
Na primeira pessoa, o desabafo de quem tem muito a dizer. Uma psic�loga de Belo Horizonte levou o cora��o para a ponta dos dedos e escreveu livro sobre o filho autista. Pedro Ivo, de 26 anos, mineiro da capital, � um dos cerca de 2 milh�es de brasileiros abatidos pela disfun��o global do desenvolvimento. Segundo a Organiza��o das Na��es Unidas (ONU), s�o 70 milh�es de pessoas com autismo no planeta. O Centro de Controle e Preven��o de Doen�as, nos Estados Unidos, aponta que h� um autista para cada 110 indiv�duos no mundo – o que faz a s�ndrome ser mais comum que Aids, c�ncer e diabetes juntos. M�nica Santos de Oliveira, de 53 anos, d� testemunho visceral sobre os desafios na lida com o rebento, imerso em si mesmo. Pedro Ivo – autismo em prosa e verso (Ed. Getsemani), a ser lan�ado em mar�o, � leitura para os fortes.
“O corpo, como que querendo al�ar voo, acompanhava a alma que n�o parecia se encontrar na Terra, tamanha a aus�ncia daquele menininho que demonstrava t�o pouco interesse pelas coisas”, diz uma das p�ginas iniciais, convite para mergulho em hist�ria de vida arrebatadora. Imposs�vel manter-se distanciado, profissional apenas, no avan�ar dos cap�tulos. Que o diga a revisora Patr�cia Sathler, de 30. “Em princ�pio, a gente recebe o trabalho profissionalmente. Aos poucos, com a leitura, foi imposs�vel n�o se envolver com o drama e com o testemunho de vida de m�e e filho”, diz.
Patr�cia revela predile��o pelo livro, entre os revisados por ela. N�o pelo estilo – n�o h� nenhum virtuosismo liter�rio na obra –, mas, especialmente, pela simplicidade da escrita e verdade impressa na soma e for�a dos sentimentos descritos na saga de 26 anos e 130 p�ginas. O produtor editorial Salvador Santana, de 50, pai de dois filhos, conta que se sentiu tocado no primeiro momento que soube da hist�ria da psic�loga. “� uma li��o de vida. M�nica aprendeu a viver com o filho Pedro Ivo, com seu crescimento monitorado 24 horas por dia.”
No dia da entrevista, M�nica n�o p�de falar ao Estado de Minas. Precisou correr ao hospital para ver o filho, com um corte na cabe�a. Queda da pr�pria altura nas aulas de capoeira. Uma convuls�o na parte da tarde levou Pedro Ivo, o Pep�, ao ch�o. Resultado: seis pontos pr�ximo da orelha esquerda. Pela manh�, no dia seguinte, a psic�loga falou da luta contra as convuls�es. “Desde os 10 anos. �s vezes, uma por semana. �s vezes, todos os dias. E mais de uma vez por dia”. Nem os 18 comprimidos di�rios de f�rmulas diversas d�o conta de controlar as crises. H�, no entanto, um aparelho chamado VNS que, no Brasil, custa R$ 115 mil.
“� um estimulador neuro vagal. Um marca-passo que ajuda no controle das convuls�es. Mas n�o temos dinheiro para o aparelho”, lamenta. Lamento que se desfaz num sorriso, com a chegada de Pedro Ivo � sala. Vestido de pijama, com camisa azul – sua cor predileta –, o mo�o ocupou sua poltrona de �nico lugar, “o trono de Dom Pedro I e �nico, imperador da minha vida”, brinca M�nica. De olhar distante, Pedro coloca os p�s sobre banqueta de centro e toma conta do ambiente.
Imposs�vel ficar indiferente � presen�a de Pedro. Aparentemente, um jovem como outros tantos da cidade, de futuro. � bonito, delicado, tem os olhos azuis e o cabelo curto, aparado pela m�e por meio de m�quinas 1 e 2. “Ele gosta. Fica bem para ele”, sorri, carinhosa. Pedro me toma a m�o esquerda e segura-a. Passamos um tempo do encontro, assim, de m�os dadas. Foi dif�cil dar ouvidos �s hist�rias de M�nica sentindo a m�o de Pedro Ivo t�o cheia de vida. Silencioso, o mo�o aceitou os carinhos da m�e e os disparos da c�mera fotogr�fica.
