
Deusdita Ferreira de Siqueira, de 55 nos, e o marido, Eurico Alves Guedes, de 65, s�o nascidos e criados numa regi�o conhecida como Retiro, em Santana do Riacho, a 100 quil�metros de Belo Horizonte. A fam�lia deles vive ali h� mais de 150 anos e � considerada parte da popula��o tradicional do lugar, mas depois da transforma��o da �rea em unidade de conserva��o integral, com a cria��o do Parque Nacional da Serra do Cip�, a vida mudou para pior.
Na semana passada, o casal, que gastou R$ 3 mil na constru��o de um barrac�o para guardar as ferramentas em seu terreno, foi multado em R$ 2 mil. Eles ser�o obrigados a jogar a pequena edifica��o no ch�o. A situa��o, que se repete em outras comunidades tradicionais e quilombolas que vivem em unidades de conserva��o federais e estaduais em Minas, � um dos efeitos colaterais da falta de regulariza��o fundi�ria nesses territ�rios, considerada pelo diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas (IEF) em Minas, Bertholdino Apol�nio Teixeira J�nior, o maior entrave para a gest�o desses territ�rios.
“As coisas come�aram a mudar depois que veio o parque. As pessoas vieram e disseram que a partir de amanh� a gente n�o ia mais poder trabalhar no terreno. A gente continuou um tempo, mesmo com a amea�a deles. Depois, eles amea�aram nos despejar e paramos com tudo”, lamenta Deusdita. Na semana passada, o parque passou a exigir dos propriet�rios das terras que apresentem documentos e hor�rios nos quais pretendem entrar e sair do territ�rio.
O impacto das unidades de conserva��o integral na vida de povos e comunidades tradicionais deveria ter sido reduzido com a aprova��o da Lei Estadual 21.147, de janeiro de 2014, que institui uma pol�tica estadual para o desenvolvimento sustent�vel dessa popula��o em Minas. Mas n�o � isso o que vem ocorrendo. “A in�rcia institucional leva gente que vive h� gera��es nos lugares transformados em �reas protegidas a ser vista como infratora. Elas s�o obrigadas a deixar o seu modo de vida. Isso leva, em muitos casos, � migra��o, quando n�o � expuls�o violenta dessas pessoas”, explica Beatriz Vianna Mendes, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade federal de Minas Gerais (UFMG).
PROBLEMAS SEM FIM De modo mais ou menos generalizado, essa � a hist�ria que se repete no Parque Nacional da Serra do Cip�, no Parque Nacional das Sempre Vivas, na Reserva Biol�gica da Mata Escura (unidades de conserva��o federais). E tamb�m nos parques Verde Grande, Lagoa do Cajueiro e Mata Seca, no Norte de Minas, onde est�o concentradas 70% das unidades de conserva��o integral estaduais. A reportagem do EM visitou comunidades tradicionais que est�o em terrenos englobados em unidades de conserva��o e por isso viraram tamb�m �reas de conflito, perto do Projeto Ja�ba, em Matias Cardoso, no Norte de Minas. Um dos locais � o territ�rio dos remanescentes do Quilombo da Lapinha, que totaliza 126 fam�lias.
Conforme narrativa do presidente da Associa��o Quilombola de Lapinha, Jos� Teodorico Borges, os remanescentes de escravos sempre viveram na regi�o, tirando o sustento da pesca, ca�a, do plantio das vazantes e criando gado “na solta”. Mas, em outubro de 1998, os 1.440 hectares reivindicados pelos quilombolas foram anexados ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro (20.500 hectares no total, transformando-se numa unidade de conserva��o.
“Ficamos encurralados pelo Parque Lagoa do Cajueiro. Estamos espremidos, sem poder plantar ro�as”, protesta o presidente da Associa��o Quilombola de Lapinha, Jos� Teodorico Borges, que planta uma horta num terreno de quatro hectares, situado perto da vazante do Rio S�o Francisco, “dividido” entre pelo menos 15 pequenos agricultores.
Outro morador da regi�o, Jesu�to Jos� Gon�aves, de 63, reclama que, al�m de acabar com antigos costumes dos pequenos agricultores, como o de “criar gado na solta”, a cria��o da unidade de conserva��o do Parque Lagoa do Cajueiro trouxe dificuldades inclusive para cozinhar os alimentos. “At� a retirada de lenha no mato para o fog�o das casas � controlada. A gente s� tem direito a 14 metros de lenha por ano. � muito pouco”, lamenta.
Extrativismo e viol�ncia
No Parque Nacional das Sempre-Vivas, que abrange os munic�pios de Bocaiuva, Olhos d’�gua, Buen�polis e Diamantina, no Vale do Jequitinhonha e na Regi�o Central do estado, tamb�m existem conflitos envolvendo interesses das comunidades do entorno. Segundo o procurador da Rep�blica em Sete Lagoas, Ant�nio Arthur Barros Mendes, a �rea, tr�s vezes maior do que a do Parque Nacional da Serra do Cip�, “tem tens�es que come�aram a ocorrer em fun��o da pr�tica de abusos, a princ�pio graves, envolvendo viol�ncia emocional, uso ostensivo de armas e amea�as em geral”.
A gest�o do parque � de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conserva��o da Biodiversidade (ICMBio), que n�o respondeu �s tentativas da reportagem de falar sobre as dificuldades e conflitos das unidades de prote��o federais.
“O territ�rio n�o tem regulariza��o fundi�ria. Isso gerou tensionamento com comunidades que usavam parcelas do territ�rio para algumas atividades extrativistas”, informa o procurador. Em outubro de 2013, o Minist�rio P�blico Federal come�ou a investigar os fatos ocorridos e poder� entrar com uma a��o de danos morais coletivos contra o parque para proteger a comunidade.
Na semana passada, a Comiss�o de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais visitou a comunidade quilombola Vargem do Inha�, em Diamantina (Vale do Jequitinhonha) e promoveu uma audi�ncia p�blica na cidade. Moradores dessa e de outras comunidades tradicionais se reuniram para cobrar o direito de continuar a exercer suas atividades em �reas de uso comum do Parque Nacional das Sempre-Vivas e relatar amea�as.
CONFUS�O O chefe do Parque Nacional da Serra do Cip�, Fl�vio L�cio Braga Cerezo, afirma que a exig�ncia de documenta��o e de informa��o de hor�rios de chegada e de sa�da para que os propriet�rios entrem na reserva pode ter sido “confus�o da portaria”. Segundo ele, os moradores est�o proibidos pela lei de fazer novas edifica��es no local.
O Instituto Estadual de Florestas (IEF), respons�vel pela gest�o das unidades de conserva��o criadas no estado, informou que v� com “certa preocupa��o” a situa��o dos parques estaduais no Norte de Minas, uma vez que “a principal fun��o � a conserva��o da rica fauna e flora local, bem como das cole��es d'�gua formadas por lagoas e �reas alagadas �nicas do Rio S�o Francisco”. Mas que tamb�m busca acordo com as popula��es tradicionais das �reas.