A pot�ncia inconfund�vel da voz de Milton Nascimento se fez calma na tarde em que ele se despediu de seu principal parceiro musical. Ao chegar para o adeus a Fernando Brant, um dos maiores int�rpretes da m�sica popular brasileira estava visivelmente abatido. Milton entrou no Pal�cio das Artes, no Centro de Belo Horizonte, por volta das 13h30 e se manteve em sil�ncio. Cercado por rep�rteres, sinalizou que n�o falaria. Naquele momento, os versos escritos por Brant em Travessia, que, h� 48 anos, na voz do rouxinol, impulsionaram a carreira de ambos, poderiam bem traduzir a despedida: “Quando voc� foi embora, fez-se noite em meu viver”.
Os sonhos feitos de brisa daqueles meninos atravessaram d�cadas e se assentaram nos cora��es de tantos e tantos f�s Brasil afora. Mais que parceiros, eles foram amigos muito pr�ximos. “Guardo lembran�a do Fernando, de toda minha vida. N�o � s� um pouquinho aqui ou um pouquinho ali. Ele faz parte da coisa mais s�ria da minha vida, que eu aprendi com meus pais: a amizade. Desde que a gente se conheceu, foi sempre uma coisa muito forte. Cada coisa que acontecia nas nossas vidas, a gente compartilhava. Minha vida n�o teria sido t�o linda se n�o fosse esse tipo de amizade que surgiu, n�o s� do Fernando como de outros amigos de Belo Horizonte.”
TRAVESSIA Milton lembrou que Brant n�o aceitou de imediato o pedido para a primeira parceria entre eles, Travessia, que ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Can��o Popular em 1967. “A gente era t�o amigo que fui pra S�o Paulo e estava compondo numa tarde tr�s m�sicas: Pai Grande, Morro Velho e mais uma que falei ‘Essa n�o vou fazer a letra’. Fiquei pensando: ‘Tem um amigo meu em BH que quero que fa�a esta letra’. Vim para BH e falei com Fernando: voc� tem que fazer uma letra para uma m�sica minha. Ele falou: Voc� est� louco?! Passados meses, ele fez uma das coisas mais importantes das nossas vidas, que foi Travessia.”
Sobre essa parceria inaugural, Brant j� havia declarado, em entrevista: “Impulsionou nossa carreira. Com certeza, se n�o tivesse ocorrido a premia��o, eu poderia abandonar aquela primeira experi�ncia de letrista. Era algo fant�stico, os artistas que a gente admirava dos discos e do r�dio estavam todos l�, agora na condi��o de colegas. O neg�cio foi t�o forte, que antes de assinar contrato com uma gravadora brasileira, o Milton fechou com a norte-americana EMI Records. Com isso, me entusiasmei e o Milton me mandou outra melodia para colocar letra. Era a m�sica Outubro, que entrou no primeiro disco com Travessia. Fiquei tenso, pensando que, no m�nimo, teria de ser do mesmo n�vel da primeira composi��o. Outubro � uma outra vis�o de Travessia”.
A not�cia de falecimento do parceiro pegou Milton de surpresa. “Fui para a cama muito apavorado e, �s 5 horas da manh�, j� estava na estrada (do Rio de Janeiro para Belo Horizonte).” Milton n�o quis destacar uma can��o entre as tantas que fez com o parceiro, mas deixou clara a sintonia que existia entre eles. “O legado que ele deixa s�o todas as coisas que escreveu, as poesias, as palavras, o que a gente viveu juntos, o que n�o vivemos juntos – parcerias que ele fez com muitas outras pessoas. � o que h�. Fernando deve estar num lugar bem especial numa hora dessas”, afirmou Milton.
