
“Ei, tia, me d� um trocado?”, pede Luan* (nome fict�cio), de 8 anos. Diante da recusa da rep�rter, que acaba de pisar no abrigo do Bairro C�u Azul, o garoto n�o se faz de rogado. “Tia, tia! Tem um bombom a�?”, torna a pedir, com insist�ncia. Luan � observado a uma certa dist�ncia por Renato*, seu irm�o mais novo, de 6 anos. Mais t�mido e bastante observador, ele ainda chupa o dedo. “N�o vou falar nada”, j� vai avisando o menino.
� uma sexta-feira e os irm�os est�o mais agitados do que em outros dias. Na v�spera do fim de semana, como j� ocorre h� um ano, aguardam a chegada do pai, o servente de pedreiro Alberto, de 32. Ele ir� levar os filhos de volta para casa, onde v�o se encontrar com a m�e, a auxiliar de cozinha Bruna, que est� trabalhando. Ela n�o p�de buscar os garotos, mas a fam�lia finalmente estar� completa, depois de dois anos separada por determina��o do Juizado da Inf�ncia e da Juventude. De repente, toca a campainha no abrigo. “� ele, � ele!”, gritam os meninos, em coro.
Com o corpo coberto por tatuagens e bermud�o abaixo dos joelhos, Alberto chega ao abrigo na hora marcada. Apesar do hist�rico como ex-dependente qu�mico e enquadrado pela Lei Maria da Penha, acusado de ter agredido a mulher, o pai das crian�as aparenta tranquilidade. � o �nico capaz de impor respeito � dupla, famosa pelos problemas no abrigo e na escola. Naquele dia, Luan havia sido expulso por bater na professora. Ao ouvir falar sobre o assunto da viol�ncia, o ca�ula aproveita a deixa. Tira o dedo da boca e pede, com a voz sumida: “Pai, voc� vai parar de bater na minha m�e, fal�.” � a �nica vez em que o garoto se abre para dizer algo. Em seguida, torna a se trancar no seu mundo.
REFORMA DE CASA Depois de estender um pacote de salgadinhos aos garotos, conseguindo o sil�ncio deles, Alberto confirma ter largado a depend�ncia qu�mica do crack h� sete meses, por vontade pr�pria. Com R$ 520 mensais assegurados pela prefeitura, ele est� reformando o barrac�o de madeirite onde mora. A ideia � construir uma casa com tr�s c�modos e banheiro. Antes, os garotos n�o tinham acesso a cama nem a chuveiro quente. Em paralelo, a m�e conseguiu um emprego de cozinheira e, assim que concluir a reforma, Alberto tamb�m ser� empregado. “Disseram que nossos meninos estavam pedindo dinheiro na rua, mas a minha mulher pagava uma vizinha para tomar conta deles enquanto ela trabalhava. Ela nunca abandonou nossos filhos”, afirma ele, passando a apresentar as notas fiscais dos gastos com o material de constru��o.
Aos trancos e barrancos, a fam�lia de Luan e Renato est� conseguindo se recuperar, por interm�dio do Servi�o de Apoio � Reintegra��o Familiar (Sarf), vinculado � Secretaria Municipal Adjunta de Assist�ncia Social. Segundo a gerente Val�ria Cardoso, o universo de casos atendidos corresponde a 10% das crian�as abrigadas, ajudando apenas naqueles casos em que a reintegra��o para a fam�lia de origem ou extensa n�o pode ser feita diretamente pelo abrigo. “Estamos conseguindo restabelecer o direito de viver em fam�lia, que � o mais importante. Com a equipe de psic�logos e assistentes sociais, envolvemos o centro de sa�de do bairro, as reuni�es na escola e outros servi�os. Quando a crian�a retorna para casa, ainda a sacompanhamos durante seis meses para ver se deu certo”, explica.

Na quinta-feira, Roberto Cassimiro, de 40 anos, deu uma passada r�pida no abrigo no Bairro Carlos Prates, na Regi�o Noroeste de Belo Horizonte. Apesar de ainda n�o ter chegado o s�bado, o padrinho afetivo fez quest�o de acompanhar o afilhado Maicon* (nome fict�cio), de 12 anos, na festa da formatura da escola. Os dois se tornaram grandes amigos desde o �ltimo Natal, quando a mulher de Roberto, a professora Aline, inscreveu-se no programa de Apadrinhamento Afetivo do Juizado da Inf�ncia e da Juventude, parceria com a Pastoral do Menor. Cat�licos, Roberto e Aline batizaram Maicon na igreja onde se casaram, tornando-se seus padrinhos afetivos e efetivos.
“Tchau, tio!”, despede-se Maicon, sem nem olhar para tr�s. Na mochila estudantil leva apenas o essencial. Na casa dos padrinhos, onde passa os fins de semana e as f�rias, Maicon conta com um quarto decorado com motivos masculinos, roupas e brinquedos. Enfim, tudo o que precisa para ser feliz. “O certo � isso mesmo. Se a crian�a gostasse do abrigo a ponto de n�o querer sair, era sinal de que havia algo de errado com ela”, compara o coordenador da casa, o psic�logo Frederico Suppa.
Ao buscar o afilhado Maicon, Roberto revela que ele e a mulher est�o inscritos desde abril na fila da ado��o, com perfil de prefer�ncia para adotar uma crian�a de at� 5 anos. Ao conhecer o adolescente, por�m, o casal encantou-se com o garoto centrado e estudioso. Sem no��o geogr�fica, Maicon chegou a manifestar o desejo de pedalar de bicicleta at� o servi�o do padrinho, do Carlos Prates at� o Cai�ara. Em seguida, confessou desconhecer o shopping das imedia��es, o Del-Rei, e menos ainda o mar. “A vida dele n�o andou mais de cinco quil�metros no entorno do abrigo”, comenta o padrinho.
“Conforme prev� o Estatuto da Crian�a e do Adolescente, o abrigo teria de ser o �ltimo recurso. � danoso o afastamento de uma crian�a da sua fam�lia. Depois que ela entra no abrigo, leva pelo menos quatro meses para conseguir sair”, critica o coordenador de outra casa, Mizael de Jesus Lima Cardoso. Ele explica j� ter recusado mais de 10 crian�as, que chegaram sob acusa��o de neglig�ncia das fam�lias, levadas pelos conselhos tutelares. “J� chamaram a pol�cia para mim. Mas n�o vou abrigar uma crian�a s� porque a m�e saiu para uma festa e deixou os meninos sozinhos em casa. � preciso tentar, antes, ajudar essas fam�lias”, diz.
PROBLEMAS DE SA�DE Diante do n�mero grande de crian�as abrigadas, acima de 700, as equipes respons�veis estariam deixando a cargo das casas de acolhimento o acompanhamento do desenvolvimento familiar dos internos. H� casos de crian�as encaminhadas �s institui��es sem certid�o de nascimento ou documento de identifica��o, segundo Mizael. “Uma vez, recebi uma menina com diabetes e catarata em �ltimo grau. Fomos verificar e a fam�lia era muito humilde e sem recursos. A m�e era analfabeta e n�o sabia o que fazer com a filha, mas mantinha um v�nculo incr�vel com a crian�a. Ela via a m�e e chorava aos prantos. O problema dela era de sa�de, e n�o de interna��o”, avalia.