
“A gente n�o gosta de ficar aqui, mas tem de ficar porque se acostumou” - Jos� Carlos Machado, de 80 anos, interno h� 43 anos.
Aos 80 anos, Jos� j� tem mais tempo de vida dentro do que fora da Col�nia Santa Isabel, onde chegou aos 37. Segundo ele, para quem queria trabalhar havia muito servi�o na col�nia, ainda em constru��o. Chegou a fabricar tijolos para a pequena cidade, mas parou quando aumentaram as les�es. Acabou se estabelecendo como carroceiro, tornando-se conhecido por todos. Livre do mal de Hansen, poderia se mudar dali, mas n�o consegue ir embora. Quase meio s�culo depois, confessa que n�o mais se encaixa na rotina normal.
“Respeit�veis sauda��es,
Que a paz de Deus esteja em vosso lar. Sa�da um pobre doente de lepra que vive isolado neste sanat�rio h� v�rios anos. Sou portador de um mal que j� me tomou as m�os e as pernas e estou impedido de trabalhar. Pe�o humildemente a sua ajuda...”
Com esses termos, escreve devagar, com dedos tortos e letra bonita, o morador da ex-Col�nia Santa Isabel Nelson Flores, de 72 anos. A pedido da reportagem, Flores reproduz no papel pautado a atividade de “bater-gato”, que no passado consumiu boa parte de seu per�odo de isolamento na col�nia. Apesar de ter apenas tocos dos dedos, o ex-gateiro demonstra, ao vivo, como ele e muitos outros companheiros de infort�nio eram capazes de escrever com caligrafia bonita e perfeita coordena��o motora.
Em cartas remetidas para endere�os em todo o pa�s, coletados nos antigos cat�logos telef�nicos, os internos imploravam pelo envio de esmolas pelos Correios. O sistema de “bater-gatos”, que contava com a complac�ncia de diretores das col�nias, agentes de sa�de e at� mesmo de algumas freiras, segundo consta, arrecadava quantias consider�veis. A cada mil cartas enviadas a destinat�rios aleat�rios, de 10 a 30 pessoas ficavam sensibilizadas pelo pedido dos hansenianos, que solicitavam “uma simb�lica contribui��o”. Se cada envelope retornasse com 100 cruzeiros (moeda da �poca), seriam angariados de 1 mil a 3 mil cruzeiros por semana, valores repartidos entre a equipe de gateiros.
Passadas v�rias d�cadas, ainda � proibido falar sobre o assunto na Citrol�ndia, bairro de Betim surgido no entorno da col�nia. Somente alguns corajosos, como Flores, conversam sobre o tema. “Quem assim fazia era chamado de gateiro. A gente deixava de lado o amor-pr�prio e come�ava a pedir esmolas. N�o tenho vergonha do meu passado. S� assim pude construir a minha casa e reagrupar a minha fam�lia”, explica Flores, que sonha em publicar a sua biografia em livro, contando essas e outras hist�rias de uma vida inteira de segrega��o. Ele tem mais de 200 p�ginas j� escritas no computador.
Nelson conta que, segundo informaram na �poca, o grupo separado do restante da fam�lia ficaria isolado em tratamento, pelo per�odo de seis meses. “Viemos os quatro irm�os, inclusive uma que j� estava casada e foi obrigada a abandonar os filhos pequenos e o marido. N�o havia como argumentar”, diz ele, que tinha apenas 12 anos quando foi levado pela pol�cia sanit�ria. Nos documentos estavam escritos os nomes dos integrantes da casa confirmados com o bacilo da hansen�ase, em 1955. “Nem deram tempo para reagir. Avisaram que n�o precisar�amos arranjar mala ou roupas, pois, para onde est�vamos sendo levados, um local incerto, ter�amos de tudo”, conta o idoso emocionado, ao se lembrar da m�e ajoelhada no terreiro, desesperada por assistir � partida dos filhos sem nada poder fazer.
Veja depoimentos dos ex-internos da col�nia em Betim
REF�NS DA DOEN�A Sem esconder o receio de ser mal interpretado, Flores justifica que o “bater-gatos” era a melhor maneira de os internos n�o se sentirem ref�ns da doen�a. Aprisionados nas col�nias e impedidos de trabalhar por causa das feridas, os pacientes encontravam um al�vio para o sofrimento. O dinheiro era devidamente desinfetado para servir de barganha nas lojas. “Quando cheguei em Santa Isabel, todo mundo fazia aquilo. Cada um recebia de 30 a 40 caixas de blocos de papel para escrever as cartas, que eram enviadas por esse mundo afora”, completa outro interno, que diz n�o ter participado.
“Nunca sa� pedindo dinheiro na rua, mas quando era crian�a andei escrevendo cartas”, diz J. A., que pede para n�o ser identificado. No primeiro gato que bateu, Jo�o recebeu de volta a carta enviada dias antes, com exatos 216 cruzeiros, quantia que nunca mais esqueceu.

Com o tempo, a estrat�gia dos “bate-gatos” tornou-se mais complexa. As cartas eram repassadas atrav�s do portal na entrada da Col�nia Santa Isabel, junto com o dinheiro para o pagamento dos selos. Era dif�cil desinfetar as notas do risco de cont�gio pela hansen�ase. A prefer�ncia era dada �s moedas, esterilizadas nas estufas. Nem todos os internos participavam.
Na d�cada de 1970, depois de desmontado o sistema de “bater-gatos”, devido � falta de comida e ao tempo de sobra, uma turma grande de hansenianos passou a viver da mendic�ncia. A partir de 1978, com a abertura das col�nias, um grupo de 30 hansenianos cobertos de andrajos e faixas para esconder as feridas subia no �nibus da Via��o Bras�lia com o intuito de pedir esmola em Belo Horizonte. O sistema era organizado. Para evitar o contato com os hansenianos, os moradores dos bairros j� deixavam, nos dias marcados, o dinheiro da esmola em cima dos muros das casas.
“Na �poca da abertura das col�nias, ou a gente pedia esmola ou passava fome. Os governos j� n�o tinham mais interesse em nos manter confinados e reduziam o repasse de recursos para as col�nias. Eu era cheio de caro�os e manchas pelo corpo. Para minha fam�lia conseguir comer, arrumava um cavalo velho, montava em cima e sa�a por a� pedindo esmola. Todo mundo tinha medo, porque o doente ficava feio. A carne ia deteriorando. Nas ruas, a caravana ia passando e as pessoas gritavam ‘corre para dentro porque o leproso est� vindo...”, conta um interno. Segundo ele, os moradores nem deixavam o doente apear do cavalo. Despejavam as moedas no chap�u ou estendiam uma lata na ponta da vara com o dinheiro. “Muitos morreram de tristeza por estar naquele sofrimento”, conclui.
Come�o "amador"
Segundo os internos, o “bater-gato” come�ou de maneira amadora. As pr�prias irm�s de caridade contratavam a m�o de obra de mo�as sadias, de fora da col�nia, para redigir as cartas, com os dizeres predefinidos, pedindo esmolas. As religiosas imaginavam que, por terem as pontas dos dedos lesionadas, os doentes seriam incapazes de segurar a caneta. At� que um deles alertou uma freira, com direito a uma demonstra��o pr�tica. “Olha aqui irm�, minha letra sai igualzinha � delas”, disse ele, que teria sido convidado a se integrar � turma. Ele garante ter rejeitado a proposta, apesar da insist�ncia dos demais colonos. “Por que voc� n�o entra nessa? Aqui todo mundo participa, at� mesmo os funcion�rios da col�nia”, teriam dito.