
Quando analisamos a vida dos ricos e famosos, sempre temos a tenta��o de procurar o segredo do sucesso deles.
Ent�o, vamos l�: o que a cozinheira Julia Child, o romancista Gabriel Garc�a M�rquez, a cantora Taylor Swift e os fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, t�m em comum?
Resposta: todos eles estudaram em escolas Montessori quando crian�as.
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Nos Estados Unidos, a influ�ncia dessas escolas no mundo das artes e da tecnologia vem sendo observada h� muito tempo. Mas o alcance do m�todo educacional vai muito al�m disso.
O l�der da independ�ncia da �ndia, Mahatma Gandhi, era um admirador do m�todo Montessori. Ele descreveu como as crian�as "n�o sentiam o aprendizado como obriga��o, pois elas aprendiam tudo enquanto brincavam".
J� o poeta indiano Rabindranath Tagore, vencedor do Pr�mio Nobel de Literatura de 1913, formou uma rede de escolas Montessori para liberar a autoexpress�o criativa das crian�as.
Mas o m�todo Montessori realmente funciona?Faz mais de um s�culo que a m�dica e educadora italiana Maria Montessori delineou seus famosos princ�pios, incentivando as crian�as a desenvolver a autonomia desde cedo. A vida dela oferece a hist�ria inspiradora de uma feminista pioneira que ousou desafiar o regime fascista da It�lia em busca de um sonho.
Estimativas indicam que existem atualmente pelo menos 60 mil escolas em todo o mundo que adotam o m�todo. Mas os benef�cios da educa��o Montessori, surpreendentemente, continuam a ser debatidos.
Essas discuss�es se devem, em parte, �s dificuldades inerentes de se conduzir pesquisas cient�ficas em salas de aula, o que faz com que os estudos existentes sejam objeto de severas cr�ticas pelos c�ticos.
Apenas recentemente os pesquisadores conseguiram resolver algumas dessas quest�es, e suas conclus�es s�o uma leitura fascinante para professores, pais e estudantes — na verdade, para qualquer pessoa interessada pela maleabilidade da mente das crian�as.

Brincar com migalhas de p�o
Maria Montessori nasceu na pequena municipalidade de Chiaravalle, na It�lia, em 1870.
Seus pais eram progressistas e mantinham reuni�es frequentes com os principais pensadores e acad�micos do pa�s. E este ambiente familiar ofereceu a Montessori muitas vantagens sobre as outras jovens do seu tempo.
"O apoio de sua m�e foi fundamental para algumas decis�es importantes, como matricular-se em uma escola t�cnica depois do ensino fundamental", segundo Elide Taviani, uma das diretoras da Opera Nazionale Montessori em Roma, na It�lia. A organiza��o foi fundada por Montessori para pesquisar e promover os m�todos educacionais.
O suporte dos pais tamb�m foi essencial para a decis�o de estudar medicina, um campo que, na �poca, era dominado pelos homens.
"A fam�lia de Maria Montessori sempre foi extremamente sens�vel a quest�es sociais", acrescenta Taviani. Um exemplo � a luta pela emancipa��o feminina, uma batalha que Montessori travaria at� a idade adulta. "Ela representou um importante ponto de refer�ncia para outras mulheres de seu tempo."
Pouco depois de formar-se em 1896, Montessori come�ou a trabalhar como assistente volunt�ria em uma cl�nica psiqui�trica na Universidade de Roma, na It�lia, onde cuidava de crian�as com dificuldades de aprendizado. As salas eram quase vazias, com poucos m�veis.
Um dia, ela observou as crian�as entusiasmadas, brincando com migalhas de p�o que haviam ca�do no ch�o, segundo Catherine L’Ecuyer, pesquisadora de psicologia e educa��o da Universidade de Navarra, na Espanha, e autora do livro The Wonder Approach ("A Abordagem Maravilhosa", em tradu��o livre).
"Foi quando ocorreu para ela que a origem de algumas dificuldades intelectuais poderia estar relacionada ao empobrecimento", conta L’Ecuyer.
Montessori ent�o concluiu que, com os materiais de aprendizado corretos, aquelas e outras mentes jovens poderiam ser cultivadas. Esta observa��o levaria Montessori a desenvolver um novo m�todo de educa��o, concentrado em fornecer o est�mulo ideal durante os per�odos sens�veis da inf�ncia.
