
Cadet Fritznel, de 34 anos, � pedagogo. Durante mais de uma d�cada, foi professor e tradutor de ingl�s. Tamb�m domina as l�nguas francesa, crioula, espanhola e portuguesa – embora nesta �ltima ainda tropece. O curr�culo impressiona muita gente, mas tem pouca valia. Hoje, ele ganha cerca de R$ 1 mil trabalhando como frentista em um posto, na Zona Oeste de Belo Horizonte. E agradece a oportunidade, pois at� chegar a ela passou por maus bocados.
A dificuldade em encontrar emprego na �rea n�o tem rela��o com a crise econ�mica que atravessa o Brasil. O maior obst�culo, segundo ele, � o preconceito. Fritznel � haitiano e mora no Brasil desde setembro de 2013. Veio para BH fugindo do caos que se instalou em seu pa�s depois do terremoto de 2010. Mas, em quase dois anos, s� conseguiu ocupa��es que dispensavam a forma��o acad�mica. Nelas, enfrentou jornadas duras para sobreviver.
Em geral, empregadores est�o dispostos a contratar m�o de obra haitiana apenas para servi�os bra�ais. Na luta di�ria pela sobreviv�ncia, o professor diz que sofreu com racismo e ass�dio moral. “Muita gente no Brasil n�o v� com bons olhos os haitianos”, queixa-se. A despeito das muitas dificuldades, Fritznel acredita em dias melhores na capital mineira. Seu objetivo � voltar a trabalhar na �rea educacional.
Pai de quatro filhos, todos com menos de 11 anos, o tradutor conta que, quando chegou, n�o sobravam nem trocados para enviar para a fam�lia. Sua mulher n�o trabalha, e todos sobrevivem com o dinheiro enviado do Brasil.
O primeiro trabalho dele foi como descarregador de caminh�es. O haitiano conta que sofria com a jornada longa e desgastante. Chegava, segundo ele, �s 11h. Muitas vezes, ficava at� as 3h da manh�. Tanto esfor�o por R$ 50 por dia. Se ficasse doente e n�o pudesse comparecer, tinha o dia cortado. “Foi o momento mais dif�cil aqui em Belo Horizonte. O trabalho me esgotava f�sica e mentalmente. Era quase um trabalho escravo. Para piorar, n�o tinha tempo de descanso. N�o conseguia dormir direito, porque no outro dia tinha que sair cedo para n�o chegar atrasado. Passei tr�s meses l�”, relembra, com tristeza.
O desgosto com a situa��o humilhante quase fez o haitiano voltar ao pa�s de origem. Mas o que faltava em dinheiro sobrou em perseveran�a. Fritznel � homem valente, de fibra. Frequentador da Igreja Assembleia de Deus, tamb�m se apega � religi�o. “O sofrimento foi muito grande. Tinha dia em que eu chegava em casa e ficava chorando o tempo todo. Pensava: ‘O que estou fazendo aqui, longe da minha fam�lia, dos meus amigos?’. Mas, depois, colocava a cabe�a no lugar e pensava em procurar um emprego melhor”, afirma.
Uma nova oportunidade apareceu, em um hotel da regi�o Centro-Sul da capital. Mais uma vez, por�m, a experi�ncia foi traum�tica. Antes de deixar o emprego, soube, por outros funcion�rios do hotel, que um dos h�spedes n�o queria ser atendido por um “funcion�rio de cor”, como teria dito a madame. A dire��o n�o confirmou o incidente. “Falar sobre isso me d�i. Eu n�o escolhi nascer preto, voc� n�o escolheu nascer branco. A gente � igual. Mas muita gente n�o entende isso. Sa� de l� muito triste. N�o sabia que passaria por isso no Brasil”, conta o haitiano.
