3,4 milh�es de vagas na educa��o infantil para cumprir as metas estabelecidas no Plano Nacional de Educa��o (PNE).
Por essas metas, todas as crian�as de 4 e 5 anos deveriam estar na pr�-escola at� 2016 e 50% dos pequenos de 0 a 3 anos deveriam ter acesso � creche at� 2024.
A pandemia deixou o Brasil ainda mais distante desses objetivos, com mais de 650 mil crian�as de at� 5 anos tendo deixado a escola entre 2019 e 2021, segundo o Censo Escolar 2021, divulgado pelo Inep.
"A primeira inf�ncia demanda uma abordagem intersetorial, a exemplo de pa�ses como o Chile", diz a diretora geral do FGV Ceipe, que defende para a �rea uma coordena��o entre as pastas da Sa�de, Educa��o e Assist�ncia Social.
"� preciso uma aten��o adequada � gestante; visita��o domiciliar de agentes comunit�rios de sa�de para estabelecer o aleitamento exclusivo at� pelo menos seis meses; licen�as maiores para m�es e pais para que haja a forma��o de v�nculos afetivos; e precisa ter educa��o infantil: creche e pr�-escola. Mas se voc� n�o olha para os outros �ngulos, voc� corre o risco de sobrecarregar as creches e prejudicar inclusive a capacidade de aprender da crian�a", afirma.
"A primeira inf�ncia foi considerada, portanto, para n�s [da equipe de transi��o] um ponto essencial", relata Costin.
6) Alfabetiza��o
Outra prioridade relacionada �s crian�as menores, segundo a professora da FGV, ser� endere�ar a quest�o da alfabetiza��o, etapa do ensino bastante prejudicada pela pandemia.
O tema era considerado uma das prioridades do governo Jair Bolsonaro, que institutiu em abril de 2019 a Pol�tica Nacional de Alfabetiza��o (PNA). Posteriormente, Bolsonaro propagandearia o aplicativo de alfabetiza��o GraphoGame, como uma suposta solu��o para alfabetizar crian�as em apenas seis meses.

"O Brasil n�o alfabetiza direito, n�s temos vis�es muito rom�nticas sobre alfabetiza��o, que na pr�tica n�o funcionam", diz Costin. "Ent�o estava certo o diagn�stico do MEC atual de que nossa alfabetiza��o n�o � feita com base em evid�ncia cient�fica."
"Por outro lado, eles n�o deram uma resposta para isso. Eles criaram uma Pol�tica Nacional de Alfabetiza��o que nada mais � do que listar evid�ncias de porque n�o se deve alfabetizar na abordagem atualmente predominante no Brasil, que � o m�todo global", diz Costin.
O MEC de Bolsonaro defendia a alfabetiza��o pelo chamado m�todo f�nico, que apresenta as crian�as �s letras e aos sons da fala antes de inici�-las em atividades com textos. Na abordagem global ou construtivista, a crian�a � vista como construtora do conhecimento e o aprendizado do alfabeto ocorre de forma integrada com o uso social da leitura e escrita.
"Um plano nacional de educa��o deve incluir metas, prazos, como apoiar as redes municipais, como preparar uma forma��o s�lida de professores", diz Costin, que defende a urg�ncia de uma reformula��o da Pol�tica Nacional de Alfabetiza��o, passando possivelmente pela revoga��o da atual e por um plano que se mire no exemplo bem sucedido de Sobral (CE).
7) Valoriza��o do professor
Por fim, Costin elenca como outra urg�ncia na educa��o b�sica, conforme discutido pela equipe de transi��o, a valoriza��o da profiss�o docente.
Trata-se de um desafio desde as etapas de forma��o, j� que o Censo da Educa��o Superior mais recente divulgado pelo Inep mostra que 6 de cada 10 professores formados no pa�s em 2020 realizaram a forma��o em licenciatura � dist�ncia, que j� supera os cursos presenciais.