MICROFONE Ele tamb�m homenageou o amigo por meio das redes sociais, postando uma despedida virtual antes de viajar para a capital mineira: “As coisas que teria para dizer sobre o Fernando est�o escritas em nossas can��es e descritas nas vozes das pessoas que as colocam em suas bocas, na emo��o mais profunda que toca o cora��o. N�o estou falando somente de n�s, que temos o privil�gio do microfone, mas sim de todos juntos, seja no encontro generalizado de v�rios olhos e sentimentos, mas tamb�m no �ntimo de cada um. Do amor de irm�os, de amigos, de amantes e companheiros. � pureza rara e muita beleza. Quando diz uma coisa, ele acredita mesmo. Alma g�mea dos magos, alimento das estrelas, som. Mais que tudo, amigo”.
HOMENAGEM DO EM
O Estado de Minas publicou ontem no banner de sua p�gina no Facebook uma homenagem ao compositor Fernando Brant, al�m de postar um tributo. Com a caricatura do m�sico, assinada por Quinho, e os versos “Sou do ouro, sou voc�s, sou do mundo, sou Minas Gerais”, extra�dos da can��o Para Lennon e McCartney, o post foi compartilhado centenas de vezes por internautas. O mesmo ocorreu com o banner, que trazia o verso inicial de Travessia (Quando voc� foi embora, fez-se noite em meu viver), ao lado da imagem de seu autor. Escrita em 1967, Travessia marcou o in�cio da parceria entre Brant e Milton Nascimento.
REPERCUSS�O
“Quero deixar meus sentimentos aos familiares, amigos e f�s da m�sica e da poesia de Fernando Brant, lembrando um dos seus mais conhecidos versos: ‘Com a roupa encharcada e a alma repleta de ch�o, todo artista tem de ir aonde o povo est�’. Fernando cantou a nossa gera��o, o nosso povo e os nossos sonhos.”
DILMA ROUSSEFF,
presidente da Rep�blica
“Estou muito tocado, muito emocionado, porque o Fernando Brant � um homem da minha gera��o. Ele cresceu junto comigo, tivemos os mesmos sonhos, as mesmas ang�stias, as mesmas esperan�as. Deixou um legado inestim�vel na arte, na m�sica popular, mas tamb�m na pol�tica. Sempre foi um democrata, lutou conosco pela redemocratiza��o, ent�o vai deixar uma lacuna enorme.”
FERNANDO PIMENTEL,
governador de Minas
“Uma perda inestim�vel. Fernando Brant carregava consigo a alma mineira e a carregava por todo o Brasil, na sua singeleza e profundidade. Fernando era um homem p�blico na dimens�o maior que isso pode expressar”
A�CIO NEVES,
senador (PSDB-MG)
“Minas perde parte de sua m�sica, de sua hist�ria e de sua cultura com a morte de Fernando Brant. Ele soube como poucos falar do nosso jeito. Com o Clube da Esquina, descreveu a igreja, um muro branco, um voo p�ssaro. Fica-nos seu legado, sonoro e po�tico, “repert�rio de vida e can��es”.
Antonio Anastasia,
senador (PSDB-MG)
“Fernando Brant era um g�nio. Foi e sempre ser� um �cone e refer�ncia para a m�sica, a poesia e a literatura. Mas, mesmo sendo iluminado com tanto talento, que saiu das nossas Minas Gerais para ganhar o mundo, nas vezes em que tive o privil�gio de estar com ele, sempre admirei a sua simplicidade, o seu jeito af�vel, equilibrado, a personalidade discreta, a voz serena que tanto nos ensinava.”
MARCIO LACERDA,
prefeito de Belo Horizonte
Carinho do time do cora��o
O Am�rica Futebol Clube, time do cora��o de Fernando Brant, homenageou ontem o compositor, durante o jogo contra o CRB, pela s�rie B do Campeonato Brasileiro, no est�dio Independ�ncia. Os jogadores entraram em campo com uma camisa confeccionada especialmente para a partida, trazendo nas costas o nome de Brant e na frente seus versos “quando voc� foi embora, fez-se noite em meu viver”, da m�sica Travessia, uma de suas mais famosas composi��es, em parceria com Milton Nascimento.
