
A hist�ria de Maria � da ordem do lirismo anunciado por Ad�lia Prado no poema Com licen�a po�tica – em que a poeta parodia os versos em que Carlos Drummond de Andrade assumia ser gauche na vida. O cargo � muito pesado pra mulher. Com 1,56 metro, a jovem que aniversaria no 19º dia do m�s dedicado �s mulheres entendeu que teria que se posicionar para mudar a sina de ser, nas palavras da escritora de Divin�polis, “desta esp�cie ainda envergonhada”. Quando crian�a, descobriu que teria que viajar para Belo Horizonte para tratar o problema auditivo. O desejo impulsionou os pais a tentarem a vida na capital. Mudaram-se para BH em busca de tratamento m�dico para a menina e oportunidades.
Ela trabalhou desde muito cedo. As primeiras tarefas foram ao lado do pai, Carmerinho dos Santos Ferreira, de 55, que a ensinou o of�cio de pedreiro. “Me garanto na colher. Assento cer�mica, sei levantar paredes e rebocar”, afirma. “Procurei aprender v�rias coisas. A profiss�o do meu pai. Quando eu me casasse ou tivesse a minha casa, eu mesma poderia mexer. Tinha medo de ficar desempregada, de receber uma porta na cara.”
A primeira mulher com quem trabalhou na cidade natal a indicou para ser bab� em BH. Foi a segunda patroa que a encaminhou para tratamento com um fonoaudi�logo. Nos locais onde trabalhou, executava as tarefas com esmero, mas foi dispensada in�meras vezes. Foram 36 empregos diferentes, mas sempre a mesma justificativa. “Me diziam que gostavam do meu trabalho, mas que precisavam de algu�m que pudesse falar ao telefone e atender recados.” Inspirada pelo anjo trombeteiro, Maria aceitou “os subterf�gios que lhe cabiam”. Com verdade, enfrenta cada um dos desafios que lhe aparecem.
Casou-se e da uni�o, vieram Caio, de 9 anos, V�tor, de 4, e Paulo Alexandre, de 3. Ora sim ora n�o, cr� em parto sem dor. Quando sim, pensa no momento em que deu � luz os dois primeiros filhos, em duas gesta��es diferentes em que teve complica��es que impediram a chegada de oxig�nio ao c�rebro dos beb�s. Recorda o quanto foi dif�cil, depois de um �rduo trabalho de parto, ouvir dos m�dicos que os filhos tinham paralisia cerebral. “O m�dico me disse que a vida do Caio estava nas minhas m�os e que ele demoraria a se desenvolver. Poderia vegetar, n�o andar e ter uma leve perda auditiva.” Muitas perguntas lhe tomaram a mente. N�o sabia que o filho teria que usar cadeira de rodas.
Quando n�o, n�o tem d�vida em dizer que o fato que mais marcou sua vida foi o nascimento dos filhos. Faz o que for necess�rio para v�-los plenos. “Quando Caio completou tr�s meses de vida, conheci um fisioterapeuta que disse que o m�dico se precipitou, que n�o poderia prever como seria o desenvolvimento dele. Na �poca do nascimento, fiquei muito assustada, desorientada. Eram muitas perguntas sem respostas. As respostas vieram com o tempo.”
O que sente, Maria fala. De maneira t�o articulada que � dif�cil perceber os problemas com a fala decorrentes da defici�ncia auditiva. A vida dela � a prova de que “dor n�o � amargura.” M�e de tr�s, inaugurou linhagens. Sonha fundar reinos. “Tenho f�lego para lutar por meus ideais.” No horizonte, est�o a carteira de habilita��o e curso t�cnico na �rea de engenharia civil. Atualmente, tenta completar a forma��o do ensino fundamental no programa de Educa��o de Jovens e Adultos (EJA). “O sonho do meu pai era ter um filho homem para exercer a profiss�o dele. N�o a parte pesada. Ele queria que o filho pudesse projetar, planejar as casas. Como ele n�o tinha como pagar um ajudante e n�o teve filhos homens, era eu que fazia essa tarefa. O ajudava a virar massa. Fazer esse curso t�cnico � realizar sonho de muitos anos.”
N�o foi o Rio de Janeiro declamado por Ad�lia, mas foi para S�o Paulo sem conhecer ningu�m, sem ter onde ficar para tentar uma cirurgia para que Caio pudesse andar. “Levei quatro malas. Duas grandes e duas pequenas. Numa delas, levei panela, batatinha e macarr�o. N�o sabia o que encontraria. Peguei chuva, passei fome e frio com ele na rua”, recorda. Foi com dinheiro contado para ir, ficar no m�ximo tr�s dias e voltar. Foram 35 na terra da garoa. Tempos dif�ceis que ela enfrentou para conseguir o tratamento do filho. Bateu de porta em porta para conseguir faxina – uma forma de se sustentar nesse meio-tempo. Conseguiu muito mais. Fez “quitandas” que ca�ram no gosto de muita gente. Com o dinheiro da venda, conseguiu se manter.
Se, como disse a poeta, a tristeza da mulher n�o tem pedigree, a vontade de alegria de Maria tem raiz na fam�lia, nos pais, que foram seu esteio. Com a m�e, aprendeu a preparar “quitandas”. Acorda �s 5h. Cuida da casa, leva os filhos para a escola e segue para a autoescola. � tarde, enfrenta o desafio do transporte p�blico para levar os filhos para a reabilita��o. Faz roscas de ab�bora e mandioca para vender. No hospital, � reconhecida por todos e tem muitos clientes que propagandeiam a qualidade dos quitutes. Recebeu a reportagem na AMR, onde passa a metade do dia com os filhos e tamb�m o local onde pode se reinventar. Maria prova que “ser coxo na vida � maldi��o pra homem”. Ela � desdobr�vel.
Momentos
A hist�ria de Maria Jos� foi escrita pelo Estado de Minas em tr�s momentos: em abril de 2014, quando passava por um verdadeiro calv�rio para levar os dois filhos cadeirantes do Bairro Tancredo Neves, onde moram em Ribeir�o das Neves, at� a Associa��o Mineira de Reabilita��o (AMR), no Bairro Mangabeiras, Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte. Foi a personagem de 25 de dezembro daquele ano, pela hist�ria de luta e supera��o. Voltou a ser not�cia em setembro de 2015, quando a Justi�a sugeriu mudan�a no trajeto do �nibus para facilitar o acesso dela e das crian�as � AMR.