
Aos 100 anos, Julieta Margarida tem prazer em dividir suas hist�rias com familiares e amigos de Ravena, distrito de Sabar�. As lembran�as, quase sempre, v�m acompanhadas de sorrisos. Uma delas, por�m, a deixa com os olhos marejados. E a voz custa a sair. Quem a conhece bem logo diz que � saudade. “De Te�filo Escol�tico Severino”, entrega a mulher. Os dois foram casados por tr�s d�cadas e meia. Trabalharam na lavoura e tiveram 23 filhos – a �ltima gesta��o foi de g�meos. O sonho do casal, de envelhecer lado a lado, se transformou em pesadelo na tarde de 5 de abril de 1963, quando um caminh�o em alta velocidade atropelou o agricultor. O corpo dele ficou dilacerado. Te�filo foi a primeira v�tima da Rodovia da Morte, como foi rotulado o trecho de 110 quil�metros da BR-381 de Belo Horizonte a Jo�o Monlevade.
De l� para c�, os acidentes se tornaram frequentes. Na maior trag�dia, em fevereiro de 1996, um �nibus caiu da ponte sobre o Rio Engenho Velho: 31 pessoas morreram e 16 ficaram gravemente feridas. O poder p�blico n�o tem estat�stica consolidada de desastres no trecho. O balan�o mais completo, o da Pol�cia Rodovi�ria Federal (PRF), se refere apenas aos �ltimos seis anos. Mas � o bastante para revelar n�meros assustadores. De 2007 a 2012, foram 9.149 acidentes e 461 mortes. O total de �bitos � ainda maior, porque o levantamento exclui o saldo de feridos que perderam a vida em ambul�ncias ou em leitos de hospitais. Na primeira reportagem de s�rie sobre os 50 anos do primeiro �bito na Rodovia da Morte, o Estado de Minas relata dramas e traumas de quem perdeu parentes no trecho e mostra que a estrada, cuja duplica��o est� com editais suspensos, continua oferecendo risco a motoristas e pedestres.
“Foi uma cena horr�vel.” � assim que Julieta Margarida descreve o acidente que matou seu marido, Te�filo. Na tarde do acidente, ela e o companheiro tinham ido a uma ro�a vizinha buscar espigas de milho. Queriam fazer fub�. Por volta das 16h30, o casal foi surpreendido por um caminh�o, com placas de An�polis (GO), pr�ximo ao trevo de Ravena. Desgovernado, o ve�culo passou por cima do agricultor e por pouco n�o atingiu sua companheira. O motorista s� conseguiu parar o caminh�o a um quil�metro de l�. Apavorado, fugiu. Outras tr�s pessoas estavam na boleia: um homem, uma mulher e um adolescente. Levados a uma delegacia de Sabar�, eles confirmaram que o motorista guiava o caminh�o em alta velocidade.
Imprud�ncia
Um dos caronas revelou aos policiais que havia suplicado ao condutor, minutos antes do acidente, que tirasse o p� do acelerador porque o trecho era bastante sinuoso. O apelo foi ignorado. E Te�filo pagou com a vida pela imprud�ncia do desconhecido. O atropelamento impediu o lavrador de ver como sua fam�lia se multiplicaria. “Ao todo s�o 38 netos, 41 bisnetos e tr�s tataranetos”, conta Julieta. “Se vivo fosse, papai iria gostar de saber como mam�e continua vaidosa”, acrescenta Olga, uma das filhas do casal. Ela diz que a m�e faz quest�o de pintar as unhas, uma vez por semana, e sempre na cor vermelha. Diz mais: “O par de brincos � acess�rio certo. Tal qual o perfume, que ela usa todos os dias”.
Em novembro passado, quando festejou seus 100 anos, a ex-lavradora deu trato ainda melhor no figurino. Quem dera a festa fosse completa: faltou Te�filo. “A rodovia precisa ser duplicada”, cobra a vi�va. Desde a constru��o da estrada, por�m, ocorreram poucas mudan�as significativas para garantir a seguran�a dos usu�rios. Projetada no governo do presidente Juscelino Kubitschek (1902–1976), no fim da d�cada de 1950, a rodovia foi constru�da para encurtar o caminho da capital mineira ao Leste do estado, ao Esp�rito Santo e ao Sul da Bahia. Em 1964, no plano de numera��o das BRs, passou a ser parte da 262. Na �ltima d�cada, o governo concluiu que o melhor seria integr�-lo � 381.
Para usu�rios e especialistas, por�m, o nome apropriado � Rodovia da Morte. O engenheiro Herzio Mansur, professor de log�stica e conselheiro do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), considera o “modelo de trag�dias anunciadas”, diz. “Esse trecho � um dos grandes assassinos que agem em Minas. Quando a estrada foi feita, a realidade do fluxo de ve�culos era outra”, opina. “Hoje, a estrada n�o comporta o movimento. Ali�s, h� anos que a BR se mostra ineficiente. � um modelo ultrapassado”.
