
"Pedia a Deus todos os dias para ficar doente e, com isso, poder ficar junto da minha m�e dentro da col�nia" - Zenaide Silva, de 69 anos, internada desde os 11
Famosa pelos quitutes, a salgadeira Zenaide tinha apenas 8 anos quando a fam�lia recebeu a visita da pol�cia sanit�ria, em Juiz de Fora, na Zona da Mata. “Buscaram s� ela. Eu, meu pai e meu irm�o ficamos para tr�s”, lamentou a menina, levada todo m�s pelo pai para fazer o exame de detec��o da hansen�ase. Ao chegar do servi�o, o pai examinava atentamente as duas crian�as, tentando encontrar sinais da doen�a. “Quando tinha 10 anos, finalmente apareceram carocinhos atr�s da minha orelha. Fiquei alegre, porque morria de saudades da mam�e. Tudo o que eu queria era estar perto dela.”
Essas crian�as tornaram-se �rf�s de pais vivos por imposi��o do Estado, muitas vezes em situa��es que envolviam esquemas irregulares de ado��es e maus-tratos pelos funcion�rios das chamadas pupileiras, onde ficavam at� atingir a idade de migrar para os educand�rios. “Teve uma �poca em que as funcion�rias faziam ruindade com a gente. Batiam mesmo. Quando era Dia das Crian�as ou Natal, apareciam umas senhoras da caridade trazendo brinquedos para a gente. As crian�as eram obrigadas a agradecer e sorrir para elas. Quando as madames viravam as costas, elas tomavam de n�s as bonecas. Uma vez implorei de joelhos para ficar com uma das bonecas. A mulher tomou ela da minha m�o, cortou os dedinhos dela e me devolveu. Era covardia demais”, relata sem conter as l�grimas Maria das Dores Moreira, atualmente com 53 anos. “Toda vez em que eu conto a minha hist�ria, eu choro. Faz bem chorar”, completa.
Conhecida internamente como Dad�, Maria das Dores era ex-interna da Pupileira Hernane Agr�cola, no Bairro do Horto, na Regi�o Leste de BH. No lugar, eram permitidas visitas das m�es, desde que fosse mantida dist�ncia m�nima de 100 metros, separadas por cerca de arame farpado. Mesmo assim, a m�e de Dad� levou dois anos at� conseguir localizar a filha e ter autoriza��o para visit�-la. “No dia da visita, minha irm� conseguiu contrabandear o retrato da nossa m�e por baixo da cerca. Tenho a foto guardada at� hoje”, revela Dad�. “S� assim me lembro do rosto da minha m�e, Maria Piedade da Silva”, diz ela, tirando da pasta de el�stico a foto surrada da mulher, de semblante esquecido no tempo.
Passados quase 90 anos desde a inaugura��o de Santa Isabel, em 1931, filhos e netos de portadores da doen�a est�o dispostos a revelar detalhes de suas hist�rias, que beiram o desespero. Os depoimentos s�o estarrecedores. Sob o estigma da lepra, gera��es inteiras cresceram sem colo de m�e, la�os de fam�lia foram cortados e irm�os viveram como estranhos. “Quando contei meu caso, o (ent�o presidente) Lula chorou junto comigo”, conta a moradora da ex-col�nia Ant�nia Barroso, hoje com 80 anos. Em 2007, dona Ant�nia estava presente na delega��o de 130 pessoas ligadas a movimentos de luta pelos direitos dos hansenianos que foram a Bras�lia para for�ar uma agenda com o presidente.
No Pal�cio do Planalto, Ant�nia relatou sua espinhosa trajet�ria de vida. H� quase 40 anos havia sido levada � for�a de casa e internada pela pol�cia sanit�ria. Havia sido denunciada pela m�e, que se negou a conviver com Ant�nia e nunca visitou a filha. Na �poca, ela estava gr�vida. Ao saber do diagn�stico de hansen�ase, o marido cometeu suic�dio poucos dias depois. A filha do casal nasceu na col�nia, mas n�o chegou sequer a ser posta nos bra�os da m�e. No mesmo instante, foi enviada para um prevent�rio e adotada clandestinamente. O reencontro entre as duas demorou 35 anos para acontecer. “Acho que ningu�m sofreu mais do que eu em Santa Isabel”, diz ela, como se fosse poss�vel medir a dor.
Vida hoje � melhor
Na condi��o de internos, recebem do estado atendimento preferencial de sa�de, transporte interno gratuito e alimenta��o. Depois da repara��o governamental, recebendo indeniza��o, muitos se d�o ao luxo de recusar a comida do hospital e encomendar marmitas em Betim, para variar o card�pio. “Com a indeniza��o, poderia me mudar para qualquer lugar do Brasil, pois conhe�o a lei e poderia processar quem tentasse me discriminar. Mas aqui � meu segundo mundo”, afirma um interno, que pede anonimato. “A pens�o vital�cia me deu condi��es de ter uma vida mais digna”, completa.
Outros aproveitaram o valor da indeniza��o acumulado entre o per�odo de interna��o at� 1986 para investir na reforma das casas constru�das em Citrol�ndia, trocar de carro ou ajudar os filhos. Segundo os relatos, os valores variaram de R$ 2 mil a R$ 150 mil, proporcionais ao tempo de interna��o. “Nosso desafio � continuar prestando assist�ncia de qualidade aos portadores da doen�a e garantir que, daqui a mais 30 anos, 60 anos, nossa hist�ria chegue �s gera��es futuras”, defende Arthur Cust�dio, presidente do Mohran nacional.