O m�todo parte do princ�pio de que todos os materiais de aprendizado devem ter o tamanho adequado para as crian�as e ser projetados para apelar a todos os cinco sentidos.
Al�m disso, deve-se tamb�m permitir que cada crian�a se movimente e aja livremente, usando a criatividade e as pr�prias t�cnicas de resolu��o de problemas. Os professores assumem o papel de guias, apoiando as crian�as sem controle, nem coer��o.
Montessori abriu a primeira Casa dei Bambini ("Casa das Crian�as", em tradu��o livre) em 1907 e logo surgiram v�rias outras unidades. Ao longo do tempo, ela tamb�m formou liga��es com vision�rios de todo o mundo, incluindo Gandhi.
Talvez de forma surpreendente, os fascistas inicialmente adotaram o m�todo quando chegaram ao poder na It�lia, em 1922. Mas logo passaram a combater a �nfase de Montessori sobre a liberdade de express�o das crian�as.

Taviani afirma que os valores de Montessori sempre foram sobre o respeito humano e "os direitos das crian�as e das mulheres, mas os fascistas queriam explorar o trabalho e a fama dela".
O rompimento chegou quando o regime fascista tentou influenciar o conte�do educacional das escolas. Montessori e seu filho decidiram ent�o sair da It�lia, em 1934.
Maria Montessori s� retornaria � sua terra natal em 1947. Ela continuou a escrever e desenvolver seu m�todo at� sua morte em 1952, aos 81 anos de idade.
Crian�as no comando
Existem atualmente muitos tipos diferentes de escolas Montessori e nem todas s�o reconhecidas pela Opera Montessori. Mas certos princ�pios fundamentais permanecem intactos.
Um deles � a ideia de que os professores s�o guias que incentivam as crian�as com gentileza a fazer as atividades com o m�nimo de interfer�ncia poss�vel dos adultos.
"Nossas crian�as aprendem a se autogerenciar", afirma Miriam Ferro, diretora da Ecoscuola Montessori de Palermo, na It�lia, que atende crian�as desde os primeiros meses de vida at� os seis anos de idade.
Algumas mat�rias da Ecoscuola s�o similares �s ensinadas em outras institui��es, como a matem�tica e a m�sica. Mas existe tamb�m um segmento chamado de "vida pr�tica", que retoma a vis�o original de Montessori sobre a autonomia das crian�as.
Esta mat�ria inclui tarefas pr�ticas do dia a dia, como servir bebidas para os colegas de classe. Por quest�es de seguran�a, os professores se encarregam de ferver a �gua, mas as crian�as t�m papel ativo na limpeza da superf�cie de trabalho e apresentam as bebidas para os demais.
"No caf� da manh� e no almo�o, elas tamb�m se autogerenciam, dividindo-se em turmas para arrumar a mesa e servir os colegas", afirma Ferro.
O m�todo incentiva a independ�ncia, mas tamb�m a colabora��o. Crian�as de diferentes idades aprendem na mesma sala de aula, de forma que os que t�m seis anos de idade, por exemplo, possam ajudar os de tr�s anos.
N�o h� exames, nem notas, para evitar a competi��o entre os alunos. Cada sess�o tem tr�s horas de dura��o, para permitir que as crian�as fiquem imersas no que est�o fazendo.
Os materiais de aprendizado s�o elaborados para que possam ser manuseados e explorados com todos os sentidos, como letras e n�meros feitos de lixa, que a crian�a pode procurar e sentir com os dedos.
Mas, por mais sens�vel e animador que possa parecer este conceito, ser� que ele traz benef�cios tang�veis al�m dos encontrados na sala de aula comum? Esta parece uma quest�o simples, mas � muito dif�cil de responder.
Pesquisas indicam que pode haver benef�cios em aspectos espec�ficos da educa��o Montessori, mas os resultados trazem advert�ncias importantes. Isso porque � dif�cil aplicar em sala de aula o processo cient�fico padr�o empregado para descobrir se algo funciona ou n�o.
Para medir cientificamente os efeitos de uma interven��o, tipicamente se realiza um teste controlado aleat�rio. Este teste envolve a aloca��o aleat�ria dos participantes em dois grupos – o grupo "experimental", que recebe a interven��o, e o grupo "controle" que passa por um procedimento compar�vel, mas diferente, que n�o se espera que cause o efeito desejado.
