
Quase 20 dias se passaram depois da maior cat�strofe ambiental da hist�ria do Brasil, com 12 mortos e 11 desaparecidos, provocando uma onda de lama que atingiu o mar no Esp�rito Santo e lambeu do mapa o subdistrito que levava o nome de Bento Rodrigues, da hist�rica Mariana, com o rompimento da Barragem do Fund�o, da mineradora Samarco. Ironicamente, a trag�dia causou um inesperado efeito reverso. Embora tenha sido decretada morta, a vila renasceu e tornou-se conhecida mundialmente na internet, gra�as ao v�deo de uma tev� local, que se tornou viral, com milhares de visualiza��es e elogios ao modo simples de viver, � arquitetura colonial e ao som de viola caipira.

As grava��es n�o mostram nada demais sobre Bento, como os antigos moradores se referem carinhosamente ao subdistrito soterrado, mas � isso mesmo o que encanta a todos. “Gente, olha ali a casa de Henrique”, diz uma. “O gramado estava verdinho...”, completa. “Nossa igreja centen�ria... N�o sobrou nada, meu Deus”, exclama outra. Keila permanece calada, o olhar fixo nas imagens. Das tr�s, foi a �nica a ter coragem de voltar a Bento para ver o que restou da pr�pria casa, onde morava com o marido e a pinscher Bela, de 6 anos. Conseguiu salvar a cadelinha, que, agora, n�o sai do colo. Considera que teve muita sorte: Neusa perdeu tr�s c�es e Maria tamb�m ficou sem seu cachorrinho, al�m das roupas, m�veis, fotos e documentos. Elas moravam perto umas das outras, em uma das ruas mais afetadas pela lama. Felizmente, todos os parentes escaparam.
SOBREVIVENTE Nas andan�as entre os destro�os de Bento, Keila fez uma descoberta surpreendente. Como por milagre, a associa��o restou de p�, intacta, na parte alta do antigo povoado. Recentemente, a sede havia sido pintada de verde. “No v�deo, ela ainda estava na cor antiga, vermelha. Essa grava��o � recente, deste ano. A gente tinha acabado de investir todo o dinheiro de um pr�mio de R$ 100 mil do Banco Santander e da universidade Unisol para adequar as instala��es �s regras da Vigil�ncia Sanit�ria. Estava tudo certinho”, conta ela, lembrando que a iniciativa conquistou os primeiros lugares entre 3 mil concorrentes no pa�s.
Com o investimento perdido, as sete mulheres da associa��o tentam obter autoriza��o para resgatar o que restou na sede , agora em �rea de acesso restrito, diante da preocupa��o com as outras barragens remanescentes do desastre – Santar�m e Germano. Calcula-se que dentro da associa��o estejam esperando por elas 30 caixas, cada uma com 24 potes de geleia de pimenta-biquinho, a R$ 7 cada. � um verdadeiro tesouro para elas, nem tanto pelo valor, que n�o recupera 10% do investimento, mas porque traz de volta o sabor e o aroma de dias felizes. “Na sexta-feira, a gente tentou ir a Bento, mas estava chovendo e a Defesa Civil n�o liberou, porque podia ser perigoso. Vamos tentar de novo”, conta Keila, que tamb�m se recorda de 200 potes vazios, r�tulos e de boa quantidade de pasta de pimenta, j� no ponto de ser processada.
NOVAS ENCOMENDAS Uma not�cia boa chegou com a repentina fama via internet: todos os potes de geleia est�o vendidos e j� h� novas encomendas, sem prazo determinado para entregar. “Ser� que um dia a gente vai conseguir fazer funcionar nossa associa��o, do jeitinho em que estava, com tudo certo?”, sonha alto Neusa, encarando as amigas com olhar interrogador. Guerreiras, as mulheres dizem que n�o s�o de fugir de trabalho. Juntas, as sete s�o capazes de fabricar at� 7 mil potes em uma semana, fazendo em m�dia 400 unidades por dia. J� atenderam a encomendas de fim de ano de funcion�rios da Samarco e rechearam cestas de Natal da Prefeitura de Mariana.
“O problema maior s�o os p�s da pimenta, que a gente plantava no quintal de casa. Em menos de cinco minutos, a lama subiu e levou tudo. Olhei para tr�s e n�o vi mais minha casa”, diz Maria, que estava tomando banho quando estourou a barragem do Fund�o. Saiu enrolada na toalha, com um vestido na m�o. Nem sabe dizer se fechou o chuveiro. “Foi tudo embora. Depois do que passei naquele dia, nada me assusta mais”, conta ela, que sente saudades de ‘panhar’ as pimentas nos p�s, como comenta. Caso ressurja ou n�o a associa��o, Maria F�lix jamais revela o segredo da receita da geleia. “Segredo a gente n�o conta”, afirma ela, exatamente como fez no v�deo de sucesso na internet.
“Naquele dia, veio vindo um poeir�o vermelho. Parecia que a gente estava sendo abra�ada pelo inferno. A lama fez um redemoinho vindo do ch�o e arrastou um �nibus. Uma gr�vida de 4 meses estava rodando embaixo de um pneu, que arrancou parte dos cabelos dela.
Sobreviveu, mas perdeu o beb� no caminho do hospital. Daria um filme de terror, mas pensando bem, acho que ningu�m iria querer assistir”, comenta Keila que, durante tr�s dias, se assustava com qualquer barulho, at� o de uma descarga no banheiro. Segundo ela, o estrondo da lama era mais alto do que o de cinco helic�pteros juntos, que de fato chegaram meia hora depois do rompimento da barragem, com bombeiros, pol�cia, jornalistas. Keila diz que concorda em se mudar para uma casa nova, desde que n�o seja perto de barrancos, na beira de rio e menos ainda, pr�ximo a barragens.
“Sabe aquele sereninho que sai das cataratas? Era parecido com aquilo, s� que era uma n�voa de lama. Aquele trem veio descendo e lambendo as casas todas. Foi coisa de cinco minutos. Estava no chuveiro quando minha filha gritou: ‘M�e, corre que a barragem arrebentou!’. Peguei a toalha e pedi ajuda ao meu neto para socorrer a dona Doca, que estava dormindo nos fundos. Ele a carregou no colo. Via todo mundo com volta correndo e gritando”, recorda dona Maria.
Do alto do morro, ela ainda viu uma cena dif�cil de esquecer, quando a sobrinha S�nia, de 36 anos, tentava pular a janela da pr�pria casa, de muro alto: “Ela se salvou por pouco. Quando p�s a m�o no muro, o muro quebrou com a lama e ela foi sendo empurrada uns 300 metros pela onda, segurando um sobrinho de 9 anos pelas m�os e com o filho de 15 anos puxando-a pelos cabelos. Foi uma sensa��o horr�vel”, desabafa Maria, que quando a poeira baixar, quer passar um dia inteiro abra�ada com a sobrinha, confortando-a pelo que passou.
Depois de destravar o horror preso na garganta, Maria menciona o caso do homem que perdeu cerca de R$ 60 mil, que ficavam guardados em uma caixa escondida em um c�modo secreto da casa. Era o marido dela, Jos� Barbosa, que poupava para comprar um carro. “Era o sonho dele, sabe? Mas eu fico pensando: de que adiantou passar a vida inteira com medo de ser roubado e a porta do quarto sempre trancada a chave? Foi tudo embora...”