DEUS E O PARA�SO
A psic�loga fala da segunda gravidez, quando Pedro Ivo estava com 10 anos. “Estava com um m�s. Sonhei com um menino brincando na sala. De repente, ele parou e me disse: ‘N�o vou. N�o perten�o a essa fam�lia’. Passou pouco tempo perdi o beb�.” M�nica revela n�o ter religi�o. “Acredito em Deus, mas n�o sei quem ele �”, diz. S�o in�meras as passagens marcantes ao lado do filho. Uma, por�m, n�o lhe sai da cabe�a. “Ele tinha 12 anos. Dei uma surra nele com os sapatos que ele usava. Ele passou quatro anos sem usar cal�ados.”
Teve tamb�m a vez em que, ainda crian�a, Pedro Ivo levou muitas palmadas da m�e, desesperada sem dar conta do berreiro dele. M�nica conta que ele parou de chorar e, pela primeira vez, a abra�ou. Entre os desabafos, h� par�grafo cortante que diz: “Muitas vezes, assisti e convivi com pessoas que perderam precocemente seus filhos, por acidente ou doen�a. Percebi que a dor � imensa, mas h� um momento em que se enterra o seu morto. No meu caso, o que senti, me perdoe, � que eu n�o tinha nem mesmo esse direito”.
Em um mundo distante
Pedro se cansa do assunto, da entrevista na sala do apartamento do Bairro Santo Ant�nio, na Regi�o Centro-Sul. Deixa o ambiente para se acomodar no quarto, abra�ado a um brinquedo, jogo de boliche. Nas p�ginas que emocionam, desabafo de m�e, a psic�loga critica a falta de preparo da sociedade para lidar com o autista. Revela que trocou Belo Horizonte por Alcoba�a, na Bahia, nos anos 1990, em busca de paz e tranquilidade para a fam�lia. “J� que em BH n�o tinha o menor preparo para lidar com o meu filho, fomos em busca do para�so. L� tamb�m n�o tinha preparo, mas tinha o mar”, escreve.
Disposta a “rasgar o cora��o e as amarras”, M�nica n�o poupa a fam�lia. � dura com o ex-marido, que, segundo ela, n�o deu conta de lidar com o problema de sa�de do filho e “afastou-se, simplesmente”. Ressalta que por meio da Justi�a “pode-se cobrar ajuda financeira, mas n�o se pode cobrar amor”. A psic�loga lamenta ter ouvido de parente pr�ximo que o melhor a fazer com o “monstro” que ela tinha em casa era intern�-lo, escond�-lo da sociedade. Com o ex-marido, pai de Pedro Ivo, n�o h� contato desde 2008.
M�nica diz que a principal for�a sempre veio de fora. Cita Rosa, a “secret�ria” que atualmente a ajuda a cuidar do filho. Tamb�m dedica escrita carinhosa �s doutoras Bernadete Tassara e Andrea Juli�o. Agradece � m�e, Ignez Montepulciano, ao Gustavo Maciel, personal de Pedro, e aos respons�veis pela escola DiaDia, onde Pedro fez avan�os dos mais significativos nos �ltimos anos. Atualmente, o mo�o tem se revelado excelente nadador e com forte inclina��o para a m�sica. Tem aulas de circo e capoeira, enquanto a m�e, com a publica��o autobiogr�fica, cuida do sonho de compartilhar emo��es e ajudar outras m�es.
No cinema
Veja alguns filmes que tratam do assunto
» Rain Man (1988) - Com Tom Cruise e Dustin Hoffman. Os conflitos entre dois irm�os muito diferentes.
» O nome dela � Sabine (2007) - Document�rio de Sandrine Bonnaire sobre sua irm� autista.
» Temple Grandin (2010) - hist�ria real de uma autista que conseguiu fazer doutorado.