OPORTUNIDADE Hoje, Fritznel agradece a oportunidade de trabalhar em um posto, “com pessoas boas”, como destaca, mas, claro, sonha mais alto. A educa��o est� no horizonte do haitiano. Em frente ao local de trabalho, observa todos os dias o Cefet I, do Bairro Nova Su��a. Ao lado, est� uma escola estadual. Ele sorri com a coincid�ncia. E sonha com os livros, todos os dias. “Meu objetivo � trabalhar como professor, em qualquer lugar”, explica. “Depois de me estabilizar, trarei minha fam�lia. O Brasil tem problemas como qualquer outro pa�s, mas � poss�vel sonhar com uma vida melhor”, projeta Fritznel, que mora com a prima e outros quatro haitianos, no Bairro Morada Nova, limite entre Belo Horizonte e Contagem.
O clima na casa � familiar. Todos se ajudam para superar a saudade da terra natal e pagar as contas. Segundo Fritznel, quem fica sem emprego � desonerado. Por outro lado, aos desempregados cabe fazer o servi�o da casa, enquanto n�o encontram nova ocupa��o.
Brasil surge como salva��o p�s-trag�dia
O professor que j� trabalhou de carregador e hoje � frentista seguiu o destino de mais de 39 mil haitianos – dado atualizado pela Pol�cia Federal em setembro de 2014 –, que desde o terremoto migraram para o Brasil. O tremor de 7 graus na escala Richter arruinou o pa�s, provocando cerca de 250 mil mortes, centenas de milhares de feridos e desabrigados.
Em Minas, o recuo da constru��o civil passado o incremento das obras visando � Copa de 2014, n�o resultou em redu��o da popula��o haitiana, estimada em cerca de 3 mil pessoas, que tinham como principal fonte de renda as ofertas do setor. O mesmo n�mero foi apontado por pesquisa dos professores da PUC Minas Duval Fernandes e Maria da Consola��o Gomes de Castro, realizada em 2013.
O professor aponta que a maioria dos imigrantes est� nos munic�pios de Contagem, Ribeir�o das Neves e Esmeraldas. “A localiza��o se explica pela proximidade com a Ceasa, onde trabalham como carregadores de caminh�o e faxineiros”, afirma Duval Fernandes. Ele diz que a constru��o civil, apesar do desaquecimento, ainda recruta haitianos, por serem profissionais dedicados. “O que falta a esses imigrantes � o compromisso dos governos de gerar condi��es que atendam a necessidades como acesso ao ensino. Quando recebem o visto de ajuda humanit�ria, eles t�m os mesmos diretos dos cidad�os brasileiros”, destaca Fernandes. O professor estima que cerca de 35 mil haitianos aguardem julgamento do pedido de asilo.
A possibilidade de acolhimento � o que atrai a maioria. “O terremoto destruiu nosso pa�s. Todo mundo tem um conhecido, um parente que morreu por causa dos tremores. Eu perdi um tio e uma prima. Depois disso, o Haiti entrou em uma grande crise. Muitos tentam fugir para outros pa�ses, mas tirar o visto � dif�cil. O Brasil abre essa possibilidade de visto de trabalho. Muita gente vende tudo para vir para c� ”, conta ele, que tem o visto de cinco anos.
Friznet escolheu com cuidado a cidade em que moraria: “Procurei um centro grande, com oportunidade de emprego, mas tentei fugir das cidades muito violentas”, diz ele, que chegou � capital mineira em 25 de setembro de 2013. Mas o percurso foi longo. Deixou sua cidade, Dessalines, para pegar um voo na capital Porto Pr�ncipe. Foi para o Panam�, de onde decolou para S�o Paulo. L�, encontrou um coiote que, segundo ele, trocou seus US$ 500 por uma passagem de �nibus para a capital mineira.
Em BH, Fritznel procura alugueis baratos, ao lado de outros haitianos. Em geral, eles tentam ao m�ximo acumular dinheiro para enviar aos familiares. “Ganho quase R$ 1 mil, mas sobra pouco, por causa das contas. Minha fam�lia recebem cerca de US$ 100”, conta.
Atr�s do rosto cansado – a entrevista ocorreu ap�s o expediente, que se estende das 7 �s 19h – ele mant�m a esperan�a de dias melhores. “Penso nos meus filhos. O mais novo dormia sobre minha barriga todo dia. � isso que me ajuda a prosseguir”, diz, emocionado, pensando no dia em que vai reencontrar a fam�lia. (Com Landercy Hemerson)