A p�gina do clube na internet observou que a “na��o americana” est� de luto e lembrou que � de autoria de Brant o hino n�o oficial do clube: “Meu cora��o � verde e branco/E assim, o jogo est� em minhas m�os/Sou americano, sim, desde menino/Eu grito � gol, � gol, � gol/Para sempre vou viver cantando/� do Am�rica, o meu cora��o/� do Am�rica, o meu cora��o…” A composi��o � uma parceria de Brant e Tavinho Moura.
Al�m de torcedor fervoroso, Fernando Brant era conselheiro do Am�rica. Ele herdou de seu pai, o juiz Moacyr Pimenta Brant (1911-2004) a paix�o pelo clube, que contagiou ainda grande parte da fam�lia Brant. Fernando contava em roda de amigos que sua composi��o Can��o da Am�rica, mundialmente conhecida, era na verdade uma homenagem ao clube do cora��o: “no fundo, no fundo, � a can��o do Am�rica. Amigo � coisa para se guardar... e o Am�rica tamb�m � para se guardar debaixo de sete chaves, dentro do cora��o”, dizia, bem-humorado.
Parentes do compositor, mesmo aqueles que n�o eram americanos, sabiam que, em dia de jogo do time em Belo Horizonte, haveria encontro de fam�lia. “Era uma festa da fam�lia que, com a vit�ria, ficava ainda melhor. O Fernando n�o dispensava a cerveja e o bolinho de feij�o”, disse a sobrinha Ana Clara Brant, que � jornalista, assim como o tio, e rep�rter do Estado de Minas. Um dos grandes momentos do torcedor Fernando Brant foi o t�tulo do Mineiro de 1993, depois de um jejum de 20 anos do Am�rica sem uma conquista estadual. “Ele ligou para todos da fam�lia. At� para quem estava no exterior, para comemorar.”
Tristeza no Clube da Esquina
V�rios registros sobre o Clube da Esquina narram a decep��o dos visitantes, principalmente estrangeiros que gostam do movimento musical e que fizeram quest�o de incluir a capital mineira em seu roteiro s� para visitar o tal clube. O motivo? Eles imaginavam que iriam encontrar uma sede onde os artistas se reuniam, talvez assim como Abbey Road est� para os Beatles. Mas o m�ximo que se encontra na esquina entre as ruas Divin�polis e Parais�polis, no Bairro Santa Tereza, � uma simples placa de metal que identifica aquele lugar, ao melhor estilo “museu aberto”. Se conseguirem enxergar que a import�ncia desse movimento musical est� fortemente ligada a caracter�sticas que podem (ou podiam) ser encontradas em qualquer esquina, como originalidade, espontaneidade e simplicidade, talvez esses visitantes se consolem.
Na tarde de ontem, a esquina do clube tinha o ar de tristeza de Solange Borges, irm� de L� Borges. Solange recordou da algazarra que Fernando e a turma do Clube na Esquina faziam naquele pequeno espa�o. Jogavam bola, desenhavam no ch�o, conversavam, assistiam ao p�r do sol no horizonte da Rua Parais�polis, mas, sobretudo, tocavam e compunham can��es. Situada no n�mero 136 da Rua Divin�polis, a casa dos Brant era um verdadeiro QG da turma, onde, durante a ditadura, se abrigavam da pol�cia e da censura.
A tradutora Vera Faria Bernardes, de 63 anos, que se lembra de Fernando Brant dos tempos em que ambos estudavam no Col�gio Estadual Central, foi ontem at� � famosa esquisa, como uma forma de homenagear Brant. “�ramos contempor�neos e, por coincid�ncia, estivemos nos mesmos pontos geogr�ficos de Minas Gerais, ao mesmo tempo. Assim como ele, sou do Sul de Minas, passei por Diamantina e, depois, vim para Belo Horizonte.” Brant nasceu em Caldas, em 1946. Aos 5 anos, mudou-se para Diamantina e, aos 10, para Belo Horizonte.