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Estado de Minas PELO DIREITO � AUTENTICIDADE

Transexuais falam sobre preconceito, desinforma��o e entraves burocr�ticos

Para a medicina, o transexual tem uma doen�a chamada disforia de identidade de g�nero. O processo jur�dico para altera��o do documento de identidade pode demorar de seis meses a um ano


postado em 15/03/2015 06:00 / atualizado em 15/03/2015 08:48

"As pessoas dificilmente desconfiam que sou transexual. Por um lado, quando voc� se imp�e, tudo flui tranquilo e as coisas se tornam naturais" (Anna Valentina) (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A.Press)

Uma mo�a meiga e uma mulher quase feita. Um sorriso t�mido, bochechas rosadas e uma ruivice que chama a aten��o. Anna Valentina Lobato, de 22 anos, � macapaense, mas se sente em casa no apartamento onde vive, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte. “Sou tecnicamente perturbada”, afirma ela, debochando. A afirmativa se refere � Classifica��o Internacional de Doen�as e de Problemas Relacionados � Sa�de (CID), com a qual Anna se sente frustrada. “Como transexual, para a medicina tenho uma doen�a: disforia de identidade de g�nero”. Mas a biologia pouco importa para ela. As vezes em que a sua feminilidade foi colocada em pauta, ela n�o hesitou em se afirmar como uma mulher genu�na. “Sou uma mulher de verdade. Fico questionando como � ser uma mulher de mentira. Isso n�o existe”. Quem � capaz de discordar dela?

Anna Valentina tem a mesma estirpe da mineira Lea T., a top model transexual que ficou famosa mundialmente em 2010 ao estampar a capa da revista francesa Vogue. Nas redes sociais, Anna faz pose, divulgando sua beleza inquestion�vel, al�m de militar a favor das transexuais e travestis. “Tenho me politizado mais, buscando a legitimidade da classe”, declara. Ela conta que para se sentir confort�vel com a exposi��o, um processo �rduo de autoconhecimento foi precedido. Tudo come�ou com a moda da cal�a skinny: tratou de comprar logo um par delas, acompanhado de alguns itens de maquiagem. Aos 18 anos, quando cursava o curso de design de produto e gr�fico, ainda em Macap� (AP), Anna deixou o cabelo crescer at� a altura do maxilar, em um dos primeiros atos de manifesta��o visual. “Na faculdade a maioria das pessoas me tratava no feminino, com exce��o dos professores. Vi como m� vontade. Meu nome � Anna Valentina”.

A mo�a chegou em Belo Horizonte em janeiro de 2013 em busca de independ�ncia dos pais, quando tinha 20 anos. A faceta feminina estava mais evidente: o cabelo, tingido de loiro-platinado, estava abaixo dos ombros, e o batom vermelho era como seu melhor amigo quando combinado a pe�as de roupas retr�. E Anna buscava seu lugar na sociedade de forma retra�da, passando despercebida diante dos olhares preconceituosos. “As pessoas dificilmente desconfiam que sou transexual. Por um lado, quando voc� se imp�e, tudo flui tranquilo e as coisas se tornam naturais. Mas por outro, se eu simplesmente me fundir �s outras mulheres, como vou buscar meus direitos como mulher trans? Quero que todas possam conviver em sociedade sem o risco de ser linchadas”, questiona ela, que est� aguardando o procedimento para altera��o do nome no registro civil.

JUSTI�A LENTA O processo jur�dico para altera��o do documento de identidade pode demorar de seis meses a um ano. “� preciso fazer v�rias comprova��es de que voc� � voc�”, exp�e a mo�a. Anna j� apresentou a documenta��o necess�ria na Defensoria P�blica de Belo Horizonte para a troca oficial do nome, e acredita que este � um dos passos mais importantes para a sua legitimidade como mulher.

O universit�rio mineiro Raul Avlis, de 22, tamb�m busca autenticidade. Embora j� tenha extrapolado a maioridade, ele evita frequentar lugares onde seja obrigado a apresentar a carteira de identidade. Da �ltima vez em que isso aconteceu, quase foi barrado no baile de formatura do ensino m�dio. Se ser jovem significa finalmente atingir a idade certa para se jogar nas baladas, tirar carteira de motorista, entrar na universidade e assistir a filmes antes proibidos, nada disso � poss�vel para o rapaz. No grande dia do baile de formatura, Raul se arrumou todo para a festa, com a melhor camisa e cal�a social. Na portaria, entretanto, o seguran�a n�o queria autorizar sua entrada. Ao conferir o RG, estranhou ver a foto de uma mulher ao lado do nome feminino de batismo. “O guarda olhava para mim, depois checava o RG. Tornava a me olhar e conferia a carteira. Por fim, come�ou a questionar se eu era eu mesmo”, conta ele, que prevendo poss�veis constrangimentos, chegou a cogitar se ausentar da pr�pria formatura.