"O Brasil tem contratos para o trabalho de professor fragmentados, ent�o o professor d� aula em tr�s, quatro lugares. Ele gasta boa parte do seu tempo que seria dedicado � atividade extraclasse se deslocando de uma escola � outra, �s vezes em munic�pios diferentes", afirma.
"Vai ser muito importante os concursos serem feitos para uma carreira de 40 horas, como qualquer outro profissional de n�vel superior. Com tempo para atividade extraclasse, para planejamento, para se aprofundar na sua �rea, para atender aluno", enumera a especialista.
"Para que isso aconte�a, o professor deveria ter dedica��o exclusiva a uma �nica escola. A ideia do ensino em tempo integral — defendida como prioridade n�mero um na reuni�o que tivemos com governadores — vai possibilitar esse tipo de dedica��o."
A professora da FGV afirma que Pernambuco � modelo na expans�o do ensino integral, com a modalidade respondendo hoje por 75% das matr�culas no primeiro ano do Ensino M�dio no Estado.
8) Participa��o social
A recupera��o das inst�ncias de participa��o social na defini��o das pol�ticas de educa��o dever� ser outra prioridade da nova gest�o federal.
"Em conson�ncia com a forte tradi��o de participa��o social na �rea de educa��o, destaca-se a import�ncia da recria��o de uma s�rie de comit�s e comiss�es que foram extintos desde 2019, como o Comit� Permanente de Planejamento e Gest�o da Rede Federal de Educa��o Profissional, Cient�fica e Tecnol�gica", cita o relat�rio final do grupo de transi��o.
"Tamb�m constituem desafios a retomada de comiss�es paralisadas, a exemplo do CGProuni; o aperfei�oamento de conselhos em funcionamento, como o Conselho de Acompanhamento e de Controle Social do Fundeb; e a cria��o de novos conselhos, como o Conselho Consultivo de Regula��o, Avalia��o e Supervis�o da Educa��o Superior, com ampla participa��o de organiza��es que militam na �rea educacional", completa o documento.
Segundo Heleno Ara�jo, da CNTE, houve consenso no grupo de transi��o pela revoga��o da Portaria 577, de 27 de abril de 2017, do MEC, que revogou portarias anteriores sobre a composi��o do F�rum Nacional de Educa��o (FNE), dissolvendo na pr�tica o colegiado.
"� importante a recomposi��o do F�rum Nacional de Educa��o como espa�o de di�logo permanente e de elabora��o de propostas para pol�ticas educacionais", defende Ara�jo, lembrando que a entidade tem a responsabilidade de coordenar as confer�ncias de educa��o e indicar propostas para o novo Plano Nacional de Educa��o 2025-2034.
9) Retomada da inclus�o nas universidades
No Ensino Superior, al�m da recomposi��o do or�amento e fim da guerra ideol�gica entre MEC e universidades, outra prioridade do novo governo ser� a retomada das pol�ticas de inclus�o de grupos historicamente exclu�dos dessa etapa do ensino.
Um desafio para isso ser� recuperar o interesse dos jovens pelo Ensino Superior — desde 2016, o n�mero de inscritos no Enem, principal porta de entrada para as universidades, tem ca�do ano ap�s ano, recuando de 8,6 milh�es naquele ano, para apenas 3,4 milh�es em 2022.
A propor��o de pretos e pardos entre os inscritos tamb�m tem diminu�do, de 58% em 2019 para 51,8% em 2021, segundo o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Ra�a no Brasil do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica).

"Est�vamos avan�ando na inclus�o, por meio de Prouni, de Fies, da pol�tica de cotas para escolas p�blicas e, dentro delas, das cotas �tnico-raciais", diz Costin.
"Mas essa inclus�o ainda era incipiente — � s� ver os dados do Censo, apenas 21% dos adultos de 25 a 34 anos no Brasil t�m diploma de Ensino Superior, muito pouco comparado aos pa�ses da OCDE. E, a partir de 2019, diminu�ram as vagas para Fies, o Prouni e veio a pandemia, que derrubou a procura pelo Enem", cita a especialista em educa��o.
"Ent�o prosseguir numa agenda de inclus�o no Ensino Superior vai ser muito importante."
10) Revis�o de valores das bolsas de pesquisa
Outra prioridade nas pol�ticas para o Ensino Superior, segundo Costin, ser� o reajuste das bolsas de pesquisa cient�fica.
Segundo a Associa��o Nacional de P�s-Graduandos (ANPG), as bolsas n�o s�o reajustadas desde 2013, e pagam atualmente R$ 1.500 (mestrado) e R$ 2.200 (doutorado), quando deveriam estar em R$ 2.600 e R$ 3.800, respectivamente, em valores atualizados.
"� preciso rever o valor das bolsas", diz Costin. "Lembrando que s�o os alunos de p�s-gradua��o que fazem pesquisa. Quando falamos que 90% da pesquisa brasileira � feita pelas universidades, isso mostra como � muito importante desbloquear os recursos que continuaram bloqueados e rever o valor das bolsas que est�o h� muitos anos sem reajuste."
"Educa��o de qualidade custa caro, mas o Brasil tem que olhar para esse custo como um investimento. � a educa��o que vai fazer com que a produtividade do trabalho — que no Brasil est� estagnada a um n�vel baix�ssimo — cres�a, para que a gente possa ter um desenvolvimento inclusivo e sustent�vel no longo prazo. Isso constr�i uma sociedade muito mais coesa."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64105495