Se os participantes que receberam a interven��o tiverem melhores resultados que os que n�o a receberam, pode-se concluir que a interven��o funcionou conforme o desejado.
Na �rea m�dica, as pessoas do grupo que passou pela interven��o receberiam um comprimido real, enquanto o grupo controle receberia uma p�lula "placebo", que se parece exatamente com o rem�dio de verdade, mas n�o cont�m os ingredientes ativos. Infelizmente, por�m, � muito dif�cil aplicar o mesmo rigor cient�fico aos testes com interven��es educacionais.
Voc� pode optar por comparar alunos das escolas Montessori com os de algum outro sistema educacional. Mas muitas escolas Montessori s�o particulares, pagas com mensalidades, e a escolha dos pais pode estar relacionada a muitos outros fatores que tamb�m podem influenciar o progresso das crian�as. E a situa��o financeira dos pais n�o � a �nica vari�vel em quest�o.
"Os pais que matriculam seus filhos em uma escola Montessori podem ser mais dedicados � sua educa��o, de forma que o seu pr�prio estilo educativo em casa pode influenciar positivamente", explica Javier Bernacer, do Instituto de Cultura e Sociedade da Universidade de Navarra, na Espanha.
� certo que alguns estudos aparentemente demonstram uma s�rie de benef�cios para as crian�as em desenvolvimento, mas n�o podemos ter certeza se esse � um resultado do m�todo Montessori ou se � uma simples consequ�ncia do um ambiente privilegiado.
A professora de psicologia Angeline Lillard, da Universidade da Virg�nia em Charlottesville, nos Estados Unidos, tentou superar essas dificuldades observando uma escola Montessori espec�fica na cidade norte-americana de Milwaukee.
As crian�as matriculadas na institui��o foram selecionadas por um sistema de sorteio. Esta sele��o aleat�ria deveria eliminar os outros fatores de influ�ncia, oferecendo a Lillard maior confian�a de que o pr�prio m�todo Montessori seria o respons�vel por eventuais diferen�as.
Ao analisar o progresso dos alunos aos cinco anos de idade, Lillard concluiu que a maioria das crian�as que frequentaram a escola Montessori apresentava n�veis de alfabetiza��o, habilidades matem�ticas, fun��es executivas e habilidades sociais maiores em compara��o com as que frequentaram locais com outros m�todos. E, com 12 anos de idade, elas demonstraram melhor capacidade de contar hist�rias.
Por mais positivos que sejam estes resultados, � importante observar que eles se basearam em uma amostra de alunos relativamente pequena. Chloe Marshall, do Instituto de Educa��o da Universidade College London, no Reino Unido, afirma que os resultados de Lillard fornecem o teste mais rigoroso j� aplicado, "mas esta � apenas uma evid�ncia e, na ci�ncia, � necess�rio replic�-la".
Os benef�cios do ‘tempo desestruturado’
Ao analisar a literatura sobre psicologia e educa��o de forma mais geral, Marshall suspeita que o m�todo realmente traga benef�cios, sem nenhuma desvantagem.
Existem, por exemplo, evid�ncias recentes de que oferecer �s crian�as tempo n�o estruturado, no qual elas podem desempenhar suas pr�prias atividades sem muita interfer�ncia dos adultos, realmente gera maior independ�ncia e autodirecionamento. Esta abordagem � central para o m�todo Montessori.
Existem tamb�m evid�ncias de que as crian�as em salas de aula que usam apenas materiais de aprendizado Montessori oficiais apresentam melhor desempenho do que em salas de aula com outros tipos de objetos educacionais, o que indica que o projeto caracter�stico realmente beneficia o aprendizado.
A neurocientista Solange Denervaud, do Centro Hospitalar Universit�rio de Vaud, na Su��a, e ex-professora que seguia o m�todo Montessori, tem a mesma impress�o positiva. Em um estudo recente, ela concluiu que crian�as que frequentam escolas Montessori tendem a apresentar maior criatividade, o que parece estar ligado a melhores resultados acad�micos.
Embora Denervaud n�o tenha conseguido reunir uma amostra totalmente aleat�ria de estudantes, ela tentou garantir a compara��o de crian�as com intelig�ncia e antecedentes socioecon�micos similares, eliminando alguns dos fatores de influ�ncia.