Os transexuais se definem como pessoas que nasceram com a mente masculina no corpo de uma mulher, ou vice-versa. A propor��o reconhecida pelos estudiosos seria de 1/20 mil pessoas do g�nero masculino para feminino (MtF, express�o que vem do ingl�s male to female), que significa “de homem para mulher”. Em menor n�mero est�o casos como o de Raul, 1/50 mil, que v�o do feminino para o masculino. “Desde cedo sempre tive esse jeito mais moleque. Aos 4 anos, parei de usar vestidos e ficava jogando bola com os meninos”, conta o jovem, que nasceu em uma pequena cidade do interior mineiro e se assumiu como transhomem ao se mudar para BH, h� dois anos.

Por falta de recursos financeiros, Raul ainda n�o se submeteu a tratamentos com horm�nios para adquirir caracter�sticas ainda mais masculinas, tais como abd�men mais largo e pelos no rosto. Sua voz engrossou naturalmente e o jeito de andar � bem viril. No entanto, nem mesmo as tatuagens fortes, o estilo largado de vestir e o piercing no l�bulo da orelha esquerda passam o recado desejado. Ele ainda enfrenta contratempos no cotidiano. Comprar roupas tornou-se sin�nimo de sofrimento. “Nas lojas de departamentos, as vendedoras sempre me levam para a ala feminina. Com calma, explico que quero ir para a se��o masculina, mas outro dia uma senhora me indicou uma blusa rosa, cheia de decote e babados. N�o sei o que ela pensou. Talvez estivesse querendo me salvar, levar para o bom caminho”, ironiza, sem disfar�ar a tristeza.

Ref�m da boa vontade


A maior luta de Raul Avlis tem sido ser reconhecido como homem no curso de hist�ria da PUC Minas, onde se matriculou este ano. Ele � o segundo transexual a tentar ser chamado pelo nome social no Instituto de Ci�ncias Humanas, no c�mpus Cora��o Eucar�stico, Regi�o Noroeste de BH. O primeiro pedido partiu da transmulher Rita Elizabeth, que, desde 2013, tenta ter o nome social reconhecido na chamada, provas e trabalhos, ainda sem resultado. No caso dela, toda vez que entra um novo professor no curso Rita entrega uma carta em m�os explicando a sua condi��o. “Se acontecer de n�o me chamarem pelo nome social, ignoro a chamada e depois da aula converso com o professor. Fico ref�m da boa vontade e da mem�ria de cada um, pois meu verdadeiro nome n�o est� escrito nos documentos da universidade”, afirma. H� 15 dias, a ouvidoria da PUC respondeu � solicita��o de Raul. “Se fosse da minha vontade usar o nome social, o coordenador do curso marcaria uma reuni�o com todos os professores, mas dependeria de cada um deles aceitar ou n�o”, diz o estudante. Segundo Carla Ferretti Santiago, diretora do Instituto de Ci�ncias Humanas, n�o h� restri��o de parte da universidade em rela��o � aceita��o de alunos transg�neros. Diante da solicita��o de dois alunos para que o nome social apare�a na lista de chamada, o assunto foi levado � an�lise da reitoria. “N�o se pode adulterar aleatoriamente a lista de chamada, que serve como um documento para o aluno, do ponto de vista jur�dico”, explica Carla. Segundo a diretora, algumas universidades p�blicas est�o resolvendo o impasse colocando o nome social entre par�nteses na chamada. A reportagem do Estado de Minas tentou conversar com os respons�veis pelas rela��es estudantis e assessoria de imprensa da PUC Minas, mas n�o obteve retorno.

Diante das dificuldades da PUC em lidar com a quest�o, Raul tomou a liberdade de conversar com cada um dos professores. Dos sete, conseguiu at� agora falar em particular com cinco e teve apenas uma recusa parcial. “Uma das professoras me trata super bem em sala de aula, mas disse que iria fazer a chamada usando a primeira s�laba do nome que consta no meu registro. Ela disse que isso seria o m�ximo que poderia ser feito para n�o me constranger”, diz. Digamos que o nome de registro de Raul fosse Berenice, a professora pronuncia “Ber�” e fica aguardando a resposta para ver se o aluno est� presente nas depend�ncias da sala.

Em rela��o aos colegas de turma, Raul encontrou resist�ncia praticamente nula. No abaixo-assinado em sala de aula, dos 60 alunos presentes somente dois deixaram de assinar a lista. Ao ser informados sobre o que estava ocorrendo, alguns chegaram a pedir desculpas a Raul por terem se referido a ele anteriormente no pronome feminino. Se prosseguir at� o fim do curso, conseguindo se formar, o rapaz pretende se tornar professor . “Se conseguir realizar meu objetivo e um dia receber uma aluna ou um aluno transexual, vou cham�-lo da forma que ele preferir ser identificado, al�m de oferecer o meu apoio. Para mim, � esse o principal papel de um professor na sociedade”, ensina.


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