Vinte e nove anos se passaram desde que a dona de casa de Belo Horizonte L.P.L, de 53 anos, foi violentada por um desconhecido, mas a ferida ainda n�o cicatrizou. Muito pelo contr�rio: fica exposta quando acompanha o drama de outras mulheres estupradas, como a adolescente de 16 anos numa comunidade do Rio de Janeiro, atacada por 33 homens. L. destaca que, mais do que a dor f�sica, a viol�ncia sexual deixa marca na alma das v�timas que n�o conseguem reconstruir a vida depois do trauma. “Dif�cil dizer que superei totalmente, tamanha � a invas�o”, diz, ao lembrar de 8 de julho de 1986, quando um homem invadiu sua casa no Bairro Carlos Prates, na Regi�o Noroeste, e praticou o crime.
Em Minas, em m�dia, 11 mulheres s�o estupradas por dia, segundo dados da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) referentes aos quatro primeiros meses deste ano. S� no Ambulat�rio de Sa�de Mental de Mulheres do Hospital das Cl�nicas (HC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que atende v�timas de viol�ncia sexual em Belo Horizonte, foram 21 den�ncias de estupro entre janeiro e abril, sendo que, em cinco casos, as mulheres relataram ter feito ingest�o de �lcool e/ou drogas e sido estupradas a seguir, lembrando parcialmente do que ocorreu depois.
Entre os cinco estupros de mulheres envolvendo drogas atendidos nos quatro primeiros meses de 2016 no HC, pelo menos duas das v�timas revelaram ter sido violentadas coletivamente. Segundo o relato do prontu�rio, uma estudante viajou com os primos para uma festa no interior de Minas e acordou na pra�a, entre quatro rapazes, que contaram o que haviam feito com ela. No outro caso, uma estudante da UFMG bebeu e usou drogas ao participar de uma festa, sendo estuprada por mais de dois universit�rios dentro do c�mpus, atr�s de �rvores. Neste �ltimo estupro, a mulher engravidou e teve acesso ao aborto legal.

“N�o h� como afirmar se os outros casos foram ou n�o estupros m�ltiplos. � muito dif�cil para a v�tima decidir se abrir e fazer uma reviv�ncia do que passou”, afirma a psiquiatra Gislene Valadares, que atende no ambulat�rio do HC e � presidente da Associa��o Brasileira de Preven��o e Tratamento de Ofensas Sexuais (ABTOS). Segundo a m�dica, as den�ncias de abusos de �lcool e drogas seguidos de abusos sexuais est�o aumentando, n�o apenas nos relatos do Sistema �nico de Sa�de (SUS), mas tamb�m nos coletivos de mulheres criados dentro da pr�pria universidade. “Menos de 30% das mulheres violentadas procuram ajuda especializada. “Na classe m�dia alta, est�o cada vez mais comuns as festas regadas a drogas, em que os problemas s�o resolvidos nos consult�rios particulares e nas cl�nicas de aborto clandestinas”, denuncia.
As estat�sticas s�o alarmantes ao mostrar que, em um ano, a Seds registrou 4.348 casos de viol�ncia sexual, contabilizando estupros consumado e tentados com mulheres adultas e consumado e tentado com vulner�veis (v�timas menores de 14 anos). Considerando essas quatro tipifica��es, Minas registrou, de janeiro a abril de 2016, 1.355 casos de viol�ncia sexual. Desses, 437 de estupros consumados. Cem casos foram registrados no m�s passado (veja quadro).
Apesar de os dados no estado apresentarem queda gradual nos primeiros quatro meses de 2016 (de 352 em janeiro para 314 em abril), os n�meros apresentam oscila��o na capital mineira e, segundo o �ltimo c�lculo, est�o em alta. Em Belo Horizonte, a Seds contabilizou 41 casos de viol�ncia sexual em janeiro, 55 em fevereiro, 39 em mar�o e 58 em abril. O aumento percentual foi de 41% nos primeiros quatro meses do ano.

L. mudou de endere�o e desde 1988 faz acompanhamento psicol�gico e psiqui�trico no HC. Quando foi violentada, ela estava em casa cuidando do filho beb�. “Eram duas da tarde e tinha colocado meu filho para dormir. Estava me preparando para almo�ar. Um homem bateu no port�o, perguntando pelo meu marido. Conversei com ele sem abrir o port�o. Ele me pediu um copo d’�gua. Fui at� a cozinha pegar e, quando virei, me deparei com ele j� dentro da minha casa. Da� foi uma barb�rie s�”, recorda.
SEM FUGA
Na �poca, o marido e outras pessoas pr�ximas a desencorajaram de apresentar a den�ncia, mas ela levou a queixa adiante. “As v�timas, com certeza, por causa do desequil�brio mental que o trauma nos causa, acham que realmente t�m culpa pelo que ocorreu. Da� a vida acaba, deixamos de viver”, afirma. Al�m do sofrimento decorrente do estupro, L. n�o sabia como lidar com o abuso. “Levou tempo para eu falar sobre o que ocorreu, por causa da dificuldade que a gente encontra, a falta de compreens�o. � preciso ter coragem para poder falar. A gente esconde da maioria das pessoas. Depois de anos, como tinha muitos problemas de sa�de, comecei o tratamento. Os m�dicos n�o conseguiam entender, foi quando encontrei a sa�de mental do Hospital das Cl�nicas”, lembra.
O choro vem todas as vezes que a lembran�a � acionada. “� como se quis�ssemos fugir, n�o querer ver e ouvir esse tipo de acontecimento. � dif�cil lidar com isso”, diz, sobre o estupro coletivo da jovem em uma comunidade do Rio de Janeiro. Depois do atentado, o casamento deteriorou. O marido levantava suspei��o contra ela. “Meu ex-marido n�o queria que eu denunciasse. Dizia que era muita exposi��o e que n�o daria em nada. Houve um momento que havia d�vida at� da parte dele. O parceiro n�o consegue superar”. L desenvolveu s�ndrome do p�nico e outras doen�as psicol�gicas e f�sicas. Atualmente, ela faz acompanhamento psicol�gico mensal.