Denervaud suspeita que as vantagens sejam derivadas da experi�ncia das crian�as ao assumirem a coordena��o das suas atividades de aprendizado desde cedo, da maior oportunidade de encontrar solu��es pr�prias para os problemas e do aprendizado a partir dos erros.
Todos esses processos devem incentivar o pensamento mais flex�vel. "� um espa�o seguro para tentativa e erro", segundo ela.
O sucesso dos alunos Montessori pode refletir todos esses benef�cios?
Marshall afirma que � algo a ser visto com reservas, j� que ainda n�o temos evid�ncias convincentes sobre os benef�cios de longo prazo. J� Denervaud � mais positiva: considerando seus resultados, ela acredita que a educa��o Montessori pode ajudar as pessoas a ter sucesso em setores mais criativos.
"Quando estamos na escola, construimos a arquitetura da mente", afirma ela. Por isso, faria sentido que as pessoas que aprenderam a ser automotivadas, flex�veis e cooperativas com pouca idade tenham vantagens ao longo da vida, aponta Denervaud.
A marca Montessori
Sejam quais forem os verdadeiros benef�cios do m�todo, existe certamente algo de atraente sobre a ideia central — e seus proponentes tiveram enorme sucesso na difus�o da sua mensagem de uma inf�ncia liberada e autodirecionada, livre da tirania da educa��o convencional.
Maria Montessori foi incans�vel na promo��o do seu m�todo e seus sucessores continuam a dinfundir as ideias dela pelo mundo.
"[Montessori] tornou-se uma ‘marca’ n�o por acidente", explica Gianfranco Marrone, professor de semi�tica — o estudo dos sinais e dos s�mbolos — da Universidade de Palermo, na It�lia.
Ele indica o crescimento das marcas e do marketing desde os anos 1980. O nome Montessori, segundo ele, � agora associado � educa��o de alta qualidade e at� � uma filosofia de vida, o que vem atraindo muitos pais.
Mas, ironicamente, muitas escolas hoje at� adotam o nome de Maria Montessori, mas empregam os m�todos dela apenas de forma parcial. Isso ocorre porque o nome n�o � uma marca registrada.
Embora existam institui��es Montessori oficiais em diversos pa�ses que oferecem treinamento e certifica��o de professores, isso n�o � necess�rio para que as escolas adotem a denomina��o na hora de fazer publicidade.
"� cada vez mais dif�cil encontrar educa��o autenticamente Montessori", afirma L’Ecuyer. Ela teme que algumas escolas possam estar simplesmente seguindo uma tend�ncia, sem realmente adotar os princ�pios de autonomia das crian�as ou de dura��o das sess�es de aprendizado. Estes fatores podem ter grande influ�ncia sobre os resultados.
A falta de consist�ncia na aplica��o do m�todo pode explicar por que existem varia��es nas avalia��es dos benef�cios do m�todo Montessori, incluindo casos em que n�o foram observadas vantagens sobre outros sistemas educacionais.
Marshall � mais otimista sobre essas mudan�as. Ela concorda que as diferentes abordagens, �s vezes, podem desvirtuar as avalia��es do m�todo Montessori, mas tamb�m reconhece que o movimento talvez precise adaptar-se �s mudan�as sociais e tecnol�gicas.
Os aparelhos eletr�nicos e seus muitos usos na educa��o s�o um exemplo. "N�o � um assunto sobre o qual ela poderia ter escrito", defende Marshall.
Mais de 100 anos depois que Maria Montessori abriu sua primeira escola, os educadores ainda discutem suas teorias, que continuam a inspirar pesquisas s�rias. Este fato, por si s�, j� � um testemunho da import�ncia do trabalho da educadora italiana.
E, considerando a motiva��o trazida pelos recentes resultados, essas discuss�es provavelmente prosseguir�o por mais um s�culo.
* David Robson � escritor de ci�ncias e autor do livro O Efeito da Expectativa: Como o seu Pensamento Pode Transformar sua Vida (em tradu��o livre do ingl�s), publicado no in�cio de 2022. Sua conta no Twitter � @d_a_robson.
** Alessia Franco � escritora e jornalista especializada em hist�ria, cultura, sociedade, narra��o de hist�rias e seus efeitos sobre as pessoas. Sua conta no Twitter � @amasognacredi.
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.
Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxexp1mgzldo